quarta-feira, 11 de maio de 2011

Muito geográfico e quase ecológico, Hamiltão só não fala do efeito estufa...


Coriza

As condições atmosféricas me determinam mais que bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. Não é que a minha saúde esteja ruim, considerando mesmo os excessos sacramentados. Mas a gripe ronda por todos os lados.
Numa espécie de síndrome do pânico saí de casa. (Sempre me sinto assim quando não tenho a fácies geográfica do terreno em que piso.) Era necessário fazer a crônica. Era necessário cumprir o compromisso com o leitor. Era necessário não sucumbir às circunstâncias e às cegas expectativas.
Quando, já no ônibus, vi dama das mais gostosas a comprimir o narizinho com papel higiênico, primeiramente deu peninha em mim. Depois senti inveja: eu, se estivesse com uma gripe igual à dela, não poderia sair de casa. Os compromissos seriam perdoados, as mágoas adiadas, os projetos... – bem, estes não os tenho.
Algo de chato na gripe é a coriza, embora para a meninada do meu tempo não era propriamente incômodo. Na verdade, era uma espécie de moda. Não precisava estar gripado para deixar o monco escorrer.
Acredito que minha mãe não permitia que os filhos ficassem a exibir catarro, pois me lembro da inveja que eu tinha de coleguinhas habilidosamente catarrentos.
Eles deixavam a melecosidade descer das fossas nasais até a fímbria do lábio. Então, com forte aspirar, faziam a gosma percorrer o caminho de volta e, num repente, se ocultar nas cavidades.
Era um movimento perene, como o das marés. Chegava a esfolar a pele, traçando duas riscas avermelhadas da boca ao nariz. Uma beleza.
Mas o mais charmoso mesmo era a coriza de um só leito. Admirável a capacidade que certos moleques tinham de fazer o muco brotar de apenas uma fossa. Já não se tratava de Tigre e Eufrates, mas de solitário Nilo.
Com o passar das horas, naquele sobe e desce, a gosma, de início transparente, ia-se adensando até se tornar opaca, leitosa. Em cada margem formava-se uma crosta esverdeada, em filete, tal qual mata ciliar.
Garoto que sabia cultivar a coriza àquele ponto, ao sentir que a coisa pesava e endurecia com o engrossar, passava o braço na Mesopotâmia, drenando-a. Viam-se então, com nitidez, as riscas avermelhadas. E tudo recomeçava, como o regime das águas.
Por falar em água. Houve tempo em que minha família comprava água de beber. Lembro-me bem de ensolarada manhã. O vendedor estacionou a carroça-tanque à porta de casa e desceu, com aquele exuberante chapelão de couro.
Pegou uma lata, das de querosene Jacaré, e passou a enchê-la enquanto o líquido lavava a mão que segurava o pau que atravessava a boca da vasilha. Eu lá, olhando.
O homem entrou em casa, eu o segui até a copa, lugar muito fresco onde ficava o pote grande. Sempre em silêncio, começou a despejar. Eu lá, olhando.
Percebi que na ponta do enorme nariz do aguadeiro se formava uma gota. A gota crescia, e eu torcendo para ela cair antes que o homem esvaziasse a lata.
Em fascínio, queria ver se o pingo acertava no alvo que eu criara para ele: a boca do pote. Quando o homem levantou o fundo da lata para fazer um restinho de água escorrer, lá se foi ele, o pingo... Não ouvi, mas era como se: pling. Na mosca.
Ninguém soube. É claro, cúmplice leitor, que só voltei a beber água em casa depois que o conteúdo do pote se renovara.
Ah, os meninos moncosos do meu tempo...
Deixei para trás a mocinha gripada e cheguei à Gazeta, onde, cheio de devaneios, escrevo. De costas para a Redação, ouço ruídos gripais. Coleguinhas sofrem, sofrem.
Eis, pois, que sou determinado e determinista. Não há pânico que resista a uma boa evacuação mental. É como diz o provérbio: quem tem medo de cagar não come.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 199, 3/6/2001)

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