quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Hamiltão, eterno passageiro da agonia, fala outra vez de uma das possíveis diversões em ônibus superlotado. Mas não se trata de recomendação...
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Como certos pregadores evangélicos, Hamiltão chega à beira do autoconvencimento...
Ei-lo, o superguarda
O leitor que me perdoe por esta inaceitável falta de modéstia, mas sou um iluminado (só não digo que vivo em odor de santidade por causa do cheiro das safadagens habituais).
Quem der uma voltadinha à edição 96, de 9 de maio, deste bravo semanário, vai ler logo no começo da crônica “O superguarda de trânsito”:
“O Detran está de parabéns. Conta em seus quadros com um funcionário cujas qualidades sobrenaturais causam arrepio até neste incrédulo cronista.”
Até aí seria apenas coisa de visionário. Mas agora não. Achei o funcionário, leitor. Achei o divinal soldado das hostes celestiais.
Sim, angelical leitor, em verdade vos digo (releve-me o deslocado pronome), em verdade vos digo: ele não está a serviço do Detran, de um simples Detran, de um Detranzinho qualquer.
Está – como cheguei à conclusão na citada crônica – a serviço de “celestial Detran”, que por sua vez está a serviço, naturalmente (ou sobrenaturalmente), do todo-poderosíssimo.
Mas o que aqui importa, leitor obcecado, é que achei o homem. Achei. E, para que você não me confunda com Mãe Dinah ou Nostradamus, revelo sem fazer charminho o nome do milico divino (aliás, a imprensa diária já o revelou há mais de uma semana): Davi Moreira.
Prometi a minhas filhas não escrever mais sobre trânsito. Isto, porém, é uma revelação, a ressaca de um alumbramento. Não tem nada a ver com o caos profano das ruas de Goiânia.
Golias, digo, Eduardo Canedo bateu com a moto na grade de proteção (proteção de quê, meu deus?) da Marginal Botafogo. Como diria cronista de fino trato, o rapaz veio a óbito.
Foi quando apareceu Davi. Ele, a bem da verdade, e a verdade vos digo, não trazia nenhuma funda ou sequer um acanhado badoque de câmara de ar de pneu de bicicleta.
Trazia algo mais terrível (assim pensaria, por exemplo, meu amigo Jaime): um bloquinho de notificação de multas.
Quando viu o cadáver estendido no asfalto, Davi, como se acabasse de sair de uma batalha do Velho Testamento para entrar em outra, não vacilou. Sacou do bloquinho, empunhou intimoratamente a esferográfica Bic e...
Multou o morto. Antes, porém, como deduz Gean Carlo, irmão de Eduardo, o guarda de anjo deve ter perguntado ao falecido pela documentação (que estava na carteira, num bolso) e não obteve resposta.
Portanto, em vez de aplicar apenas três multas (por falta de habilitação, documentação do veículo e capacete), deveria tacar-lhe mais uma – por desacato à autoridade.
Assim, ele aprenderia a não cometer infrações e, ainda por cima, ser malcriado.
Afinal, como dizem os mestres ideólogos da tolerância-zero, a ação da polícia é antes de tudo educativa, preventiva. Uma espécie de vaselina, digamos assim. Como no sertanejo de Euclides da Cunha: antes de tudo.
O profeta, digo, o major Carlos Antônio Elias, assessor de comunicação do Além, digo, da Polícia Militar, é categórico: “Não é dever do policial informar se o rapaz estava morto ou não.”
No caso de Eduardo, cujo corpo visivelmente sem vida repousava na triste Marginal Botafogo, não havia laudo médico.
Bom senso é coisa de indisciplinado. Claro. O dr. São Pedro – pê-agá-dê em chaves e fechaduras e possivelmente em medicina legal – não gostaria que simples meganha celestial passasse por cima de sua autoridade.
O mago, digo, o presidente da Junta Administrativa de Recursos a Infrações, Itamar dos Reis, deu, de acordo com a imprensa, esta valiosa informação: a multa é aplicada no veículo, não no motorista.
Tá explicado. A moto é quem vai pagar.
O leitor há de convir: apesar desta cara de bobo, sou iluminado. Só espero, agasalhado em minha franciscana humildade, que não haja peregrinações à sede da Gazeta. Mesmo porque os meus estigmas têm gosto de ketchup.
