Norma
O rádio, a um canto da sala de jantar, começava a vibrar com um dos sucessos do momento: “Festa de arromba”, de Erasmo Carlos.
À mesa, eu ensaiava letra miúda com a caneta-tinteiro que minha mãe me dera no aniversário. Não era nenhuma Parker, mas era sonho.
Seria talvez um consolo, pois já desde muito criança eu não sabia o que era ser presenteado, e mãe, de repente – sem eu ter pedido ou sequer insinuado –, me chega com aquela reluzente Pilot marrom. Coisa para adulto.
Consolo? Por quê? Parece que estou aqui a querer enganar o leitor, como se mãe tivesse ficado com peninha de mim por causa de Norma, e deu presentinho para me dengar. Oh, dó.
A tarde caía. Com cuidado, pousei a caneta sobre o papel. Senti leve arrepio. Esfreguei as mãos e as prendi, com força, entre as coxas. Norma...
Ela passou a frequentar nossa casa com o pretexto de ser amiga de minhas irmãs. Talvez, para ela, a coisa fosse fácil para mim, mas não poderia ser.
Aquela turbulenta família de dez pessoas não era de dar trégua a nenhum de seus membros. Tudo ali era público e devassável. E eu, caríssimo leitor, não sei por que razão, tinha que ser o mais visado de todos. Não sei por quê.
Voltara a estudar, depois de ter vivido a minha Idade Média em São Paulo.
Pela escola, tive que deixar o emprego na Casa Santo Antônio, onde Norma fez a grande descoberta, quer dizer, conheceu o parvo garotão de cabelos gomalinados e mechinha curva sobre a testa de melão.
Ah, se não fosse o João... Na verdade, ele apenas teria retardado. O empata-foda, de fato, foi o mais velho de meus irmãos. É certo que João, meu chefe na Casa Santo Antônio, tinha suas esquisitices, como o leitor soube de texto anterior. Mais um exemplo?
Uma vez João, dono de noiva em Santo Antônio de Jesus – lá no fim do mundo –, queria comer discreta dama ali das redondezas da mercearia.
Antes, porém. O moço era meio rechonchudo, rosto largo com marcas de espinhas, meia papada, pele muito branca. Dormindo, roncava (o leitor sabe como fiquei sabendo disso). Roncava e peidava, feito porco na engorda.
Tinha a mania de puxar o catarro da esquina do fundo do nariz e o engolir, como se fosse ostra temperada com limão. O estranho é que a sugada vinha quando o rapaz estava satisfeito com alguma coisa.
(Este espaço de crônica teve um belo ilustrador que, a cada dez minutos, fazia como João. Só que a puxada era mais poderosa: a sólida redação da Gazeta tremia toda.)
O caixeiro-chefe da Casa Santo Antônio pretendia, pois, acochambrar a dama discretíssima que, vez ou outra, fazia comprinha na venda. Pretendia – e o conseguiu. Fiquei surpreso com a proeza de João, principalmente porque nem ele nem ela deixaram transparecer qualquer coisa.
Aqui, baixinho entre nós, leitor fuxiquento: desconfio de que ela era casada, casada talvez com algum motorista de caminhão de longas jornadas. Um macho pra chuchu. Penso que João me fez acompanhá-lo à casa da mulher para garantir a barra.
Afinal, ele era chefe abusado. Até pau de cabeleira... eu. Pior: auxiliar de foda, guarda-trepada, sentinela de coito, vigia de metida.
Ironia, ô ironia. E eu, querendo desmoralizar João como empata-foda... Aliás, o moço era um empata muito do interesseiro. Norma, gostosissiminha, fora feita para ser cozida a fogo brando.
Bem. Como dizia, acompanhei João à casa da mulher. Fomos recebidos a meia porta e a meia voz.
Ela apontou para o sofá, eu me sentei. Ela pegou a mão do colega, e o levou para o quarto, cuja porta ficava bem em frente de meus tensos e macérrimos joelhos. Tudo muito quietamente.
A luz da sala miudinha era fraca, o chão bem encerado, quase não havia móveis. A casa não tinha forro, e as paredes, azuis, nuas e limpas, não chegavam até as telhas, deixando um vão, no centro, de cerca de metro e meio.
Por aquele vão é que me chegavam os gemidos, os ofegos de João, o ranger, o protesto das molas da cama. [O lugar-comum de molas que rangem em protesto é, no caso, aceitável; “mais que aceitável”, enfatiza o autor.]
De repente, vigorosa puxada de catarro e um longo huuummm... O homem estava satisfeito.
Com a caneta-tinteiro que mãe me dera de presente caprichei na perna do ene, enquanto se ouviam os últimos acordes da música de Erasmo Carlos. Levantei, desliguei o rádio e caminhei na direção da porta que dava para a rua.
No que eu fazia tudo isso, a cabeça trabalhava, reformulava: não, João não foi tão cruel quanto o mais velho de meus irmãos. Meu irmão fez algo imperdoável.
Por que ele foi fazer aquilo? Por que disse para mãe que, se me deixassem por conta, eu iria “arrombar” a Norma? Por quê?
Abri a porta. Sonoitinha. Esfriava. Alonguei os olhos tristes até a esquina, como se esperasse que a qualquer momento fosse surdir, ágil e bela, a figura de Norma. Esfriava.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 182, 4/2/2001)
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