O condenado
Uma coleguinha aqui do jornal veio perguntar por que eu ficara com raiva do mais velho de meus irmãos. “Ora, só porque ele disse pra sua mãe que você ia arrombar a mocinha?” É pouco? Esse povo...
A mocinha em questão era Norma, a Olhos Verdes. Acontece que o irmão aterrorizou nossa mãe com gesto de grande obscenidade, muito grande.
Com as mãos estendidas e abertas, palma contra palma a considerável distância, ele ficava a repetir: “Ó, mamãe (ele era dos poucos que chamavam mãe de mamãe), ó, mamãe; se deixar, ele vai arrombar a menina.” O “ó” queria dizer “olha”.
Aliás, não tenho que ficar a dar satisfações a leitor nenhum. Houve mesmo leitor que me colocou literalmente contra a parede para que eu antecipasse o desfecho de uma historinha babaca.
Foi em festinha de arromba, quando um esgotado redator só queria mesmo era depredar o cérebro. O moço achava que eu não tinha o direito de ficar “enrolando” (quer dizer, enrolando a história).
Mas aquilo foi bom. Eu, que estava com bloqueio e não sabia o que escrever na próxima crônica, tive que bolar alguma coisa na hora. Aproveitei esse “material” improvisado para me desincumbir da árdua tarefa que me delegaram.
Ah, se todos fossem iguais a ele, um leitor fiel e inteligente... Ontem mesmo encontrei leitorzinho de-vez-em-quando, já para lá de encanjebrinado, que tentou botar o meu moral na esteira do trator. “Você tem talento para escrever coisa melhor.”
Coitado de mim. Pensei que estivesse “botando” o “talento” todo nesta coisa semanal. “Você tem talento para escrever coisa melhor...”
Também existe gente que diz que sou imoral, eu, que não sei pronunciar sequer um palavrão.
Alguém me informou que um grupo de advogados, num clube, a apreciar – com todo o direito – a bunda exposta das garotas à beira da piscina, prolatou sentença contra este pobre que só vê região glútea coberta. Com exceção da própria, claro – assim mesmo quando ela se reflete no lago de Narciso, quer dizer, na água do vaso sanitário.
Os apreciadores de ninfeta diziam estar preocupados com as crianças que, talvez interessadíssimas em saber o número de mortos no terremoto da Índia, poderiam folhear este jornal.
Mas há o outro lado. Conheço pelo menos duas respeitáveis damas que fazem parte de minha defesa.
Uma delas foi ao ponto de afirmar que, mesmo escrevendo sobre meleca e prexeca, eu o faço com elegância. Meu ego, mais inflado que barriga de juiz aposentado, agradece.
Há, ainda, minhas filhas, minhas próprias filhas. Uma delas chegou a coligir parte das execrandas crônicas para publicação em livro. (Enquanto advogados prolatam, eu protelo.)
Como vivia a repetir antigo revolucionário: a questão está na forma, não no conteúdo. O segredo é xingar sujeitinho de filho da puta fazendo-o sentir-se entronizado na cadeira do meio. (Ah, o juiz sentado ao lado do promotorzinho de cabeça rapada à Ronaldinho, ah, meritíssimo...) [A moda em referência é a da cabeça do jogador de futebol hoje Ronaldo.]
Afinal, qual seria a norma? Ah, Norma, eu falava de Norma. Gostosa dum tanto...
Eu parolava no quarto de minhas irmãs quando ela entrou, já intimazinha da casa. O zé-da-garoa, que estivera a dormitar na cuequinha samba-canção, deu violenta estremunhada.
Sentado numa cama, quedei-me mudo enquanto as garotas conversavam tibiamente. As irmãs, uma a uma, como se estivessem de acordo, foram deixando o quarto, que continuou com a porta aberta.
A cena, leitor de textos eróticos, me lembra uma que ocorreria anos depois, com Maria O.
Norminha, na mesma cama que eu, a quatro palmos, pousava ternamente o olhar em mim, soltava um risinho nervoso, revirava os olhos, suspirava. Eu botava os pupilões naquele rostinho, tossia um riso imbecil, desviava o carão, gemia.
Assim, o clima estava a se formar. Era preciso ser macho e arrastar a bunda pelo menos dois palmos para o lado da garota. Mas, sinceramente, não sei se teria coragem para fazê-lo.
Eu a tinha moça feita, com seus 17 anos. Era difícil acreditar que ela daria bola para um pirralho de 13 ou 14 anos, anêmico, asmático, trombudo. Trombudo não no sentido insinuado pelo mais velho de meus irmãos, juro, leitora, juro.
Sim, o irmão entrou no quarto. Ficou sentado ao outro lado de Norma até que mãe, que botava fé no namoro, apareceu na sala de jantar e de lá fez psiu para ele, chamando-o com enérgico indicador.
Dali, teso na cama, com a menina a me olhar, vi o desgramado fazer o grande gesto obsceno. Tadinha de mãinha.
Perdi a oportunidade não de “arrombar” Norma, mas pelo menos de dar umas bicotinhas nela.
Injunções da vida nos afastaram. Tempos depois eu a encontrei em estreita rua do centro da cidade, como anos mais tarde encontraria Maria O. na Rua Barão do Rio Branco, em Anápolis.
Agora, amigo, será que tenho de viver a dar explicações a coleguinhas, a advogados, a leitores impacientes? Ora, que decretem o meu Justizmord.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 183, 11/2/2001)
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