Nada mais que um simples e pequeno playground
Era apenas um playground, desses que se veem em qualquer condomínio. Mas, como ultimamente ando contemplativo e um tanto para o nostálgico, aquele pequeno parque me arrastou a memória para um que havia em minha terra, o único que havia.
Eu tinha envergado a domingueira, camisa branca e calça cinza de tergal, bem vincada, com listas pretas que se cruzavam, e subi a rua em direção à praça da Matriz.
Praça bem arrumadinha, com canteiros floridos, bancos ao longo de caminhos e nos recessos para namorados, uma fonte orlada de cactos e encimada por uma deusa nua. Abaixo e em torno da estátua, um grupo de meninos barrigudos seguravam na ponta dos dedos a cobertura da uretra.
À noite, quando a fonte era ligada, a deusa calipígia ficava envolta numa aura de gotículas rubras, por causa dos spotlights e dos jorros de água. Os meninos despudorados, ainda que de pedra, mijavam.
De vez em quando surgia na cidade um doido se dizendo ciclista. Trepado numa velha Monark, ele se propunha passar uma semana pedalando em torno da fonte, dia e noite, sem parar.
Às vezes alguns desconfiados iam sorrateiramente à praça, de madrugada, na esperança de flagrar o atleta escarrapachado num banco. A jogada nunca dava certo – o desgraçado estava lá, seco ou molhado, mas sempre enfiado no selim.
Molhado não porque chovia, mas porque, a certa altura do dia ou da noite, sua “auxiliar” (sempre uma mulher) lhe atirava um balde de água, aparentemente sem qualquer motivo. O rapaz pedalava com moderação e o clima da cidade é ameno.
Durante o dia, aquele banho poderia até se justificar. Mas naquelas noites frias... A gente desconfiava que o balde de água era para disfarçar as urinadas. O heroico bicicletista só tomava água, não comia nada. Imagine se comesse. Seria necessário também, talvez, um balde de lama...
Na praça havia um viveiro repleto de pássaros multicolores. Nos domingos ensolarados aquele cativeiro dava espetáculo mais bonito do que telhado de presídio brasileiro em rebelião.
Pelos galhos das árvores que ocupavam em abundância os canteiros gramados, preguiças se empenhavam em seu interminável passeio e saguis barulhavam.
Mas o ibope mesmo era o minizoológico. Não por causa do pavão, ou da onça-pintada, ou do tamanduá. O Ratinho daquele espetáculo era o Macaco Masturbador. (Este era o “conteúdo” do nome que a população dera ao bicho; em texto meu isto não fica bem colocado, mas vá lá.)
O símio, com uma energia de causar inveja a galã de longa-metragem pornô, não podia ver gente que logo metia a mão entre as pernas e empunhava a binga preta e lustrosa. Com uma só mão, porque o instrumento não comportava as duas, além de o depravado precisar, com a outra, recolher pipocas ou segurar banana.
É claro que moça de família disfarçava, fingindo admirar o rabo do pavão, mas com o rabo dos olhos acompanhava os movimentos do macaco bronheiro.
Ah, sim, ali na praça ficava o parque ao qual me dirigia naquele domingo de sol, subindo a rua íngreme calçada de pedras.
Ao chegar ao parque, fiquei meio paradão, tímido, sem conhecer ninguém. Em certo momento, criei coragem e resolvi participar. Havia por lá alguns equipamentos um tanto perigosos, em que meninos parrudos se exibiam para menininhas cheias de laços e fitas. Mesmo correndo o risco de parecer maricas, escolhi o escorregador.
No momento apropriado, ou seja, atrás de garotinha de saia rodada, subi a escada do escorregador. Senti um pouco de vertigem ao apoiar o chulezento Vulcabrás na pracha, cuja madeira rebrilhava de tanto ser usada.
Me soltei e – crash! Não, leitor das páginas de economia preocupado com fundos de aplicação, não foi nenhuma bolsa de valores de Hong Kong. Foram os fundos de minha impecável calça de tergal. Pois é, havia um prego no meio da descida...
Zonzo, fiquei sentado ali, na areia quente, como se fizesse o teste da farinha. Só me dei conta de que atrás vinha gente quando um garoto gritou: “Sai daí, palerma!”
Então me levantei, meti a mão nos destroços e, meio de ré, fui chegando para um dos lados do escorregador. Naqueles tempos, naquela terra, menino de minha idade não usava cueca. Pela aragem que me refrescava o rego, senti que o estrago era muito grande e a mão muito pequena.
Mas não havia escolha, leitor penalizado. Eu tinha que ir para casa.
Sem enxergar muito, sem ouvir nada, duro, com a mão no rabo, saí do parque.
Sem enxergar muito, sem ouvir nada, duro, com a mão no rabo, saí do parque.
