A amada, a moto e a flor
Talvez seja uma espécie de perversão
sexual. Não sei. Mas, quando eu via uma moto Honda de 80 cilindradas, o coração
batia mais forte. Luzia, longilínia e calipígia, do tamanhozinho que eu calço,
estacionava a moto no passeio da firma, e vê-la colocar a máquina no descanso,
metida naqueles jeans reentrantes, era algo sensacional.
Ela me fazia
confidências, o que me deixava silenciosamente puto. Mulher que quer dar para a
gente não fica fazendo confidências. Mas me fixava naquela boca e ficava
ouvindo sem escutar. (Meu deus, há certas bocas...)
Não, eu não conseguia
compreender por que uma fêmea daquelas, parece que feita sob encomenda,
praticamente ignorava meu sex-appeal. Já o mesmo não acontecia com o Mário
Jorge, que andava musicando sonetos parnasianos de minha autoria com segundas
intenções.
A cadeira em que a
jovem dama fazia repousar aquela preciosa parte do corpo ficava em um estrado,
em plano mais elevado. Os subalternos ocupávamos mesas enfileiradas na estreita
sala. Luzia, no entanto, que trabalhava na contabilidade, ficava naquele altar.
Nos dias de confidência,
eu me sentava à mesa mais próxima do altar. E dali olhava com unção para a
santa de minha devoção. Ela girava a cadeira (a única giratória do escritório)
e começava a falar.
Se estivesse de saia,
então, era uma loucura. Meu olhar saltava da boca para as entrepernas daquele
tamanho de tesão e vice-versa. Aquela boca era linda, mas só de imaginar o
clitóris da amada apontado para a minha cara...
Aquela mulher
comprida, de cabelos curtinhos, que já na época andava leve e solta em uma
motocicleta, sabia até consertar televisão com a mesma habilidade e
desenvoltura com que fraudava. (Ela, é preciso entender, apenas acatava
ordens.)
No entanto, tinha
enorme defeito. Aquela ferrenha lealdade a seu homem. Claro que, se fosse
mulher minha, o defeito seria qualidade que ela exercitaria sem nenhum esforço.
Às vezes almoçávamos
juntos. Íamos a um bandejão localizado na praça principal da cidade. Não,
lascivo leitor, ela não me dava a garupa. Eu, se quisesse, que fosse a pé. De
qualquer forma, era uma honra. Momentos de grande esperança. Nunca havia comido
feijão, arroz e bife de mistura com tanta sensualidade.
Foi por essa época
que deixei de ser poeta parnasiano e me tornei simbolista. Certa vez, num banco
da praça, após o almoço, declamei impostadamente um soneto de Cruz e Sousa.
Depois de eu ter caprichado na chave de ouro, ela perguntou, estupefata: “O que
isso quer dizer?”
Como explicar
penumbroso poema simbolista, ainda mais sob escaldante sol do meio-dia, ali,
pertinho da linha do equador?
Mais tarde [Isso
foi antes; aqui o autor se confunde.] repetiria a façanha em Anápolis,
dessa vez declamando Cruz e Sousa, ao luar, sentado nos trilhos da estrada de
ferro com uma negra no colo. Ressonando. Como vê, poético leitor, nem mesmo uma
negra pôde prestigiar o bardo da Ilha do Desterro.
Mas, na fase
modernista, anos depois, eu iria ter algum sucesso.
Seria bom, no
entanto, não misturar as histórias.
Um dia, depois de
silencioso almoço, em banco da praça cercado de luxuriantes flores, Luzia me
confessou, entre lágrimas, que havia brigado com o marido. Ganhei novo alento.
Não pense, leitor catastrófico, que minha alegria fosse despropositada. A dama
sofria, mas botei fé de que seria um sofrimento passageiro. O mocetão estava
ali, todo ombros e palavras confortantes.
Ela me contou que
havia passado quase toda a noite mexendo na televisão e ele armando barraca com
o cobertor. A certa altura o insaciável sujeito foi à sala, empurrou a mulher e
jogou o televisor pela janela. Ela amava aquele aparelho que só vivia com
defeito.
Trêmulo, tomei as
lindas mãos de dedos longos e macios. Meu deus. Ela chorava e eu me excitava a
ponto de exagerar. Luzia se levantou e disse que ia voltar para o escritório.
Enquanto se ajeitava na moto, eu, num arroubo e sem que ela percebesse, colhi
uma grande flor e a prendi na traseira do veículo.
Ah, o gesto era
comovente declaração de amor. Será que ela entenderia? Lá se foi a Luzia de
tantos versos, ereta e decidida, pelas ruas de Manaus.
Mergulhado em êxtase,
nunca fui tão xingado de filho da puta por motoristas que eram obrigados a me
salvar a vida acionando os freios. Como prestar atenção a trânsito, sinais e
faixas se levava o peito carregado de amor e esperança? Como notar essas coisas
prosaicas do mundo?
Mas, leitor
sentimental, ao chegar à firma vi a moto estacionada, e nada de flor. Oh, Luzia
deve tê-la guardado junto ao seio. Foi o que pensei. Logo, porém, eu a vi,
pétalas revoltas, sobrenadando na água suja da sarjeta.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 50,
15/31998)
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