Hamilton Carvalho
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
Um recebedor de bilhetes com vocação para herói e um possível assassino “flertam” no escurinho do cinema
[“Clima” histórico – O crime aconteceu na noite de 3 de novembro de 1999. Meira, armado com uma submetralhadora
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Hamiltão, sempre no limite, rememora pequenas cenas de sua vida minúscula
Antigastronomia
Deveria haver uma forma sublime de o homem se alimentar. Essa coisa prosaica de administrar bocados me desgosta profundamente. Sem falar no processo cansativo de preparar o alimento.
Na verdade, cozinhar não é tão ruim. Eu me arranjo na confecção de um trivialzinho. O diabo é que, quando termino, já perdi o apetite, seja lá o que isso for.
Inseguro quanto à dosagem do sal, a todo momento provo do que estou preparando.
Houve tempo em que não procedia assim. Foi em Manaus, quando cozinhava um arrozinho numa esfumaçada lata que antes servira de depósito de óleo comestível.
Não podia correr o risco de perder o apetite (seja lá o que isso for), pois comer, por mais abominável que fosse, era necessário. Aliás, hoje em dia vivo às voltas com a ameaça de retorno de velha anorexia.
Há momentos em que, para sustentar a enfadonha necessidade, preciso ler algo muitíssimo interessante durante o macabro ritual mastigatório. Assim, quando dou pela minha presença, percebo que comi alguma coisa.
Nos tempos manauaras, comprava (fiado) almôndegas em conserva para misturar com o arrozinho da lata.
Daqui me vejo lá, naquele quartinho de madeira arejadíssimo, de cócoras diante da espiriteira, só de cueca, a experimentar a salinidade da água que fervia com o cereal. Para não enjoar, fazia o teste apenas uma vez.
Semana passada lembrei-me daqueles tempos ao ver garotada “de rua” (isto é melhor do que “menores em situação de risco”, santa hipocrisia), na praça da antiga rodoviária, cozendo alguma coisa numa latinha esfumaçada, em trempe de pedras. Mas, pelo jeito, não havia naquilo sabor de aventura.
Acredito que a comida dos meninos devia mesmo ser gostosa. Cozido de pobre sempre me parece melhor do que prato de grã-fino. Recordo-me de certo período da infância.
Quando tinha mais ou menos 7 anos, algumas vezes saía de casa para brincar e depois ir almoçar com a família pobre dos amigos.
Nunca me esqueci de um cozido de carneiro, em delicioso molho de coloração esverdeada, que devorei junto de fogão a lenha em casa de sapé.
Outra vez, já adulto, saboreei uma galinha caipira inesquecível na região do Bico-do-Papagaio, que ainda era de Goiás.
Após a lauta refeição fui ao quintal para espairecer o barrigão pesado, e descobri de que as galinhas se alimentavam. Na roça não havia privada, e na extremidade do terreiro espalhavam-se montículos de bosta humana.
Ali as penosas se banqueteavam, biquinhos melados. Assim se explica, talvez, o muito agradável sabor do ensopado.
Há quem consiga cozinhar sem provar sequer uma vez, ou por não gostar do que prepara ou por experiência na trivialidade do cardápio.
Quando eu, com a família recém-constituída, morava naquela região onde se curte adoidado um jerimunzinho com quiabo, a mulher descobriu no mato rasteiro do minúsculo quintal uma “abobrinha verde”.
Talvez com saudade de Goiás, ela quis preparar imediatamente a abobrinha. Fiquei na dúvida: ali é terra de abobrão, de jerimum, moranga.
Não consegui convencer a mulher a deixar a “coisa” madurar para ver no que ia dar. Levantei até certa possibilidade...
A companheira picou bem picadinho o fruto enigmático, à moda da terra dela, e o meteu na panela. Temperou com capricho. Depois de pronta, a coisa ficou bonita, apetitosa.
O lorpa aqui, esquecendo-se do que aventara, encheu o prato com feijão, arroz, carne e... abobrinha.
Entrei de sola. Já na primeira colherada, que não chegou a descer goela abaixo, engulhei. Cuspi, lavei a língua com sabão, escovei o céu da boca – e nada. O forte amargor perdurou por muito tempo.
A coisa era a tal da “possibilidade”: cabaça.
Definitivamente, não creio que comer seja algo compatível com a natureza sublime do ser humano.
Hamilton Carvalho
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
Fica a republicação deste texto como gesto solidário às pessoas que amaram – e tudo fizeram para salvar – um cachorrinho chamado Kirilov
Futrica
O nome dela era Futrica, e a coitada não futricava, não. Era cachorrinha bem-comportada. Apareceu na minha vida em momento difícil entre os mais difíceis, não faz muito.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 119, 7/11/1999)