A arte (quase) invisível
Vá lá que eu me dê o direito de falar sobre arte, coisa que até Miguel Jorge faz. Mas a coisa aqui está mais para tratar de suposta bravura de um homem (bem...) do que para lamber outro burro.
Na verdade, a ideia de escrever sobre valentia surgiu exatamente do pensamento de que bolinar é arte. O conhecimento é tácito, mas a bolinação é largamente praticada, embora não seja tão visível quanto a arte de Siron Franco, que, aliás, se instalou na Bahia para concorrer com a dança da bundinha, a arte baiana por excelência.
Não, bolinar não é arte visível, mesmo porque ela é, por definição, um esporte furtivo. (Aqui parece que me atrapalho: esporte ou arte? Mas não me atrapalho, já que parto do conceito de que futebol é arte, ao contrário do golfe, por exemplo, ou do sumô, momentos em que bunda de homem consegue ser mais feia ainda.)
Conheci no Rio um rapaz sério, de bastos bigodes (o dele e o do namorado), que adorava bolinar em ônibus. No carnaval, então, era o maior êxtase, com os coletivos superlotados e a macacada já meio para o desregrado. Só que Flamínio (nome fictício) bolinava em marcha à ré.
A menção desse antigo colega de trabalho me faz lembrar do quanto ele era artista. Certa feita eu lhe dissera que gostava muito de bacalhau e, poucos dias depois, ele me comunicou que iria preparar uma bacalhoada especial, especialmente para mim, já que o namorado estava viajando. Não que eu duvidasse do talento culinário de Flamínio (nome fictício), mas recusei o convite.
Confesso, ruborizado, que já andei dando as minhas bolinadinhas no cinema. Lembra-me uma vez. Matinée (a sessão da tarde; a da noite era soirée – o povo de minha terra tem mania de francês). Era naqueles tempos em que se frequentava cinema. Nos fins de semana era só lotação esgotada, independentemente do filme.
Entrei na sala de exibição já com pose adequada, mecha de cabelos brilhantinados na testa, e localizei a vítima. A entrada da sala – como a saída – ficava do mesmo lado da tela. O cinema já estava quase lotado e a garotinha se sentava em uma das cadeiras do fundão. Sentei atrás dela e comecei a elaborar minha obra.
O primeiro passo consiste em se fazer notar. Então, inclinei-me e perguntei as horas. Em vez de me informar, ela apenas disse, dando uma espiada por cima do ombro: “Faltam cinco minutos.” (Claro que o verbo não foi assim flexionado.) Momentos depois, voltou-se e deu outra olhadela.
Na arte de bolinar, a segunda olhada significa (mas é bom não confiar muito) que o objeto do desejo vai partilhar da nossa luxúria. Se isso não acontecer, desista de ser artista e vá rimar em outro lugar. É preciso que se tenha a elevada consideração de que bolinar sem o conhecimento da mulher é como pintar quadros para vender na Feira Hippie.
Quando o filme começou, passei para a segunda etapa: tirei o cadarço dos sapatos e estiquei as pernas e as deixei ali, sob a cadeira da vítima. Até que, enfim, distraidamente, o pezinho dela tocou no meu pezão. Ao ficar indubitavelmente claro que o jogo começara, tirei o pé direito do sapato. Foram quase duas horas de farra – sub-reptícia, é verdade.
Faltando uns dez ou vinte minutos para o filme chegar ao fim, interrompi a função e recolhi as pernas, por dois motivos. Uma cãibra traiçoeira e a necessidade de me preparar para sair do cinema sem estar com a mão esquerda no bolso da calça.
Mas, aí, cadê o sapato? Cada vez mais sôfrego, passei a vasculhar com o pé o espaço sob a cadeira da menina. As pessoas próximas deveriam estar intrigadas com aquele sujeito posudo se contorcendo feito cobra e se esticando cada vez mais para baixo. O filme terminou, as luzes se acenderam, o público foi saindo, saindo, até que fiquei ali, a correr de fileira em fileira, a procurar, espavorido.
Então começou a entrar o público da sessão seguinte. Se algum maroto tivesse levado o sapato para a rua, eu estava perdido. O cinema era enorme e eu ali, manquitolando, com um pé calçado só de meia, e meia furada, preta, exibindo um dedão branco com unha por cortar.
Calma, leitor solidário, não entre em pânico: encontrei o sapato. Sabe onde? Debaixo da tela, perto da saída. Nessa altura, imagine, o público inteiro estava de olho em mim.
Já é hora de voltar ao tema proposto (qual?).
O ônibus estava tão cheio de infelizes que nem peido circulava entre os corpos, o que, em certo sentido, era uma vantagem. Foi então que presenciei um ato de bravura. Ou de covardia.
Uma dama, daquelas que empinam o nariz e a bunda ao mesmo tempo, firmava-se na barra do veículo enquanto um sujeitinho se firmava atrás dela, não se sabe se de propósito ou em virtude do aperto. Aí um imprevisível marido, daqueles que se defendem dos sacolejos prendendo a cabeça no teto do ônibus, abriu xingação e armou capoeira. Naquele espaço duro de gente fez-se uma inimaginável roda.
O sujeitinho esganiçou, repetidamente, bem alto e com convicção para que não houvesse dúvida: “Nem de mulher eu gosto!” E olhe que exibia um jeitão de paraíba.
Se ele mentiu para não apanhar, além de ser mau artista, era um bundão. Se assumiu antiga enrustidez diante de preconceituosos vizinhos, demonstrou que valentia não tem lado sexual. Porque conheço gente que prefere apanhar. Dói, mas a dor passa.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 47, 22/2/1998)
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