quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Hamiltão trai obsessão por Maria O., a sensualíssima morena de Anápolis. E não anda nem desanda


Cavalgada

Justiça seja feita: a vida me tem sido pródiga de grandes amores e paixões azoretadas. Quer dizer, pelo menos promessas... Olha, leitor, é que sou bobo de doer. Deixar escapar Maria O. daquele jeito... Não há desculpa.
Nem José de Alencar, em Sonhos d’Ouro, descrevera tão romântico passeio a cavalo. O cavalo, ou a égua (já não tenho certeza), estava em pelo.
Naquela época, o cantor Nelson Ned (que mais tarde passaria a prestar relevantes serviços à máfia cubana de Miami) fazia sucesso: “Eu te dei meu amor por um dia / E depois, sem querer, te perdi...”
O disco, na vitrola, rodava repetidas vezes nos cômodos que Maria O. ocupava com a tia, o primo e a mulher do primo. Minha família morava na parte maior da casa, que tinha entrada independente, lateral, onde ficava a varanda.
Esse primo... Quando ficava sozinho com a mulher, ele a fazia rodar mais que o disco no pino da vitrola, no maior escândalo, com o solão comendo lá fora. Parece-me que era o único trabalho que o desgraçado tinha.
Enquanto isso, na varanda, minhas irmãs, Maria O. e eu ficávamos a bater papo, sentados na mureta. Ah, foi ali, leitor alencariano, nas tardes ensolaradas da Vila Góis, que irresistível paixão começou a tomar conta de mim.
Aquelas roçadinhas de Maria O. faziam que eu vivesse a descabelar o palhaço, com mais tesão, até, do que nos tempos de Norma.
Talvez porque não houvesse, como antes, o avassalador sentimento de culpa que me levava a rezar e a pedir mil perdões a Deus depois de cada punhetinha. (A leitura de um tal de Manual da Vida Sexual, feita às escondidas, no telhado, me transformou no Cão.)
Era começo de cálida noite anapolina. Eu me preparei cuidadosamente, após demorado banho. Vesti a melhor roupa. Camisa nova, azul-clarinho, de listras verticais, calça marinho, sapatos lustrados com Nugget.
Namorei-me ao espelho, depois de untar os cabelos com creme, aplicado com vigorosa massagem. Pentear era um ritual. Tempão ali, a arrastar fios com pente Flamengo.
Hoje duas garotinhas diriam: parece até que vai casar. E olha que não me trato com o carinho de antigamente, quando me preparava para o cinema.
O leitor que me acompanha há algum tempo sabe que meu pai dava dinheiro para que eu fosse à zona, mas ia mesmo era ao cinema. (Acredito que o velho estivesse com medo de que me tornasse veado. De qualquer forma, John Wayne e Humphrey Bogart não deixariam.)
Naquela noite estava me sentindo tão nos trinques que resolvi aproveitar melhor de mim. Maria O. conversava com minhas irmãs, no quarto delas.
Sem pedir licença, entrei e me acomodei numa cama ao lado de Maria O. Não demorou, minhas irmãs, como se tivessem combinado, saíram, uma a uma. O leitor já conhece cena parecida. Agarrei a oportunidade. A voz da experiência me gritava.
Fiz o que deveria ter feito com Norma. Arrastei a bunda alguns palmos para perto da jovem. Ela ofegava. Senti o hálito de capim recém-esmagado.
Com insuspeitada ternura, afastei-lhe com a mão uma mecha dos longos cabelos e pousei os lábios em sua têmpora esquerda, fazendo-os deslizar lentamente para beijar as pálpebras que se cerravam.
Dali, os lábios desceram por um lado do narizinho reto e foram-se comprimir, com maciez, muito docemente, nos lábios delazinha...
Quando senti que a primeira de minhas irmãs voltava, levantei-me todo trêmulo, com as pernas bambas, e, tentando disfarçar a ereção, saí do quarto. Fui ao cinema.
Dias depois iríamos a uma chácara. Lá ouviria como nunca, saindo do alto-falante de uma vitrola portátil, a voz de Nelson Ned: “Eu te dei meu amor por um dia / E depois, sem querer, te perdi...”
Mas o bom mesmo foi a cavalgada. Nem José de Alencar para descrever.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 184, 18/2/2001)

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