quarta-feira, 9 de junho de 2010

O ínclito cronista vê-se às voltas com indiscrições alheias, mal-entendidos e outras desculpas esfarrapadas


A hora do ciúme

Eu, mais estressado que cachorrinho de madame (a despeito de toda a margarina light que o safado vive a lamber), fui cair em festinha de caridade. Jogadão em almofadas multicolores espalhadas pela sala, fiquei pacatamente quebrando umas e entortando outras.
Ah, não, leitor. Paremos com este ritmo e esta dicção de narrativa séria. Voltemos um pouco mais no tempo, não como quem conta um caso, mas ao jeito de quem recolhe esperanças renováveis.
Tem você nervos de aço? Se tem, não está afinado com a canção de Lupicínio Rodrigues: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher, e depois encontrá-la em um braço que nem um pedaço do seu pode ser?”
Ciúme. Coisa para alguns administrável, para outros, fatal.
Hum... Isto me lembra certa pessoa de minhas antigas relações. Ela, de namoradão e tudo, fazia namorinho comigo. Uma vez, cheio de cautela, perguntei-lhe pelo telefone: “E ele, hein?”
A moça não entendeu, pensou que eu estivesse com ciúme. “Ora, cara, o ‘outro’ é você.”
Confesso que a sombra desse sentimento acerbo, vezinha que outra, roçou meu coração – mas muito ao de leve. Por causa de Lucimar, por exemplo, em meus tempos amazônicos.
Ao acompanhá-la ao colégio, notei a foto de um cantor popular na capa do classificador dela. (Classificador é coisa em que antigamente... Ah, não, leitor, consulte o dicionário; o espaço aqui é medido.)
Pô, ela nunca pedira foto do humilde, pobre e anônimo namorado. Aquilo amargou. Pouquinha coisa, mas amargou.
No entanto ela – ah, minha Capitu das selvas – não se deu por achada. Com aquele jeito manso que era só dela e nunca mais foi de ninguém, sussurrou: “É que ele se parece contigo.”
Aí a coisa mudou. Pra pior. Além de não se parecer nada comigo, o “doce de coco” (argh!) tinha reputação de veado.
Mas, reconheçamos hoje, ela se mostrou mais política do que muito frequentador de vin d’honneur.
Deve ter pensado que, mesmo com a falta de semelhança física, eu era dos que ficam lisonjeados com tal tipo de comparação. Mas pecou principalmente na questão do “detalhe”, um largamente usado galicismo.
Fui casado com uma mulher que não tinha a menor gota de ciúme (pelo menos no que diz respeito a este melancólico cavalheiro). Uma das irmãs dela, no entanto, numa festa, implicou com a dona de uns olhões verdes, supostamente em defesa da honra da mana.
O tipo de ciúme que jamais me convenceu, o em nome de terceiro.
A jovem estaria “dando em cima” de mim. Supõe-se, portanto, que, por causa da pronta ação da brava cunhada, a coisa tenha ficado assim: nem em cima, nem embaixo.
Minha mulher mesmo, essa, não tava nem aí. Uma vez, numa dessas reuniões de alto nível político e altíssimo teor alcoólico, mulher de amigo meu (e para mim ela não tinha nada de homem) trocava perdigotos comigo.
Estávamos escarrapachados no sofá da sala enquanto o resto do pessoal bordejava pela cozinha, bebendo e perdendo tempo com coisas de comer pela boca.
Em certo momento, ela foi fazer mijadinha. Minha mulher chegou: “O negócio tá ficando feio lá na cozinha, tá ficando difícil segurar o Fulanão.”
Eu, tão inocente: “Por quê?” Ao olhar para a cozinha, cuja porta se abria para a sala, vi um armário olhando em nossa direção e a segurar o copo como se fosse uma empunhadura.
A consorte (que anos mais tarde se acharia com azar) não estava nem um pingo enciumada. Queria apenas manter a minha integridade. Física.
Essa foi uma das experiências que me ocorreram na festinha de caridade, à qual fui para lavar o corpo e defumar o espírito.

[O autor faz citação “livre” da letra da canção “Nervos de aço”, que sofreu “mexidinhas” também pela mão de alguns intérpretes. Lupicínio cantou assim: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor / Ter loucura por uma mulher / E depois encontrar esse amor, meu senhor / Nos braços de um tipo qualquer / Você sabe o que é ter um amor, meu senhor / E por ele quase morrer / E depois encontrá-lo em um braço / Que nem um pedaço do meu pode ser // Há pessoas com nervos de aço / Sem sangue nas veias e sem coração / Mas não sei se passando o que eu passo / Talvez não lhes venha qualquer reação / Eu não sei se o que trago no peito / É ciúme, despeito, amizade ou horror / Eu só sinto é que quando a vejo / Me dá um desejo de morte ou de dor”]

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 108, 1º/8/1999)

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