quarta-feira, 4 de maio de 2011

O texto havia ficado fora da seleção. Em virtude de futura referência ao seu conteúdo, o autor admite, agora, que ele seja incluído


A culpa é do índio queimado

Sou cidadão respeitador da lei, embora ela tenha sido esquiva na pouca vez que precisei dela, principalmente na figura de um promotor com penteado à Ronaldinho [hoje Ronaldo, já ex-jogador de futebol]. Mas é claro que os telefones existem para que juiz amigo de amigo de réu seja acionado. Por falar nisso, cadê o meu processo?
Ah, leitor esperto, você não pinta nesta página para ler chatice sobre justiça brasileira (sic). Nem mesmo sobre a francesa, que puxou para trás das grades o garotão Guillaume Depardieu, ator e filho do ator Gérard.
Por uma traquinice. O menino não botou fogo na casa de ninguém nem empunhou faca para ameaçar, apenas foi dar uns mergulhinhos na piscina.
Uma traquinice. Não destruiu bens materiais nem espirituais, como trinta anos de produção literária, documentos, portfólios, móveis, roupas, objetos dos filhos do dono da casa etc.
Não sei que prova a polícia francesa produziu para permitir que Guillaume seja julgado convenientemente, já que não houve corpo de bombeiros, laudo pericial, testemunhas, multidão, faca, fogo, muito fogo.
O ator responderá a processo por violação de domicílio. Agora, não sei se juiz ou promotor vai receber telefonema de coleguinha durante a audiência.
E aí violação de domicílio passa a ser boato, mesmo que uma dupla de policiais tenha detido o infrator em pleno “ilícito”, devendo, pela lógica, ser convocada para depor no julgamento.
Mas a dupla, caída de repente na imaterialidade, nem sequer é lembrada pela “lei”.
Cadê o Ministério Público? Ah, sei, está cuidando da ecologia. Meninada combativa, essa geração PV. Tempos atrás turminha do direito gostava mesmo era de MCC (Movimento de Caça aos Comunistas, aquele das ameaças às bancas de jornal).
Ah, leitor espertíssimo, você não cai neste canto de página para ler sobre aquilo de que está cansado de saber: palavrório, demagogia, corporativismo, interesse de classe.
Afinal, a culpa é do índio queimado.
Já que é para avacalhar... Ah, lembrei-me de uma manchete do Pasquim, em outros tempos de lei.
Os editores, cansados de ter exemplares do jornal recolhidos das bancas pela polícia federal pouco tempo depois de colocados à venda, perderam a paciência e tacaram na capa: “Já que é para avacalhar, ABAIXO A DITADURA”.
Uma beleza. De longe vi aquelas letras enormes, mas, ao chegar à banca, a edição já tinha sido recolhida.
Pois é, já que é para avacalhar, e não vai dar em nada, confesso que também violei domicílio para tomar banho de piscina. Só que o domicílio era um clube e eu estava muito bem acompanhado.
A garota, maluquinha, fez a sugestão e eu topei. Saltamos um muro altíssimo, não sei como. Talvez porque estivéssemos bem altos.
Plena segunda-feira, 11 horas da noite, e eu lá, peladão, com uma jovem peladinha. Depois de cada trepada uma enxaguada. A mocinha se empolgou tanto que menstruou.
Na hora de ir embora empaquei diante do altíssimo portão em que a moça já havia trepado (depois de tantas trepadas...). A roupa dela ficou presa naquelas pontas criminosas, e eu peguei isso como desculpa.
Pedi que voltasse. “Vamos sair pelo portão principal na maior cara de pau.” Ela se assustou. “O vigia vai chamar a polícia.”
Insistia para que saltássemos o portão, só que não sabia do estado lastimável de minhas pernas. Bambas, bambas.
Tomei-a pela mãozinha e a arrastei em direção à entrada principal. Chamei o vigia e disse, com o maior desplante, que a gente se distraiu e esqueceu de sair.
Plena madrugada de terça-feira. O vigia fez que acreditou, e aconselhou, abrindo o portão: “Mas não façam isso mais não, viu, meus filhos?”
Agora imagine, leitor avesso a varas criminais, se eu não fosse tão cumpridor da lei.
Você não é testemunha de minha confissão. Você apenas “ouviu falar” que violei domicílio para trepar numa piscina, dentro e fora, fora e dentro.
Prova testemunhal não vale.
Assim, absolvido, estarei pronto para mais uma violaçãozinha. Absolvido por um promotor de cabeça raspada à Ronaldinho antes que o juiz se pronuncie. Que direito legal!

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 73, 23/8/1998)

Nenhum comentário:

Postar um comentário