A hora do ciúme
Eu, mais estressado que cachorrinho de madame (a despeito de toda a margarina light que o safado vive a lamber), fui cair em festinha de caridade. Jogadão em almofadas multicolores espalhadas pela sala, fiquei pacatamente quebrando umas e entortando outras.
Ah,
não, leitor. Paremos com este ritmo e esta dicção de narrativa séria. Voltemos
um pouco mais no tempo, não como quem conta um caso, mas ao jeito de quem
recolhe esperanças renováveis.
Tem
você nervos de aço? Se tem, não está afinado com a canção de Lupicínio
Rodrigues: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher,
e depois encontrá-la em um braço que nem um pedaço do seu pode ser?”
Ciúme.
Coisa para alguns administrável, para outros, fatal.
Hum...
Isto me lembra certa pessoa de minhas antigas relações. Ela, de namoradão e
tudo, fazia namorinho comigo. Uma vez, cheio de cautela, perguntei-lhe pelo
telefone: “E ele, hein?”
A
moça não entendeu, pensou que eu estivesse com ciúme. “Ora, cara, o ‘outro’ é você.”
Confesso
que a sombra desse sentimento acerbo, vezinha que outra, roçou meu coração –
mas muito ao de leve. Por causa de Lucimar, por exemplo, em meus tempos
amazônicos.
Ao
acompanhá-la ao colégio, notei a foto de um cantor popular na capa do
classificador dela. (Classificador é coisa em que antigamente... Ah, não,
leitor, consulte o dicionário; o espaço aqui é medido.)
Pô,
ela nunca pedira foto do humilde, pobre e anônimo namorado. Aquilo amargou.
Pouquinha coisa, mas amargou.
No
entanto ela – ah, minha Capitu das selvas – não se deu por achada. Com aquele
jeito manso que era só dela e nunca mais foi de ninguém, sussurrou: “É que ele
se parece contigo.”
Aí
a coisa mudou. Pra pior. Além de não se parecer nada comigo, o “doce de coco” (argh!) tinha reputação de veado.
Mas,
reconheçamos hoje, ela se mostrou mais política do que muito frequentador de vin d’honneur.
Deve
ter pensado que, mesmo com a falta de semelhança física, eu era dos que ficam
lisonjeados com tal tipo de comparação. Mas pecou principalmente na questão do
“detalhe”, um largamente usado galicismo.
Fui
casado com uma mulher que não tinha a menor gota de ciúme (pelo menos no que
diz respeito a este melancólico cavalheiro). Uma das irmãs dela, no entanto, numa festa, implicou com a dona de uns olhões verdes, supostamente em defesa da
honra da mana.
O
tipo de ciúme que jamais me convenceu, o em nome de terceiro.
A
jovem estaria “dando em cima” de mim. Supõe-se, portanto, que, por causa da
pronta ação da brava cunhada, a coisa tenha ficado assim: nem em cima, nem
embaixo.
Minha
mulher mesmo, essa, não tava nem aí. Uma vez, numa dessas reuniões de alto nível
político e altíssimo teor alcoólico, mulher de amigo meu (e para mim ela não
tinha nada de homem) trocava perdigotos comigo.
Estávamos
escarrapachados no sofá da sala enquanto o resto do pessoal bordejava pela
cozinha, bebendo e perdendo tempo com coisas de comer pela boca.
Em
certo momento, ela foi fazer mijadinha. Minha mulher chegou: “O negócio tá
ficando feio lá na cozinha, tá ficando difícil segurar o Fulanão.”
Eu,
tão inocente: “Por quê?” Ao olhar para a cozinha, cuja porta se abria para a
sala, vi um armário olhando em nossa direção e a segurar o copo como se fosse
uma empunhadura.
A
consorte (que anos mais tarde se acharia com azar) não estava nem um pingo
enciumada. Queria apenas manter a minha integridade. Física.
Essa
foi uma das experiências que me ocorreram na festinha de caridade, à qual fui
para lavar o corpo e defumar o espírito.
[O
autor faz citação “livre” da letra da canção “Nervos de aço”, que sofreu
“mexidinhas” também pela mão de alguns intérpretes. Lupicínio cantou assim:
“Você sabe o que é ter um amor, meu senhor / Ter loucura por uma mulher / E
depois encontrar esse amor, meu senhor / Nos braços de um tipo qualquer / Você
sabe o que é ter um amor, meu senhor / E por ele quase morrer / E depois
encontrá-lo em um braço / Que nem um pedaço do meu pode ser // Há pessoas com
nervos de aço / Sem sangue nas veias e sem coração / Mas não sei se passando o
que eu passo / Talvez não lhes venha qualquer reação / Eu não sei se o que
trago no peito / É ciúme, despeito, amizade ou horror / Eu só sinto é que
quando a vejo / Me dá um desejo de morte ou de dor”]
Hamilton
Carvalho
(Gazeta
de Goiás, nº 108, 1º/8/1999)
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