terça-feira, 16 de agosto de 2011

Hamiltão quer ser honesto. Mas acaba se perdendo. E como!

No esgoto

Não, o título jamais seria “No fundo do poço”, mesmo porque não suporto mais ouvir isso naquela voz rouquenha, com falso sotaque carioca, de bispos e pastores da Igreja Universal do Reino de Deus que ocupam quase toda a programação da TV aberta em determinados horários, com a intrusão, aqui e ali, de “outras denominações”. Percebo que os milagreiros da Iurd assimilam a dicção de Edir Macedo ainda quando obreiros – espécie de leões de chácara com faro especialmente desenvolvido para identificar repórteres. (Quer dizer, antes que a Rede Record abrisse tantas vagas para jornalista...)
É claro que o obsessivo leitor sabe que estive no fundo de um bueiro, modesto buraco sem espírito nem metafísica que não passaria, talvez, de dois metros de profundidade, concretamente implantado no meio de uma rua. Ou seja, o tipo de poço ideal para um materialista, que precisaria apenas levantar os braços e alçar-se para fora – e sem pagar dízimo.
A intenção aqui era realmente falar de um esgoto. A intenção era, porque o assunto já me parece sem interesse, sem significado e sem implicância metafórica. Na verdade, trata-se tão somente de vaga lembrança acordada durante a redação de texto sobre explosivo bueiro de uma apresentadora de TV.
Foi no tempo em que a gente morava na Casa da Água de Gasolina.
O nobre leitor de novelas inglesas poderá sentir-se ofendido com suposta ironia nessa designação de moradia brasileira, com maiúsculas e tudo. Creio que não se sentiria de outra forma mesmo que eu tivesse dito antes, tal qual Manuel Antônio de Almeida ao começar as Memórias de um Sargento de Milícias, “Era no tempo do rei”, pois aqui não há rei além de Pelé, nem nobreza que não seja a dos meus leitores.
Com isso, e a pronta condescendência de quem me lê, explico que o nome da casa se justificava. Para meu começo de conversa (excluída a embromação aí de cima), ele foi criado por necessidade de crianças “crescidinhas” cheias de recordação das diversas residências que tiveram. “Você se lembra do nosso conjunto de rock?”, faz alguém em sereno momento de evocações. “Foi na Casa da Água de Gasolina.”
Havia um posto de combustível... Certo, leitor meticuloso, hoje não se diz conjunto e sim banda, que não é a que Chico Buarque via passar. Mas a história registra também, entre uma e outra qualificação, “grupo de rock”. Isso faz parte da evolução da humanidade, embora não faça parte da evolução deste maldito texto.
Aliás, estou me lixando para qualquer pretensão que possa ter havido ao me embundar diante do teclado.
A banda era formada pelos Cinco Pequenos, expressão que conferia status e privilégio aos menores dos oito filhos de meus pais. A minoria nunca aceitou pacificamente a “discriminação”, razão por que eu – especificamente eu, o mais “atentado” – vivia cheio de hematomas.
É preciso situar o leitor, antes que me perca mais ainda. Os hits da época ficavam por conta de Little Richard (“Tutti frutti”), Neil Sedaka (Oh Carol”), Paul Anka (“Diana”) e Elvis Presley, que também interpretou “Tutti frutti” (“Ture frure”, na versão dos Cinco Pequenos). Anka é o parceiro (involuntário) de Michael Jackson em “This is it”.
Como ninguém sabia inglês, a gente improvisava a letra das músicas com o som aproximado de palavras em português ou palavras que nada significavam. Desconfia-se de que eu era o crooner da banda, dada a escabrosidade das versões. (Qual é, leitor? Sei muito bem que hoje se diz vocalista e não crooner.) Mas minha irmã Lúcia, mais nova que eu, não ficava muito atrás de mim no entusiasmo. Ela conseguia aproximar o tom de “Rip it up” a “Pires de Pirela”, em fantástica performance com uma lasca de lenha à guisa de guitarra.
Ah, sim. Para quem não vem lá de trás comigo: Pirela era um jegue de gigantesca caceta, manco, que circulava pela cidade inteira a ruminar suas segundas intenções. O pires da letra improvisada pela mana era a glande achatada que coroava a rola fenomenal.
Nossos shows se realizavam no quintal, que terminava em um esgoto. A cisterna, no entanto, ficava abrigada em uma área que dividia a cozinha e o banheiro do restante da casa. O forte cheiro de gasolina da água devia ser por causa do posto de combustível que ficava do outro lado praça.
Aceita-se o passar dos tempos, pois não? Dias atrás estive em um pub de Goiânia, e houve certa estranheza. Não de minha parte, leitor intolerante, porque entendi perfeitamente bem o constrangimento da garota que me acompanhava quando a dona do estabelecimento veio até mim e perguntou se eu era o pai dos “meninos” da banda. Entendi. Mesmo assim a caçamba me deixou no fundo do poço.

