Maria O.
Assim que me mudei com a família para a Vila Góis, em Anápolis, teve início mais uma fase de paixão juvenil em minha sensaborona vida. Maria O. me bateu o pé na soleira do coração.
Eu, o imbecil, em vez de arreganhar para ela ambos os ventrículos, queria era estar apaixonado pela professora de inglês. Queria porque queria. Deu no que deu.
Não apareceu nenhuma pessoa de bom senso para me chamar a atenção: “Olha, lorpa, olha o pedaço de pé-de-rabo que é todo teu, é só querer.”
Eu queria era querer a chuladinha professora de inglês. Ah, insensatez. E ninguém para me chamar à realidade.
Aliás, a própria Maria O., em tarde amena, sentadinha ao meu lado na mureta da varanda lá de casa, me fez algo tal uma censura. Pousou nesta pálida cara os olhos nigérrimos, aquosos, e murmurou, a trêmulo: “Pensei que um homem saberia quando uma mulher quer namorar com ele.”
Ah, mocinha toda mulher... Confesso que não fui homem suficiente para encarar tanta beleza, tanta gostosura, tanto tamanho de mulher.
Ora, leitor abismado, se ninguém de minha família acreditava, como poderia eu, o misérrimo, acreditar?
Já cheguei a ser assim, leitor. Já tive isso de antecipar o que pensariam os outros e, em certo sentido (ou, vá lá, no sentido exato), me castrar. Na verdade, nunca dei nada por mim.
Mas não vou tomar tempo de algum perdido leitor psicologizando esta coisa que sou.
Pensando bem, eu namorava Maria O. e não sabia. Com este meu jeito sonso, dissimulado. Às escondidas de mim mesmo.
Ora, pois. Estou aqui, sem querer, a embromar o leitor, já a escrever o fim melancólico do meu romance.
Só faltava dizer que, tempos depois, encontrei Maria O. em uma daquelas estreitas ruas do centro da cidade, e ela me tratou com altanaria, mas também com muita finura, muita gentileza – e senti, então, as amarras do meu barquinho se romperem.
Naquele dia, depois de, tartamudo, me despedir da menina, lembrei-me de outra rua estreita em outro centro de cidade e... de Norma.
Leitor, vivo a reeditar esta vida cambaia.
Norma foi outra de minhas loucas ereções. Por ela, não só uivei para a lua, repetidas vezes, como também para o chuveiro.
Aliás, na casa em que eu morava não havia chuveiro. Todos tomavam banho em uma bacia de zinco colocada no centro da cozinha.
Bem, se não poderia uivar para chuveiro, pelo menos o fazia para conhecidíssima aranha no teto da apertada privada que ficava no fundo do quintal. Lá deixava, cotidianamente, diáfana e patética gotinha.
Eu doía de paixão.
No entanto existia, para que o mundo não fosse perfeito, um empata-foda, um crudelíssimo empata-foda.
Era o João. Fazendo as vezes de meu chefe na Casa Santo Antônio, o infeliz abusava das prerrogativas.
Talvez eu caia no exagero, mas o rapaz fazia algumas coisas meio deslocadas de eixo. Por exemplo: houve mais de um domingo, meu diazinho de folga, em que o carola me fizera ir com ele à igreja do Seminário para pegar missa.
Sem nem falar da vez em que, atacado de súbito e inexplicável medo, me obrigou a dormir com ele no quarto que ficava na parte de trás da mercearia.
Ao ver aquela cama de casal (o caixeiro-chefe era solteiro), senti-me uma infame putinha. Durante toda a noite, não preguei sequer uma banda de olho.
Além do terror esfinctal, eu estava gripado e tentando administrar uma crise de asma.
Ali, no escuro, no calor... Meu deus. O brilho das brasas... as muriçocas. Já que existiam brasas, não deveriam existir muriçocas, ora.
Apesar de minha alergia, o desgraçado do João acendera umas quatro espirais daquelas ironicamente chamadas de Boa Noite, espalhando-as pelo quarto.
Ah, sim, leitor, ah, sim. Eu falava de Norma. Quer dizer, falava mesmo era de Maria O., a monumental garota da Vila Góis, em Anápolis.
Maria O., assim como antes o fizera Norma... Oh, leitor, estou saturado. Vamos tentar desembrulhar esta merda em outra ocasião. Vamos?
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 180, 21/1/2001)
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