quarta-feira, 16 de junho de 2010

Acusado de portador de homossexofobia, Hamiltão garante que este texto é um desmentido cabal



Bafo na mulher dos outros

Viajei solto a bordo da memória e acabei não contando o que me acontecera, por causa de ciúme, na festinha de caridade.
Pensando bem, não vou contar. Na verdade, não aconteceu nada. É que não vale a pena tomar o tempo do leitor e frustrá-lo com um quase.
O quase só serviu para me empurrar para o passado, e este veio em forma de lição: “Não embarque nessa, ó meu.”
Quando o casal de mulheres chegou à festinha, eu estava arriadão na montanha multicolorida de almofadas, a meditar profundamente (em quê não sei).
Lá pelas tantas, ao dar por mim, dei pela presença de uma das garotas a meu lado. Houve (lembro-me vagamente) bicota e números de telefone. Isso, naturalmente, depois de fortuitas bolinadinhas, coisas assim sem malícia, próprias de eventos beneficentes.
Quase me excedera. Foi quando o quase me chutou de volta para o passado.
O lugar era conhecido como China House – uma cobertura de palha, circular, improvisada no terreiro de um barzinho. Enorme, muitas mesas, um palco tomado de aparelhos de som e a indispensável dupla de cantores. [Na placa que encimava a porteira estavam bonitas letras: “China Hauze”.]
O bar já fora de respeitável senhora, com quem, só numa noite, eu havia feito amizade à base de uísque por conta da casa. Agora ela estava ali, sentada à mesa comigo e o namorado de uma das irmãs da então minha mulher.
Estava ali também moça graúda, de óculos de sol (apesar de ser noite) e boina. Casmurra, não pronunciou sílaba durante toda a libação. O cara que me acompanhava na farra (não posso dizer que o salafrário fosse amigo meu) igualmente não era de falar muito.
Eu, alcooloquaz, reinei dono quase absoluto da palavra, a amiga a se pendurar nos meus beiços, com se fascinada. Antigamente, quando ainda suportava patacoadas de botequim, era capaz de iludir com meu papo furado, vazio de tudo.
Nunca tive cultura para exibir, então charlataneava um pouco, um pouquinho só – e sem o menor prazer. Era aquilo que esperavam de mim, sei lá por que razão. (Naquela noite era erudito em “música sertaneja”, especialidade da casa.)
Essa coisa de beber além da tampa é própria dos imbecis em que nos tornamos quando passamos da segunda dose. O de ruim no bebum é a carga de ofensa que carrega contra o mundo que o cerca.
Certa vez, em clube de bancários, cheguei ao ponto saturado de declamar poemas alheios (bons alheios porém). Mas, mais que imbecilizado, me tornei ácido, até mesmo cruel.
Fim de festa. Apenas duas mesas ocupadas. Em uma, eu lotava a paciência de minha mulher, a desfiar o velho rosário etílico da saideira.
No outro grupo havia uma dama de largura e comprimento consideráveis. Era a mulher de um dos gerentes da agência em que eu trabalhava.
De repente ela levantou o bundaço da cadeira ao lado do marido e começou a recolher as toalhas de mesa. Aquilo me irritou. Que diabo, ela não era funcionária do clube...
O leitor já vê como bêbado se mete a tomar as dores apodrecidas do mundo. Mas até aí tudo bem.
Acontece que ela marchou para o nosso lado e agarrou a fímbria da toalha, num gesto acintoso que parecia dizer: “Segurem copos e garrafa, acabou a festa.”
Protestei com veemência. Ainda havia cerveja na garrafa. Minha mulher, no entanto, se encarregou de fazer o que queria a intrometida, que cuidadosamente começou a dobrar a enorme toalha.
Eu me senti no maior abandono com a suposta falta de solidariedade de minha mulher. Aí me vinguei do mundo e perguntei, bem alto: “Ahhh, a mocinha tá precisando de Modess?” [O autor fazia referência a uma marca de absorvente íntimo, conhecido na Argentina, por exemplo, como toallita...]
Pra quê. A jamanta começou a berrar e a sacudir freneticamente os braços como se quisesse me reduzir a sopa de álcool. O marido saltou da cadeira e se aproximou a fazer a mesma coisa. Eles se pareciam. E eram solidários.
Por essas e outras é que nunca recebi promoção.
Na noite do China House, eu não sabia que havia cometido a imprudência de provocar o ciúme de alguém. Saímos, despedindo-nos cordialmente, e o meu conhecido assumiu a direção do carro.
Ao me sentar ao lado dele, ouvi uma voz tonitruante: “Filho da puta, vou te ensinar a não se meter com mulher dos outros.”
Através da janela do carro, debaixo de pancada, eu mal via os braços grossos, os óculos escuros, a boina...

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 109, 8/8/1999)

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