Hamilton Carvalho

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Em nova fase, Hamiltão vem com tudo. Esperemos que mantenha o fôlego


O bueiro da Ana Maria Braga

Tudo aquilo era falso, leitor. Mas, como sou muito crédulo, pensei testemunhar o Bairro de Ipanema depois de desastre nuclear: completamente deserto – exceto pela presença de intrépida repórter que, calçando mitenes pretas, empunhava um microfone. Na verdade era a apresentadora de TV Ana Maria Braga, e a Ipanema seria “cidade cenográfica” das Organizações Globo.
Chego à conclusão de que desemprego imbeciliza. Que é que eu tinha que ficar a ver programa matinal de televisão? Num lampejo de lucidez, passei a odiar a apresentadora ao me descobrir tapeado. Tudo bem, tudo bem: confesso ter notado que caíra no logro somente depois que ela mesma, magnanimamente, admitiu que aquela reportagem sobre bueiros explosivos se tratava de brincadeirinha.
Era simulação que contava com deslumbrado pesquisador da Universidade Federal do Rio. Entro no assunto com atraso, da mesma forma que a Ana Maria (esse “da mesma forma que” é para não usar o “como”, que poderia ser confundido com o verbo comer), e o leitor não precisa ser informado de que me refiro à onda de explosões de bueiro da Light, a companhia de energia elétrica.
Por sinal, trabalhei na empresa que fazia os buracos da Light. Os escritórios dela ficavam num oitavo andar da Rua 7 de Setembro, ali pertinho da Avenida Rio Branco. Naquelas redondezas, hoje, saltam tampas de bueiro mais pesadas que a do bueiro da Ana Maria Braga. (O Pasquim vivia a debochar dos buracos da Light, como se seus colaboradores soubessem que se armavam bombas de efeito retardado em algumas décadas, ainda que, também ali pertinho, haja explodido bomba de verdade na agência da LAN Chile, Línea Aérea Nacional de Chile à época dos bigodes de Pinochet.)
A minha vida é um bueiro de ressentimentos. Desta ausência de luz é que sai o meu humor, se é que dela sai alguma coisa além dos miasmas de sonhos decompostos. Mas eu poderia abrir, se não um túnel, uma nesga de tolerância para deixar entrar o ar do espírito esportivo da Ana Maria Braga – por mais suspeito que ele seja, desde que a produção do programa passou a inventar “reportagens especiais” na disputa por audiência.
Ah, leitor, sou forçado a admitir que, no início, fiquei encantado com a enriquecedora linguagem da anti-José Luiz Datena da televisão brasileira. Enquadrada pela câmera ela, molemente, sem nenhum toque de sensacionalismo, anunciou: “Estou aqui de permeio a um bueiro.” De imediato, a voz sobressaltada do Louro José esganiçou: “Sai daí, sua doida.” (Informo a quem não gosta de perder tempo que Louro José é um papagaio de borracha que se mexe em cima de um balcão, embora a voz dele provenha de um coitado que se esconde sob o citado balcão.)
Quando a imagem enfocada se distancia, percebo que é o bueiro que está “de permeio” entre a apresentadora e a câmera. Mas não importa. O que importa é o empenho da dama no enriquecimento da linguagem deste exuberante país. Ela, nitidamente, não quer rastejar no campo minado do linguajar comum.
Sim, leitor, é de propósito que uso esse “campo minado”, para arrastar você, quase militarmente, não para a guerra, mas para o bairro da Crimeia. Na realidade, existem dois bairros Crimeia em Goiânia, o Leste e o Oeste. Também como fruto de fertilíssima imaginação, há aqui as vizinhas Vila Nova e Nova Vila e outros “residenciais” e “setores”: Goiânia 2, Goiânia Viva, Universitário, Leste Universitário... É por isso que não me perco na vida: tenho Goiânia para me perder. Mesmo que não venha ao caso – se é que há algum caso –, acrescento, ainda, que morei em outro Crimeia, desta vez em Anápolis (mais conhecida como “cidade de Anápolis”).
É de propósito que aqui chego, e me mantenho no assunto.
Foi, pois, no Crimeia Leste que estive mais “de permeio” a um bueiro do que a Ana Maria Braga. Tratando-se de algo verdadeiro, com sólida tampa de ferro, alguém quis faturar uma graninha, provavelmente (agora não há nada de provável) em um ferro-velho, como hoje se faz à custa da fiação elétrica dos postes. Levaram a tampa e deixaram para mim o buraco aberto bem no meio da rua. Nele caí verticalmente, já que não poderia cair na horizontal. De emprego novinho, corria para pegar o ônibus, cara torta para o lado de onde ele deveria surgir.
Enfiei-me direitinho naquela cava hiante, como se diria em bom linguajar. Simplesmente sumi, ficando invisível para quem estivesse de fora, e dentro, claro, não cabia nada além de mim e dos óculos embaçados pelo vapor da corrida.
Pensando bem, era bueiro tão falso quanto o da apresentadora da Globo. Não me lembro de ter visto fios, nem dutos, nem túnel. Era só aquele sarcófago, que me envolvia feito uma luva.
Ah, por falar em luva. Talvez tenham sido aquelas negras e dramáticas mitenes da Ana Maria Braga que me induziram a acreditar na veracidade da explosão provocada pelo dedo do deslumbrado pesquisador da UFRJ. Isso porque, num ineditismo de sensibilidade artística, a dama do Mais Você abdicara das brancas, alvíssimas mitenes de sempre. Somente por aquela vez, espero.