Comecei a descer a interminável ladeira calçada de pedras, que eram como pedaços reluzentes de chumbo, naquela tarde excessivamente clara, excessivamente límpida.
Foi nessa época que, precocemente – aí pelos 10 anos de idade –, ganhei a minha primeira cueca, uma cueca samba-canção.
Apenas um playground, desses que se encontram em qualquer condomínio, fez com que surgissem estas reminiscências, inúteis como todas as reminiscências. Só porque hoje ando meio nostálgico, um tanto contemplativo.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 51, 22/3/1998)
Não se deve reclamar da falta de opções de lazer
Sem ofensa, leitor, mas um sujeito como você, que vive à toa e, quando não está fazendo nada, frequenta botequim – desses de mesa na calçada, carroça de churrasquinho junto do meio-fio –, só sabe soltar a mania de falar sobre opções de lazer babando num copo de cerveja quente.
Quando se trata de Goiânia, você acaba falando sobre nada.
Acaso, nos tempos atuais e nesta terra, esses adolescentes babacas, que se tornaram turistas de shopping center, têm alguma opção de lazer além de olhar vitrines e assistir àquelas happy hours com as mesmas músicas de Paulinho Pedra Azul ou o mesmo rock ininteligível de grupo frequentador de sebo?
Tais adolescentes jamais sonhariam o que é mergulhar em um açude cheio de marrecos, lá nos Campinhos, e na volta para casa ainda estacionar uma jega nas bordas de um cupinzeiro.
Sabem, esses garotos de pouca verve, o que é, em noites frias, passear em torno de empenada roda-gigante, a ouvir por meio da corneta de um alto-falante a voz sublime de Lindomar Castilho? Não, esses parvos mocinhos sobre patins jamais sonhariam o que é, nas ensolaradas tardes de domingo, alugar bicicleta para circular no Bairro Jurema e fazer bonito para domésticas em dia de folga.
Essa gentinha de cabeça rapada seria incapaz de imaginar a emoção de, antes do baile, diante do espelho e com um palito de fósforo no canto da boca, pentear-se ouvindo, pelo rádio, a voz potente de Eduardo Araújo: “Cabelo na testa, sou o dono da festa...”
Não sabem, os mauricinhos, o que é, em doce ócio, deitado no alto da caixa d’água e tirando meleca, observar a filha mais velha do vizinho a fingir, molemente, que lava roupa, agachada diante de uma bacia, pernas arreganhadas.
Esses garotos, nas noites cálidas, só sabem jogar video game ou, quando saem de casa, atormentar a vizinhança com o barulho de vozes na muda, coisa que abala os nervos.
Minha turma e eu sabíamos aproveitar melhor nosso tempo e nossa energia.
Às vezes, juntávamos dinheiro e íamos visitar Margarida, uma ruiva sardenta que prestava serviço, digamos, sexual à juventude transviada de meu bairro.
Chegávamos à casa daquela lacônica prostituta, sérios – quase homens –, e mostrávamos a grana. Generosa com a meninada, Margarida nem contava o dinheiro. Para ela, transformar garoto em homem era quase um ato de caridade.
Atendia com ordem e método, naquela pobre casinha na ladeira da Baixa da Égua. No pequeno corredor que levava ao minúsculo quarto, ficávamos em fila, como se estivéssemos diante de um caixa de banco. Ou, sem querer parecer blasfemo, diante de um confessionário, dada a grandeza do momento.
Na primeira vez, fiquei nervoso, mas não me apavorei. Eu e mais três garotos fomos atendidos com uma rapidez e uma eficiência de que nenhum banco é capaz.
Quando Margarida terminou com o felizardo que me antecedia, ouvi o chulap-chulap e a voz dela: “O próximo!”
Solenemente atravessei a porta, que era guarnecida apenas por um molambo à guisa de cortina. No quarto cabiam tão-somente a cama de solteiro, a mesinha atulhada e a bacia.
Margarida deitou-se. Não tirou a encardida camisola. Puxou a barra dela até os peitos. Estava sem calçola. Foi um susto quando vi aquela vasta e peluda xandanga, e não pude deixar de me preocupar com a minha coisinha em fase de crescimento.
Mas não pude meditar muito em caprichos da natureza. Margarida ordenou, impaciente: “Meta!” Apesar daquela monumental fachada, foi preciso que dois rudes dedos me ajudassem a encontrar o caminho.
Opções de lazer? Ora, leitor desiludido, eu não preciso de outra. A opção que oferece uma já despetalada Margarida existe em qualquer lugar. Até mesmo aqui. Só que muita gente não vê, por não acreditar na própria capacidade de sentir prazer.
Hamilton Carvalho
Gazeta de Goiás, nº 52, 29/3/1998)
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