quarta-feira, 2 de junho de 2010

Chefe de uma redação com seis meses de pagamento de salário em atraso, Hamiltão tenta levantar o moral da equipe...


Transbordante de otimismo


Otimista, sou dos que olham para o passado e exclamam: “Duros tempos aqueles.”
Encoscorado, como dizia minha mãe, sou também alma sensível e piedosa. Dias atrás, por exemplo, ao passar pela Praça do Violeiro, no Setor Urias Magalhães, fiquei com muita pena daquela patética estátua.
Que miserável roubou a viola do violeiro? O instrumento do coitado é hoje apenas o desenho de um gesto. Ele, no entanto, está lá, firme, há muitos anos, tocando silêncio no invisível.
Outra estátua que me confrange o coração é a da Praça do Bandeirante, embora o homenageado não tivesse sido grande coisa nem feito nada de especial. Botar fogo em água é besteira. Até eu, em minha atual fase.
Ultimamente, quando me arrisco por aquela estuporada praça, acomete-me um surto de meditação profunda: “Tadinho, mais uma reforma na Avenida Anhanguera e o infeliz vai ter que se equilibrar num pé só.”
Mas, otimista, penso que talvez o violeiro esteja melhor sem viola, sublimando a canção da eternidade. O bandeirante pode-se dar por feliz por não lhe terem roubado o sanguinário mosquete.
O leitor que me conhece de outras jornadas pode estranhar essa coisa de ter peninha de estátua cercada de humanidade sofrida por todos os lados. Vai ver tenho o coração da mesma matéria com que se forjam esculturas.
Mas não sei se foi por dó de alguém que aquele busto encravado em frente do Teatro Goiânia sobreviveu às maquinações de um grupo que planejara dinamitá-lo. Não sei.
Houve em minha vida uma estátua muito importante. De mulher. Que mulher. Não dessas coisinhas desmilinguidas, chuladas, de plástico azulado, que se veem em butiques de shopping.
É um (espero que ainda não a demoliram a pretexto de revitalizar a praça), é um mulherão de pedra, tamanho natural, calipígia, naquelas proporções ditadas pela boa e pródiga natureza, e não por um Versolato qualquer.
Estátua importante para mim, nos meus tempos de menino. Porque – ali, na praça, sem censura e sem frescura – me deu a real noção de como era uma mulher gostosa pelada.
A propósito, lembro-me de certa propaganda que apareceu na TV, lá pela década de 70. Uma garota andava por uma galeria deserta vestida apenas com sapatos. Claro, o anúncio era de sapatos.
Para interpretar a consumidora, o publicitário Washington Olivetto – levando em conta o obscurantismo mais velho que a folha de parreira da Eva do Adão – escolheu mocinha chulada, só rego. “Para não chocar.”
Mesmo com todo esse anoréxico cuidado, o comercial foi veiculado apenas uma vez. Com seus orifícios cheios de teias de aranha, as velhotas da Censura ficaram chocadas.
Ora, lúbrico leitor, o que choca é essa injustificável discriminação contra um belo naco anatômico.
O escultor da minha terra era macho retado, um artista literalmente de mão-cheia. Fico a imaginar como o danado conseguiu modelo tão bem fornido, tão bem entalhado pela natureza.
As esculturas que ando a ver atualmente são patéticas, mal-proporcionadas, cheias de bossa (como a do coitado do violeiro; bossa aqui não tem nada com bossa nova) ou monstruosas (como a do bandeirante, por sinal muito bem representado naquela soturnidade toda).
Não sei que diabo de relação há entre estatuária e otimismo. Mas, porra, sou otimista. Daqueles que ao meditar sobre o passado, com estátua de mulher gostosa ou não, exclamam: “Ásperos tempos, tempos do Cão.”


[Após a publicação deste texto a viola do violeiro reapareceu. O mistério do desaparecimento, porém, continua.]


Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 107, 25/7/1999)

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