João, o empata
A acusação existe, a de que sou um “escritor” cheio de embroma. (Hoje estou bom de deverbal; a começar pelo título.) A acusação pode até fazer sentido, já que tenho o compromisso de encher 80 linhas sem ter o que dizer.
No entanto, penso (pouquinha coisa, mas penso) que o leitor sem preguiça deveria relevar este estilo gauche e arrevesado. Afinal, não sou diplomado em letras.
Ah, por falar em letras: acabo de receber a notícia de que Elzinha, a filhona mais velha deste contrabandeado cronista, passou no vestibular. Curso de letras. (Espero, sinceramente, que ela se torne boa advogada e consiga um cargo público. Pelo menos um.)
Olha aí, leitor de área de risco, olha aí o descarrilamento. Voltemos aos trilhos.
Bem, a acusação... A minha intenção era, na verdade, terminar com a porcaria de assunto sobre Maria O. Acontece que Norma entrou na história e, depois dela, João roubou a cena.
Será, mesmo, que a acusação procede? As personagens é que me arrastam pelos trilhos pesados das palavras. Falemos, pois, de João. Sem delonga.
Ele era o caixeiro-chefe da Casa Santo Antônio (o mareado leitor ficou sabendo disso pela crônica da semana passada). Eu, o caixeiro chefiado.
O dono da venda – onde havia desde panela de alumínio e xampu de ovo até açúcar, pão, maria-mole (o doce), banana, brilhantina, cocada, cachaça, grampos Mise-en-Plis... –, o dono era seu Antônio, que, como tantos outros Antônios, viera de Santo Antônio de Jesus para se instalar no comércio.
Aliás, quando se via neguinho branquelo por trás de balcão não poderia haver dúvida: mais um de Santo Antônio de Jesus. Quase todos parentes. João era primo de seu Antônio, que era primo de outros donos de venda distribuídos pela cidade.
Seu Antônio ficou rico, comprou Kombi. João, que já era uma espécie de sócio da mercearia, queria ficar rico, comprar Kombi, ir a Santo Antônio de Jesus para se casar, retornar à terra da promissão com a mulher, instalar-se no comércio e, depois, mandar vir primo para ser o caixeiro de confiança.
João me foi empata-foda. (Que o leitor não se espante: estou apenas voltando ao assunto.)
Eu era apenas um balconista tímido, envergonhado de estar à luz do dia. Mesmo assim caprichava na brilhantina e na mecha sobre a testa.
Quando Norma aparecia para comprar língua de sogra (o biscoito) ou cocadinha, eu franzia o cenho como se quisesse espantar o bem e o mal. Era louco por ela. Mas, ao fazer escorregar a medo meus olhos mortos sobre aqueles olhos verdes, não tinha a menor esperança.
Ao sair, a mocinha chamava o João com um sinal, e iam conversar lá fora, aos cochichos. Não, não havia a menor esperança. João voltava e dizia, mais inchado que cururu cutucado: “Ela tá doidinha por mim.”
Não, não sei o que eu sentia ao ver aqueles dentes largos no sorriso largo. “Doida por mim...”
Comecei a desconfiar de que João era empata quando, num domingo, fomos ela, uma amiga dela, o chefe e eu pegar missa na igreja do Seminário. Lembro-me muito bem da ida. A garota estava gárrula, saltitante. Vezinha ou outra, dava um esbarrãozinho em mim.
Da volta não sei de nada, pois procurava reviver na memória momentos que poderiam significar. Cada palavra, cada cocada... Um brilho mais brilhante no verde dos olhos...
Desconfiei que João, feito confidente de Norma, estava a traí-la miseravelmente – e a mim também. O desgramado.
A certeza só viria mesmo depois que aquela menina de grandes olhos e carnuda boca fez amizade com minhas irmãs e ganhou minha mãe com bela simpatia.
A esta altura me bate uma dúvida. Será que não foi injustiça de minha parte afirmar com tanta ênfase, na crônica anterior, que João era “crudelíssimo” empata-foda?
Perto do que me fez depois o mais velho de meus irmãos, ainda com relação a Norma, ele não passaria de um empatazinho. Mas isso, mesmo que me acusem de embromador, vai ficar para outra vez. Enfim, são tantas coisas para tão poucas linhas...
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 181, 28/1/2001)
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