Hamilton Carvalho

NOTA EDITORIAL

A partir de hoje, 3/8/2011, são postadas crônicas escritas especialmente para Vida Cambaia. A eventual inclusão de textos já publicados será assinalada com data e nome do veículo.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O olhar do autor vagueia através da janela indiscreta de um ônibus...


A volta da viola

Existe em Goiânia uma Praça do Violeiro. Fica no Setor Urias Magalhães. É mesmo um belo lugar. Ninguém liga muito para aquele recanto, mas é realmente um lugar bonito. Passo por ali vez que outra, escorraçado para o trabalho.
Já andava há alguns meses sem óculos e, ao jogar o olhar pela janela do ônibus, divisava o contorno do violeiro – estátua feita por algum “primitivista” – sem me deter em detalhes que seriam, realmente, mal vistos. Sem falar que, meio que afastado da amada (e ela sem fazer questão de se aproximar de mim), estuporei de vez. Mas entrou graninha, comprei óculos, abri os olhos para melhor. E vi...
Leitor, deixe-me dar uma chegadinha para trás. (Para trás no tempo, bem entendido.)
Em 1999 escrevi, indignado: “Que miserável roubou a viola do violeiro?” É isso mesmo, ínclito leitor – alguém surrupiara a viola daquela patética figura. “O instrumento do coitado é hoje apenas o desenho de um gesto”, continuei, em texto brilhante. “Ele, no entanto, está lá, firme, há muitos anos, tocando silêncio no invisível.”
Quando redigi isso aí provavelmente estava atacado pelo espírito de algum poeta goiano vivo. Veja só: “Mas, otimista, penso que talvez o violeiro esteja melhor sem viola, sublimando a canção da eternidade.”
Foi então, com toda essa poesia na cabeça, que me lembrei de uma estátua da minha infância. Quer dizer: minha infância, propriamente dita, não tinha estátua, mesmo porque ela não era lá merecedora de homenagem.
Era estátua de mulher na praça principal de uma das cidades em que residi, “um mulherão de pedra, tamanho natural, calipígia, naquelas proporções ditadas pela boa e pródiga natureza e não por um Versolato qualquer”.
Sem assunto, solto meus devaneios: “Estátua importante para mim, nos meus tempos de menino.” E explico: “Porque – ali, na praça, sem censura e sem frescura – me deu a real noção de como era uma mulher gostosa pelada.”
Já a estátua do violeiro... Como registrei no mesmo texto, é feia, malproporcionada, cheia de bossa. E é de homem. Por isso reconheço: “O escultor da minha terra era macho retado, um artista literalmente de mão-cheia.” Criou uma deusa bem-fornida, longe daquela coisa anoréxica parecida com perereca esmagada no asfalto.
No entanto, confesso que senti pena do violeiro sem a sua viola. Até que, poucos dias atrás, eu o vi, o danado, com ar de quem estava feliz, viola presa na mão direita. Será que o larápio a devolvera, depois de se emocionar com a leitura de minha crônica? Se assim foi, vou ser pastor evangélico no Cepaigo [Centro Penitenciário Agroindustrial de Goiás, hoje com outra denominação e mesmo conteúdo].
Ou será que outro escultor, solidário com o colega, providenciou nova viola e a anexou naquela figura esquisita no centro da praça? Mas não, não. O pétreo instrumento musical seria tão vagabundo quanto o anterior. Se não o mesmo, deve ser do mesmo artista.
Apesar de tudo, fiquei contente. Ainda que a felicidade vislumbrada na figura do violeiro tenha sido dada pelos meus óculos novos.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 40, 29/3/2007)

