Cavalgada
Justiça seja feita: a vida me tem sido pródiga
de grandes amores e paixões azoretadas. Quer dizer, pelo menos promessas...
Olha, leitor, é que sou bobo de doer. Deixar escapar Maria O. daquele jeito...
Não há desculpa.
Nem José de Alencar, em Sonhos d’Ouro, descrevera tão
romântico passeio a cavalo. O cavalo, ou a égua (já não tenho certeza), estava
em pelo.
Naquela época, o cantor Nelson Ned (que mais
tarde passaria a prestar relevantes serviços à máfia cubana de Miami) fazia
sucesso: “Eu te dei meu amor por um dia / E depois, sem querer, te perdi...”
O disco, na vitrola, rodava repetidas vezes
nos cômodos que Maria O. ocupava com a tia, o primo e a mulher do primo. Minha
família morava na parte maior da casa, que tinha entrada independente, lateral,
onde ficava a varanda.
Esse primo... Quando ficava sozinho com a
mulher, ele a fazia rodar mais que o disco no pino da vitrola, no maior
escândalo, com o solão comendo lá fora. Parece-me que era o único trabalho que
o desgraçado tinha.
Enquanto isso, na varanda, minhas irmãs,
Maria O. e eu ficávamos a bater papo, sentados na mureta. Ah, foi ali, leitor
alencariano, nas tardes ensolaradas da Vila Góis, que irresistível paixão
começou a tomar conta de mim.
Aquelas roçadinhas de Maria O. faziam que eu
vivesse a descabelar o palhaço, com mais tesão, até, do que nos tempos de
Norma.
Talvez porque não houvesse, como antes, o
avassalador sentimento de culpa que me levava a rezar e a pedir mil perdões a
Deus depois de cada punhetinha. (A leitura de um tal de Manual da Vida Sexual, feita às
escondidas, no telhado, me transformou no Cão.)
Era começo de cálida noite anapolina. Eu me
preparei cuidadosamente, após demorado banho. Vesti a melhor roupa. Camisa
nova, azul-clarinho, de listras verticais, calça marinho, sapatos lustrados com
Nugget.
Namorei-me ao espelho, depois de untar os
cabelos com creme, aplicado com vigorosa massagem. Pentear era um ritual.
Tempão ali, a arrastar fios com pente Flamengo.
Hoje duas garotinhas diriam: parece até que
vai casar. E olha que não me trato com o carinho de antigamente, quando me
preparava para o cinema.
O leitor que me acompanha há algum tempo sabe
que meu pai dava dinheiro para que eu fosse à zona, mas ia mesmo era ao cinema.
(Acredito que o velho estivesse com medo de que me tornasse veado. De qualquer
forma, John Wayne e Humphrey Bogart não deixariam.)
Naquela noite estava me sentindo tão nos
trinques que resolvi aproveitar melhor de mim. Maria O. conversava com minhas
irmãs, no quarto delas.
Sem pedir licença, entrei e me acomodei numa
cama ao lado de Maria O. Não demorou, minhas irmãs, como se tivessem combinado,
saíram, uma a uma. O leitor já conhece cena parecida. Agarrei a oportunidade. A
voz da experiência me gritava.
Fiz o que deveria ter feito com Norma.
Arrastei a bunda alguns palmos para perto da jovem. Ela ofegava. Senti o hálito
de capim recém-esmagado.
Com insuspeitada ternura, afastei-lhe com a
mão uma mecha dos longos cabelos e pousei os lábios em sua têmpora esquerda,
fazendo-os deslizar lentamente para beijar as pálpebras que se cerravam.
Dali, os lábios desceram por um lado do
narizinho reto e foram-se comprimir, com maciez, muito docemente, nos lábios
delazinha...
Quando senti que a primeira de minhas irmãs
voltava, levantei-me todo trêmulo, com as pernas bambas, e, tentando disfarçar
a ereção, saí do quarto. Fui ao cinema.
Dias depois iríamos a uma chácara. Lá ouviria
como nunca, saindo do alto-falante de uma vitrola portátil, a voz de Nelson
Ned: “Eu te dei meu amor por um dia / E depois, sem querer, te perdi...”
Mas o bom mesmo foi a cavalgada. Nem José de
Alencar para descrever.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 184, 18/2/2001)
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