quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Fica a republicação deste texto como gesto solidário às pessoas que amaram – e tudo fizeram para salvar – um cachorrinho chamado Kirilov


Futrica

O nome dela era Futrica, e a coitada não futricava, não. Era cachorrinha bem-comportada. Apareceu na minha vida em momento difícil entre os mais difíceis, não faz muito.
Quando pensava que não ia mais acordar, acordei certo dia. Tudo era pesado para mim. Tomei um banho pesado. Vesti uma cueca pesada, uma camisa pesada, calcei meias e sapados pesados.
Rumei, pesando nos passos, para a porta de saída (há tanto ela deixara de ser porta também de entrada). Lá na sala, vi, na humildade obscura de um canto, a cachorrinha.
Parei e fiquei olhando para ela. Ela, deitada, queixada no chão, ficou olhando para mim.
Nunca antes na vida dois pares de olhos tão tristes se haviam encontrado.
Cheguei perto dela, e ela não arredou. Apenas a cabeça se ergueu e os olhos ficaram fixos fora de mim. É como se ela soubesse de algo como um pontapé. Parecia que, com resignação, esperava. O quê?
Pesadamente me agachei, até apoiar a bunda nos calcanhares, para examinar melhor aquele animalzinho marrom, fosco, encardido.
Foi quando senti a aspereza do couro dos sapatos e vi a ponta branca dos joelhos secos. Eu ia para a rua sem ter vestido a calça, pesada que fosse. A chave, que apanhara na estante, já estava em posição de penetrar na porta.
Ergui-me, pesadão e dolorido, sem esboçar gesto de carinho, sem dizer palavra. Voltei ao quarto para completar a indumentária.
Saí, não sei por que nem para onde, e deixei Futrica lá, ela que ainda não se chamava Futrica mas que alhures tivera um nome, talvez lembrado com saudade.
Ela, por certo, entrou em casa através de um vão na porta, no lugar em que a placa de vidro se havia soltado. Mas vinda de onde? Como? Por quê?
Embora pequena, era adulta e não muito nova, pelo que pude constatar, apesar de não entender de animais.
À noite, de volta ao lar extraviado, não dei pela cachorra. Nem me lembrava dela. Fui direto revolver lençóis e pensamentos.
Mas de manhã, ao abrir os olhos relutantes, eu a vi, deitada ao lado da enxerga, muito dona do pedaço.
Não a enxotei, mas também não dei bola para ela. (A bola a que me refiro não é aquela comidinha envenenada que a gente tem vontade de dar para o cachorro do vizinho, quer dizer, para o cão dele, que late sem motivo a noite inteira.)
Por que, assim de repente, Futrica me vem à lembrança? Acredito que seja porque o casal de gatos de que cuido passou a me seguir, como fazia ela.
Sim, leitor, você deve-se lembrar: minhas filhas me transformaram em baby-sitter de gatos. Como onde moram não podiam cuidar deles, elas me “presentearam” com a dupla miadora que literalmente não me larga o pé.
Agora os gatos deram de me seguir pelas ruas do bairro, como se fossem cães. Morro de vergonha, mas é difícil evitar. Os portões da casa são gradeados, e eles passam folgadamente por ali.
Ora vão à minha frente, saltitantes, rabos levantados, ora se deixam ficar bem para trás e depois vêm em disparada e me ultrapassam, ora se metem em lote baldio a farejar – mas jamais, para meu desespero, me perdem de vista.
Se entro numa venda para comprar qualquer coisa, eles, com a maior imponência, ficam lá fora, na calçada, sentadinhos lado a lado, até que eu saia.
Para vir trabalhar, é uma luta despistá-los. Faço de conta que vou, por exemplo, ao quintal. Ela e ele correm atrás, paro de súbito, dou uma rápida virada, desembesto-me pelo corredor do outro lado da casa e atiro-me para o portão. Às vezes dá certo.
Se deixar, eles me seguem até a parada de ônibus, em cujas redondezas podem ser atropelados. Os bichanos, com o início grã-fino de criação que tiveram, não são muito espertos fora dos limites do terreiro de casa.
Pois é, a cachorrinha, que um parente das meninas chamou de Futrica – e o nome pegou –, também me seguia pelas ruas.
Um dia, parou de me seguir. E... É duro, leitor. Acho que ela morreu de depressão pós-parto, alguma coisa assim, fora do meu entendimento.
Feito pai boboca, eu nem desconfiava que ela estivesse grávida. Uma manhã, havia dois filhotes, que logo morreram. No dia seguinte, ao voltar do trabalho, encontrei Futrica ao lado do cadáver de outro filhote.
Depois que pariu, recusava comida e ficava o tempo todo deitada no mesmo lugar, ali na varanda obumbrada, onde antigamente havia festa. E, ali, numa noite...
Foi naqueles tempos difíceis entre os mais difíceis. Não sei se fiz tudo o que podia para salvar Futrica, não sei. De qualquer forma, arrasto pela vida o peso desta consciência torturada.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 119, 7/11/1999)

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