quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Um recebedor de bilhetes com vocação para herói e um possível assassino “flertam” no escurinho do cinema

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Miopia na sessão da tarde

[Clima” histórico – O crime aconteceu na noite de 3 de novembro de 1999. Meira, armado com uma submetralhadora 9 mm, atirou contra pessoas que assistiam ao filme Clube da Luta, na sala 5 do cinema do Murumbi Shopping, zona sul de São Paulo.
(...)
Na sala de cinema estavam mais de 60 pessoas. Meira foi denunciado em 1999 pelo Ministério Público por três homicídios e 36 tentativas, já que o pente da submetralhadora usada por ele tinha capacidade para 40 balas. Porém, um dos tiros havia sido disparado contra o espelho do banheiro do shopping. – Folha Online, 3/6/2004]

Perdi os óculos. Mato-me de raiva por isso. Os milhões de leitores que me leem e usam óculos sabem o quanto é terrível ficar sem as muletas da retina.
Poderia apenas ficar contrariado se, por acidente, tivesse quebrado a armação ou as lentes, ou tudo. Mas estou puto, mesmissimamente, é por ter perdido coisa a que estava tão habituado.
Aliás, perder qualquer coisa me arrasa. Fico furioso comigo, xingo-me a todo momento, não consigo esquecer esta merda de imperfeição que sou e brigo com quem me venha falar de autoestima.
Poxa vida, se eu fosse como a cantora Marina Lima... Era só posar nu. A autoestima, então, pipocaria mil fogos de artifício, a espantar com luzes multicolores as sombras da depressão.
Mas, por falta de oportunidade, nem pousando nu estou. Bem, até que sozinho faço isso – o que não resolve o problema da rejeição, embora não haja nada de errado com a ejaculação.
(O leitor... aliás, os milhões de leitores já percebem a que ponto estou psicologicamente afetado.)
Quebrar óculos, em uma ou outra ocasião, pode mesmo fazer aflorar meu dificílimo bom humor, como aconteceu (há muitos anos, viu, vocezinha?) no Motel Esplanada, ali na Praça da Bíblia, aonde não fui declamar salmos.
Na época, um dos chefes do órgão (ô palavrinha miserável) em que eu trabalhava me levou para degustar Teacher’s numa boatinha no centro da cidade.
Ali arranjou namorada, e eu, para tirar a cara de bocó de cima da mesa, fui sambar na pista. (Timidão que não sabia dançar, enganei todo mundo com desvairada performance, iluminado pela chamada luz negra.)
Pela madrugada, o respeitável senhor resolveu ir embora e, na saída da boate, me entregou a namorada. “Agora é com você, meu chapa.” Meu deus... (Aqui caberia desalentado muxoxo, só que onomatopeia de tal manifestação ninguém nunca conseguiu a contento.)
A moça estava realmente triscando. Mal entramos no quarto do Esplanada ela se atirou para mim (para quem mais?), tirou meus óculos e os jogou na cama. Agarrou-se ao meu corpo com tanto ímpeto que lá fui eu, arrastado para o tálamo. Crac...
Sôfrego, com as costas da mão e no maior desprezo, afastei de sob a dama os destroços de minha amada luneta. Depois – mas bem depois mesmo – lembramos de rir do acidente.
A sorte do leitor, aliás, dos milhões de leitores é que enxergo bem de perto. Senão, teriam perdido o prazer de me ler neste fim de semana.
Devo esclarecer que este surto de imodéstia é resultado da insegurança que me acomete quando sem óculos. Para atravessar rua, então... Só que, aí, não fico nada arrogante.
Várias vezes acontece de, já no meio da avenida, voltar correndo para a proteção do meio-fio. Sabe-se lá se dá tempo.
Quando posso, não abro mão de um cineminha. Sem óculos, não dou o braço a torcer, só de raiva. Claro que a minha miopia não é muito acentuada.
Então, lá fui eu ao Cine Ritz 1 (ou 2; depende de que lado a gente chega). Até que estava feliz, acabara de ver as filhas, que me fizeram comprar a ração dos gatos.
Depois que passei pela portaria, com a sacola do supermercado, a insegurança me atacou forte. Não estaria eu desperdiçando o pobre dinheirinho?
Entrei na sala de projeção vacilantemente, dei alguns passos no corredor, e voltei de repente para a saída, muito com raiva de mim.
No chegar ao hall, bateu-me o óbvio pensamento: se fosse embora, perderia o dinheiro do mesmo jeito.
Então disfarcei aos olhos do moço da portaria e da moça da bonbonnière, virando subitamente para a direita e entrando no banheiro.
Lá, dei um tempinho diante do espelho e saí, a bater a sacola nas pernas, no rumo da sala de projeção.
A sessão já começava. Por causa da miopia, eu me sentei bem na frente, na sexta fileira. Fiquei ansiosamente a me inclinar para diante, como se assim as imagens se tornassem mais nítidas.
Depois de uns dez minutos de filme, na tentativa de ver melhor o melaço que escorria na tela, ergui-me de repente e fui sentar no meio da segunda fileira, colocando a sacola sobre as coxas, sozinho lá na frente.
As pessoas devem ter achado estranho. Tirante eu, todos se acomodavam a partir do meio da sala para trás. Sinal de civilização.
À certa altura, com o rabo dos olhos, divisei, à direita, o moço da portaria me observando atentamente, meio de banda. Nesse momento, mexi as pernas e, para evitar que a sacola caísse, soergui-me para segurá-la, num movimento brusco.
O moço deu um salto para trás e subiu o corredor apressadamente, em direção à entrada. Mas não passou muito tempo, e ei-lo no corredor da esquerda, a trocar rabo de olhos comigo.
Já não se ouvia o mastigar da plateia. O filme era romântico (meu deus), mas dava para sentir a tensão no ar mal-condicionado.
Assassinatos em cinema dão nisso. Fiquei o tempo todo sob vigilância, e dezenas de pessoas em suspenso.
Tudo por culpa de inocente miopia, de um pacote de ração de gato e de uma chegadinha ao banheiro. Mato-me de raiva.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 122, 28/11/1999)

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