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Para que não se sinta logrado, o leitor deve conhecer antes a carta reproduzida logo depois do texto do Hamiltão


O nariz da Cameron Diaz

Se me perguntarem por que sou tão fã de Cameron Diaz, a resposta é óbvia, isto é, está na cara: o nariz dela. À parte outras partes, aquele aparelho olfativo (pelo menos o que se vê dele) me fascina.
Quando o rosto da moça aparece na tela do cinema ou em foto de revista (porque é só assim que o deus justiceiro me permite vê-lo), sinto como se houvesse algum problema de foco na imagem que se agasalha – este é o termo – em minha retina. É a sensação de um poema que, de imediato, nos convida para uma releitura.
Narizes, ah narizes de minha vida. Eu me lembro de que, mal chegado a Goiás, fiz rapidamente uma relação entre o nariz e a bunda de determinadas mulheres. A carroceria das narigudas goianas sempre me deslumbrou. É a perfeição que a minha alma tem engendrado desde a puberdade, ou bem antes dela, sei lá.
Na verdade, na verdade, nariz de mulher sempre me comove, mesmo que o danadinho esteja congestionado pelos mucos de uma gripe titânica. De todos os formatos, tamanhos e cores, são os narizes femininos que apontam o meu destino e a estrada do motel. Nesse terreno não permito que nenhum Boris Casoy venha fuçar.
No entanto, refletindo bem (porque este é assunto para profundas reflexões), chego à conclusão de que foi uma professora de matemática que me dotou com a percepção que se adaptaria tão bem à calipigidade das goianas.
A professora tinha um instrumento de fungar bem respeitável. Era enorme, e só não me metia medo quando a docente (meu deus) se sacudia a escrever no quadro-negro, com as fossas a aspirar o pó da lousa. Quando de repente ela ficava meio de banda e mirava a turma, encontrava sempre meu olhar mortiço absorto abaixo da linha da cintura dela, longe das equações. Aquela mise-en-scène de quase todo dia me transformou em péssimo aluno de matemática pelo resto da vida.
É claro que a protuberância nasal enfeitando o rostinho de uma dama pode ser feia, larga, estreita, comprida, adunca, brúxica, arrebitadinha... Aliás, em nariz arrebitado de mulher há também relação nadegal. Vê lá se ela não empina o traseirinho ao desfilar na passarela lúbrica de nossa retina, vê lá, ô marmanjo.
Ah, que suspiro profundo quando me recordo de unzinho narizinho. É tão íngreme que mais parece uma pista de skate. Lindo, lindo. De qualquer ângulo, mesmo daquele em que se divisam o septo e os buraquinhos róseos, sem nenhuma mácula de meleca.
Como dizia, não importa como seja nariz de mulher. Há, claro, gente besta que acha de botar em tudo uma questão de estética. No entanto, se o malandro for muito enjoado quanto a isso, pode tacar o travesseiro em cima, apagar a luz e virar a cara pro lado.
Não, não duvido de que a Cameron Diaz tenha talento. Mas não é culpa minha se aquele maravilhoso nariz não me deixa percebê-lo.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, n.º 31, 25/1/2007)


