Com o pé na via-crúcis
Um
dedo quebrado, ai, pio leitor, quebrado no calcante esquerdo. Isto depois de
desentendimento com um dos portões lá de casa. Dói que dói, ai.
Resisti
para não ser levado ao hospital. Foi uma batalha. Mas há certos momentos em que
minhas meninas não estão de brincadeira. Só faltaram me amarrar a uma carroça.
Enfrentei
a via-crúcis de que tanto queria fugir.
Primeira
estação: indiferença. Segunda: chá de banco e de dor. Terceira: má vontade.
Quarta: recusa de atendimento por ausência de ortopedista. Quinta: tudo de novo
em outro hospital, exceto quarta estação. [Há ano e meio o bravo
jornalista passou por algo semelhante, após quebrar o pé esquerdo em outro
acidente doméstico.]
Fui
levado ao Hospital de Urgências graças à solidariedade do pai de uma amiga de
minhas filhas.
Pessoa
de ouro, Juaraci ficou horas a esperar por mim à porta do ambulatório, onde,
segundo Elzinha, ainda deu uma demão a padioleiros.
Caminhei
sozinho pelos corredores, desolado, mancando penosamente, já que não permitiram
que alguém me acompanhasse naquele pedaço de calvário, nem me colocaram numa
cadeira de rodas.
Faça-se
justiça: quando finalmente me atendeu, depois do encaminhamento médico, a
enfermeira até que foi gentil. Eu me desarmei e quase tive uma ereção, juro.
Uma
vez fui atropelado por bicicleta, quando “gozava” as férias escolares na vila
em que nasci.
Estava
hospedado na casa de madrinha Mira. Meus pais iriam buscar-me à época da volta
às aulas. Logo nos primeiros dias no lugar sofri o acidade.
A
rodovia era ainda de cascalho. Fui atravessá-la cheio de cuidado contra carros
e não me dei conta do alegre ciclista no lusco-fusco. Aquele veículo magro,
preto, se misturou com as minhas magras e branquelas pernas.
Doeu
que doeu. Não havia médico, mas dinha Mira (era assim que eu a chamava) cuidou
da perna machucada. Preparou mastruz, bem amassadinho em água morna, e com ele
e uma tira de pano me envolveu o tornozelo. [Na realidade a perna fora
fraturada cerca de dez centímetros acima do tornozelo.]
Ah,
com o passar dos dias a coisa foi-se revelando mais séria que simples
torcedura. Eu tinha a impressão de que me haviam implantado um mocotó de boi.
Meu
pai, sem saber de nada, não chegava – e estava a apenas oito léguas. No
lugarejo não existiam telefone, telégrafo, fax nem e-mail.
Dinha
Mira resolveu apelar para remédio mais forte. Com um raminho de arruda, benzeu
o mocotó, que se avolumava.
Ela
me instalou no hall da casa, de onde eu podia avistar uma nesga de rua. A boa
senhora fazia de tudo para amenizar meu aborrecimento. Vinham-me caldo e pirão,
doce e biscoito.
Mas,
como diria meu pai, o corno (eu) não prestava nem para engordar. Aliás, vivia
deitado, pernão estendido, peidando feito porco na engorda.
Ao
chegar à conclusão de que nem mastruz nem reza tirava o mau encosto, dinha Mira
apelou para linimentos.
Então,
além de outras suspeitas emanações de um corpo bem-alimentado e mal-lavado
(apesar dos cuidados da dinha), instalou-se em torno de mim o cheiro penetrante
de Vick Vaporub e de Iodex, e até mesmo o da papa de farinha de mandioca que
era aplicada no inchaço.
Enfim,
o caminhão estacionou em frente à casa de madrinha Mira. Fiquei ansioso. Mas
ainda tive de esperar que meu pai resolvesse acabar com seus longos e morosos
papos.
Pegamos
a estrada. Eu ia na cabine, junto com meus pais, invejoso dos irmãos que
farreavam na carroceria.
A
ânsia de chegar aumentava à medida que o carro vencia léguas. Meu pai, no
entanto, muito folgadão, parou para comprar alguns metros da lenha que era
oferecida à beira da estrada.
Cada
pilha de lenha era de um metro. A carroceria do caminhão recebeu quatro metros,
o que criou certo desconforto para meus irmãos.
Só
no dia seguinte, depois da radiografia, fui levado ao Hospital Regional. O Dr.
Antônio, amigo da família, engessou a perna fraturada.
Um
médico bonachão. Gravou no gesso, com festivo tapa, a marca de seus dedos. Não
era especialista, mas fez excelente trabalho.
Agora,
nos tempos modernos... Você, com um seu-vizinho quebrado, vai embora sem
atendimento porque em sala de primeiros socorros não há ortopedista.
É
de doer. E como dói. Mas não sei o que prefiro, se um tapa do Dr. Antônio ou o
contato das mãos suaves de determinada enfermeira.
Hamilton
Carvalho
(Gazeta
de Goiás, nº 106, 18/7/1999)
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