Além das aparências
Audrey Hepburn.
Agorinha, chegando ao jornal, parei em
um quiosque para comprar cigarro. A mocinha que me atendeu... Audrey Hepburn.
Não, leitor velho cinéfilo, não, ela
não se parece com a atriz. É que aquele queixinho, a linha da mandíbula, aquele
arzinho meio levantado e não sei o que lá mais me lembraram garotinha do meu afeto.
Ela morava no Edifício Rio Negro, em
Anápolis, e eu a tinha parecida com a atriz. Era mesmo. Façamos o gosto do meu
coração apaixonado.
Não sou de tietar seu ninguém, mas a
Hepburn tinha um tipinho assim meio que me agradava, apesar da exiguidade de
carnes. Aliás, com relação a mulher não sou muito exigente no que diz respeito
à aparência.
Por ser um sujeito de rigorosa formação
marxista, sempre vou além das aparências.
O “rigorosa” aqui vai a propósito, pois
há camaradinha que não se peja de refugar mulher por causa disso ou daquilo,
embora tente ostentar toda a dialética do mundo.
É o caso de J. e C., meninos trêfegos
que propagandeavam trepadas supostamente invejáveis. (O “propagandeavam” aqui
vai a propósito, já que os “meninos” decaíram.)
Eles, depois que se amarraram (ou foram
amarrados) em uma só mulher (cada qual e sua respectiva), vieram para o meu
lado com papo estranhamente monogâmico.
“Mulher, se não for melhor que a minha,
eu não como”, faziam coro lá em Brasília, a matar o tempo durante importante
encontro político.
Coerente, não vou entrar no mérito do
“melhor”, que não provei, nem da aparência das zinhas deles, que não sou esteta
nem ligo para idade ou acabamento.
Depois da proclamação dos ex-garanhões
do pedaço, esperei, e veio, o inevitável: menção do nome de determinada mulher.
“Fulana eu não como nem morto”, dizia
um. “Nem eu”, ecoava o outro. É claro que o discretão aqui não se pronunciou a
respeito, mas gargalhou por dentro.
Mulher boa de cama estava ali, a
fulana. Na minha avaliação até aquele momento, insuperável. Na minha avaliação
até aquele momento, que não sou de dormir sobre os louros. Nem sobre os
morenos, diga-se de passagem. [Houve lapso de redação, e hoje o autor
faz questão de frisar que com macho não tem em cima, nem embaixo, nem de
ladinho.]
A Hepburn de Anápolis, eu dizia, foi um
caso patológico de paixão platônica. Sim, leitor, humildemente confesso e envergonhadamente
admito: paixão platônica.
Eu a via todo sábado, à entrada do
cinema próximo da casa dela, no mesmo horário, para assistir à primeira
sessãozinha da noite.
Como sempre fui refém de minhas paixões
– e só delas –, todo sábado, à mesma hora, estava à porta do cinema, fingindo
olhar cartaz.
Na verdade, com Audrey ou sem Audrey,
eu ia ao cinema todo santo dia. Dinheiro não me faltava, porque meu pai,
preocupado com a minha sexualidade (sem motivo, esclareço), me dava grana para
torrar na zona.
Paixão platônica... Era, mesmo, uma
paixão gélida, meus circuitos tesãorais não se ligavam. Era só aquilo de ficar
agarrando poesia para atravessar o marasmo e descobrir o meu continente.
Agora o leitor maldoso já vai insinuar
que meu pai tinha motivo de preocupação. Ora, o leitor não sabe que por esse
tempo havia também Maria O., tórrida, bela, do tamanhozinho que eu calçava.
Certa vez, em passeio a cavalo, Maria
O., com seus belos e fartos atributos... Não, ela não era nenhuma Hepburn.
Deixemos para falar de O. em outra
ocasião, não é? Dá-se que as minhas escassas 60 linhas chegam ao fim.
Amanhã, ao vir de casa, passarei no
quiosque para comprar cigarro. Minhas filhas que me perdoem: não vou deixar de
fumar tão cedo.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 89, 21/3/1999)