quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Hamiltão, sempre no limite, rememora pequenas cenas de sua vida minúscula


Antigastronomia


Deveria haver uma forma sublime de o homem se alimentar. Essa coisa prosaica de administrar bocados me desgosta profundamente. Sem falar no processo cansativo de preparar o alimento.

Na verdade, cozinhar não é tão ruim. Eu me arranjo na confecção de um trivialzinho. O diabo é que, quando termino, já perdi o apetite, seja lá o que isso for.

Inseguro quanto à dosagem do sal, a todo momento provo do que estou preparando.

Houve tempo em que não procedia assim. Foi em Manaus, quando cozinhava um arrozinho numa esfumaçada lata que antes servira de depósito de óleo comestível.

Não podia correr o risco de perder o apetite (seja lá o que isso for), pois comer, por mais abominável que fosse, era necessário. Aliás, hoje em dia vivo às voltas com a ameaça de retorno de velha anorexia.

Há momentos em que, para sustentar a enfadonha necessidade, preciso ler algo muitíssimo interessante durante o macabro ritual mastigatório. Assim, quando dou pela minha presença, percebo que comi alguma coisa.

Nos tempos manauaras, comprava (fiado) almôndegas em conserva para misturar com o arrozinho da lata.

Daqui me vejo lá, naquele quartinho de madeira arejadíssimo, de cócoras diante da espiriteira, só de cueca, a experimentar a salinidade da água que fervia com o cereal. Para não enjoar, fazia o teste apenas uma vez.

Semana passada lembrei-me daqueles tempos ao ver garotada “de rua” (isto é melhor do que “menores em situação de risco”, santa hipocrisia), na praça da antiga rodoviária, cozendo alguma coisa numa latinha esfumaçada, em trempe de pedras. Mas, pelo jeito, não havia naquilo sabor de aventura.

Acredito que a comida dos meninos devia mesmo ser gostosa. Cozido de pobre sempre me parece melhor do que prato de grã-fino. Recordo-me de certo período da infância.

Quando tinha mais ou menos 7 anos, algumas vezes saía de casa para brincar e depois ir almoçar com a família pobre dos amigos.

Nunca me esqueci de um cozido de carneiro, em delicioso molho de coloração esverdeada, que devorei junto de fogão a lenha em casa de sapé.

Outra vez, já adulto, saboreei uma galinha caipira inesquecível na região do Bico-do-Papagaio, que ainda era de Goiás.

Após a lauta refeição fui ao quintal para espairecer o barrigão pesado, e descobri de que as galinhas se alimentavam. Na roça não havia privada, e na extremidade do terreiro espalhavam-se montículos de bosta humana.

Ali as penosas se banqueteavam, biquinhos melados. Assim se explica, talvez, o muito agradável sabor do ensopado.

Há quem consiga cozinhar sem provar sequer uma vez, ou por não gostar do que prepara ou por experiência na trivialidade do cardápio.

Quando eu, com a família recém-constituída, morava naquela região onde se curte adoidado um jerimunzinho com quiabo, a mulher descobriu no mato rasteiro do minúsculo quintal uma “abobrinha verde”.

Talvez com saudade de Goiás, ela quis preparar imediatamente a abobrinha. Fiquei na dúvida: ali é terra de abobrão, de jerimum, moranga.

Não consegui convencer a mulher a deixar a “coisa” madurar para ver no que ia dar. Levantei até certa possibilidade...

A companheira picou bem picadinho o fruto enigmático, à moda da terra dela, e o meteu na panela. Temperou com capricho. Depois de pronta, a coisa ficou bonita, apetitosa.

O lorpa aqui, esquecendo-se do que aventara, encheu o prato com feijão, arroz, carne e... abobrinha.

Entrei de sola. Já na primeira colherada, que não chegou a descer goela abaixo, engulhei. Cuspi, lavei a língua com sabão, escovei o céu da boca – e nada. O forte amargor perdurou por muito tempo.

A coisa era a tal da “possibilidade”: cabaça.

Definitivamente, não creio que comer seja algo compatível com a natureza sublime do ser humano.


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 120, 14/11/1999)

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