Palavra de campeão
Prometi a mim mesmo não falar de futebol
nesta banda de página. Vou cumprir o prometido, registrando apenas uma
lembrança que me vem com a empolgação da Copa do Mundo.
Não só Zagallo, eu
também fui campeão como jogador e como treinador. Imagine. Treinador de time de
futebol de salão [hoje futsal] de
turma de colégio. Sempre desconfiei que aquilo fosse uma sinecura que me deram
para que ficasse fora de campo.
Mas não, penso que
não. Eu era goleiro, e muito bom. Lembro-me de que treinava pra valer, em um
dos porões lá de casa, em Anápolis. Levava um tempão chutando a bola contra a
parede para segurá-la ou chutá-la na volta.
Na primeira vez que
entrei em campo houve gracejos a respeito de minha indumentária. Parecia
goleiro profissional com proteção nos joelhos e camisa acolchoada. Claro, não
era bobo para me ralar no cimento da quadra. Com minhas performances, os
gracejos viraram admiração.
Apenas não consegui
arrancar suspiros de C., já que ela, infiel, torcia pelo time de outra turma e
só tinha olhos para o líder dos bagunceiros do Só-Cinco. Ela devia achar que
meu time, o Centauro, era time de careta.
Mas não me derreei
todo por C., porque havia a professora de inglês.
Ah, tempos atrás me
apaixonara por uma professorinha de francês. Não sou lá muito bom de línguas
(tenho somente uma), mas não dava para me apaixonar pela professora de
matemática, por exemplo.
Aquela professorinha
de francês, mon dieu... Eu ficava nas nuvens quando ela puxava o ar
para os pulmões asmáticos e fazia biquinho para pronunciar francês. Mon
dieu.
Meu inglês só não
vingou em Anápolis porque tive de levantar acampamento. Fui amar as manauaras.
A baixinha levava
letras de música com tradução meio suspeita e a gente decorava as originais,
cantando em coro desafinado. Aliás, eu não cantava, não, tímido que era. Mexia
os lábios para tapear.
Minha mãe devia estar
intrigada com o marmanjo que demorava tanto no banheiro. Quer dizer, ela já
estava acostumada com meus banhos demorados, mas então a demora era muito
maior.
É que, além do ritual
de sempre, eu ficava a cantar “Love is all” aos berros, apaixonadamente,
repetidamente.
O chato de apaixonar
por professora é que a gente não gosta do período de férias. Que saudade danada.
Sujeitinho babão, ficava
perambulando pela cidade, cavando a coincidência, forçando a barra do acaso,
tomando a providência divina. Às vezes nada, mas às vezes eu a via à sombra do
batente do prédio em que morava, esfregando o pé de bucho no namorado. Ô raiva,
ô trauma, ó trouxa.
Mas eu aproveitava
muito bem o último dia de férias. Naquele tempo andava meio magoado com a
esquerda brasileira. Pô, ninguém me recrutava para a luta armada, eu, valoroso
combatente em potencial. Não fazer nada contra a ditadura militar era cruciante
tortura.
Então me dava
solitária missão. Na véspera da volta às aulas, saltava o muro do colégio e,
furtivamente, entrava em várias salas para registrar no quadro-negro, em letras
garrafais, impropérios contra o regime.
Confesso que, naquela
época, meu coração era meio sem-vergonha. Havia ainda uma moreninha que morava
perto de minha casa por quem derramei muitos versos inflamados de amor.
Passava as tardes na
plataforma da caixa d’água (ah, as caixas d’água da minha vida) para vê-la nos
fundos da casa dela, no outro lado do brejo. Penso que a gárrula menina nunca
tomou conhecimento de minha pálida existência.
Havia outra... Ora,
leitor de alma monogâmica, eu produzia no mínimo dez sonetos por dia. Tinha que
buscar um pouquinho de calor para o meu solitário coração e imprimir
sinceridade nas chaves de ouro. Mas sexo, que era bom... É claro que eu dava
minhas enchidinhas de mão.
Bati muita bola na
vida e me tornei tricampeão pelo Centauro. Não faturei C., mas venho
obstinadamente fazendo minha sopa de letras e vou devorar todo o alfabeto. Não
necessariamente pela ordem, viu, Z.?
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 65,
28/6/1998)
Nenhum comentário:
Postar um comentário