[Carta de leitor – “Há alguns dias, enquanto descansava após o almoço, me caiu nas mãos o exemplar número 31 do jornal Notícias de Goiás datado de 25 a 31 de janeiro de 2007. Há nesse jornal uma crônica que merece ser comentada. O comentário não é sobre o nariz da Cameron Diaz, que realmente é muito bonito, mas sobre a linguagem chula, feia, grosseira e nada respeitosa que o autor, Hamilton Carvalho, usou em seu texto ambíguo. Na verdade o texto deixa dúvidas sobre o que realmente ele quis dizer. Se pretendia fazer uma apologia ao nariz feminino, os termos disseram o contrário. Vamos aos termos – ‘relacionar nariz com bunda, se deslumbrar com carroceria das narigudas goianas, nariz congestionado pelos mucos de uma gripe titânica, Boris Casoy venha fuçar, (seria ele um porco?), calipigidade das goianas, a professora que usava as fossas para aspirar o pó do quadro-negro, protuberância nasal pode ser feia, larga, estreita, comprida, adunca, brúxica, relação nadegal que o nariz arrebitado possui, nariz que parece uma pista de skate, sem nenhuma mácula de meleca, gente besta. E finalmente o pior: se o malandro for enjoado pode tacar o travesseiro em cima, apagar a luz e virar a cara pro lado.’ Francamente é um desrespeito, nunca vi tanto mau gosto em um só texto. A finalidade da crônica é entreter, deve ser uma leitura leve, quase um passatempo, não uma agressão. Ao final, não se sabe se o texto é sobre o nariz da Cameron Diaz, ou se é uma crítica maldosa sobre o nariz feminino, ou, ainda, se é para criticar a bunda das mulheres goianas. Um jornal precisa escolher melhor o que publicar. O respeito ao leitor deve ser uma preocupação constante. As pessoas gostam de uma boa leitura, elas procuram o jornal porque acreditam tratar-se de leitura confiável, não um festival de bobagens como esse. Em Goiás há profissionais que pensam diferente, que entendem melhor a alma humana e escrevem muito bem. Não é aconselhável preencher o espaço da página com qualquer matéria. Minha intenção é simplesmente dar um feedback e dizer que se um jornal quer ser respeitado deve veicular matérias de melhor nível e qualidade.” José Maria Bastos (Notícias de Goiás, n.º 33, p. 2, 8/2/2007)]

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Na verdade, trata-se de artigo tapa-buraco em fechamento de edição de jornal. A sua inclusão aqui se deve apenas à expressão “mente cambaia”...


Sexo literário

Edição de semanas atrás da revista Veja (que está cada vez mais difícil de ler) traz texto com sugestivo título: “Escritores ruins de cama”. Não que o autor – um tal de Jerônimo Teixeira – tenha feito (acredito) algum teste no estilo alquímico de Paulo Coelho. Os escritores não seriam propriamente ruins de cama, como se fica sabendo ao entrar no corpo da matéria. Alguns, citados pelo repórter, seriam ruins para descrever cenas de sexo, apenas isso.
Toda essa besteira vem (e que o leitor de Notícias de Goiás me perdoe) a propósito de prêmio instituído na Inglaterra por gente de cérebro com um hemisfério só. Bad Sex chama-se a coisa da Literary Review.
Penso, com toda a minha proverbial (e, em certo sentido, autoprejudicial) sinceridade, que sujeitinho que é mesmo bom de cama (tópico, aliás, que não me interessa) não teria como ser bom narrador de atos sexuais de que participa, ou criador de cenas com base neles, já que em momentos assim – ou em qualquer outro – a gente não fica fazendo roteiro de sensações. Elas é que nos arrastam.
“No erotismo, os riscos de um fiasco literário são enormes”, avalia o repórter. “Um tom acima ou abaixo pode resultar em grosseria ou em puritanismo, em humor sem graça ou em solenidade risível.” Falar em grosseria em uma descrição de coito humano (mais uma vez, leitor, perdão) já é puritanismo.
Mas o que me tocou nas avaliações de Teixeira foram o “humor sem graça” e a “solenidade risível”. Com esta minha mente um tanto cambaia, fico a imaginar cena de sexo com humor engraçado: o casal gargalhando à beira do clímax. Ou então a solenidade: “Se me permite, madame, posso chegar lá?”
O moço da Veja é culto. Nem que seja de cultura google. Cita, para humilhar os ingleses, gente como a safada Safo, o pervertido Ovídio e o velho fauno Henry Miller.
Aliás, esse último aí de cima gostava de contar o que fazia na cama com suas mulheres e amantes (que, por sinal, eram também mulheres). Uma delas, a francesa Anaïs Nin, tida como boa narradora de histórias eróticas, devia ser boa só de cama. Apesar de minha imensa preguiça de ler cenas de sexo alheio, senti a barra ao encarar a tradução de Little Birds (Pequenos Pássaros, L&PM Pocket).
Com cento e quarenta e poucas páginas, o livrinho de bolso me tomou mais tempo do que Ulysses, de Joyce. Não o consegui ler de um fôlego, nem de dois, nem de três, nem de sete. Chata, com sua “delicadeza e musicalidade” de estilo (como é dito na quarta capa do opúsculo), a “precursora do feminismo” rateia principalmente na descrição das sensações dos machos humanos durante a reciprocidade carnal do amor (agora você gostou, hein, leitor?). Não entendo por que ela se foi meter nessa.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 28, p. 2, 4/1/2007)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Texto fraco. Ainda bem que é curto

Passageiro na agonia

A gente que anda de ônibus sofre. Mas comigo as coisas parecem mais graves do que para outras pessoas que reclamam da longa espera nos pontos, das sacudidelas das idosas carrocerias, do mau humor dos motoristas (que aumentou com a obrigação que agora eles têm de conferir a identidade dos velhinhos – que lotam irritantemente a minúscula parte dianteira do interior do veículo – e liberar a catraca eletrônica, “automática”, enquanto dirigem), do preço injustificado da passagem, dos variados odores e de outros, e tantos, incômodos.
Minhas filhas concordam quando afirmo que o homem que perdeu a capacidade de se indignar merece uma pá de cal. Mas ressalvam: “Pai, você se indigna demais.”
Outro dia, lá estava eu a navegar em um ônibus relativamente novo, com vigoroso e dinâmico motorista e, ao lado do motorista, um loquaz fiscal da empresa. Lembrei-me de antiga frase: “Fale com o motorista só o indispensável.” E o pior: o motorista era daquelas pessoas que gostam de olhar nos olhos do interlocutor; e nem é necessário mencionar a atitude puxativa para com a “autoridade” fiscalizadora.
O ônibus, apinhadíssimo, parou para receber mais pessoas. Coisa inacreditável que tantos corpos ocupassem o mesmo espaço.
Uma mulher apoiando-se em muletas tentou entrar pela parte traseira, mas foi impedida pelo zeloso fiscal, que mandou o motorista fechar as portas. Correndo desajeitadamente, com pernas atrofiadas e muletas, ela foi até a porta dianteira e pediu que lhe permitissem o acesso àquele veículo de concessão pública. Nem o motorista nem o bate-pau demonstraram qualquer boa vontade para atender ao pedido da cidadã, apesar do coro de sofredores dentro do ônibus: “Deixa, deixa, deixa...”
“Se ela quiser entrar”, sentenciou o altivo fiscal, “vai ter que ser pela porta da frente, para se identificar e mostrar a carteirinha de deficiente físico.” Foi aí que a mulher pediu que ele se identificasse. Ele nem tchum, porque autoridades brasileiras não se dignam mostrar credencial para pé-de-chinelo. Ela argumentou que precisava entrar por uma das portas de trás, pois conseguiria lugar para se sentar. Se entrasse pela frente teria de passar pela catraca, e ela estava sem carteirinha.
Ah, aí é que não iria entrar mesmo, altissonou o fura-greve profissional. “Eles” – a mulher tentou mais uma vez argumentar – “tomaram minha carteirinha porque pessoas em cadeira de rodas ou usando muleta não precisam mais se identificar como deficientes.”
Apoiou-se em uma das barras que ladeiam a porta e tentou abrir a bolsa para mostrar o que chamou de lei. Então o fiscal, de pé à porta feito um cérbero, mandou que o motorista “arrancasse”. Nem precisava, pois o homem já acelerava raivosamente. Deu uma arrancada digna de pole position. A mulher foi arrastada, mas soltou-se a tempo e evitou a queda, graças a longa experiência com muletas e pernas atrofiadas.
Até o fim do percurso tive de ouvir a voz antipática do fiscal, que não cansava de repetir: “Ô povo ignorante.”
Sofro de doer.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, nº 27, 28/12/2006)