quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Aqui, Hamiltão conseguiu a proeza de se igualar aos demais cronistas. Se o leitor não tem mais nada pra fazer...


Palavra de campeão

Prometi a mim mesmo não falar de futebol nesta banda de página. Vou cumprir o prometido, registrando apenas uma lembrança que me vem com a empolgação da Copa do Mundo.
Não só Zagallo, eu também fui campeão como jogador e como treinador. Imagine. Treinador de time de futebol de salão [hoje futsal] de turma de colégio. Sempre desconfiei que aquilo fosse uma sinecura que me deram para que ficasse fora de campo.
Mas não, penso que não. Eu era goleiro, e muito bom. Lembro-me de que treinava pra valer, em um dos porões lá de casa, em Anápolis. Levava um tempão chutando a bola contra a parede para segurá-la ou chutá-la na volta.
Na primeira vez que entrei em campo houve gracejos a respeito de minha indumentária. Parecia goleiro profissional com proteção nos joelhos e camisa acolchoada. Claro, não era bobo para me ralar no cimento da quadra. Com minhas performances, os gracejos viraram admiração.
Apenas não consegui arrancar suspiros de C., já que ela, infiel, torcia pelo time de outra turma e só tinha olhos para o líder dos bagunceiros do Só-Cinco. Ela devia achar que meu time, o Centauro, era time de careta.
Mas não me derreei todo por C., porque havia a professora de inglês.
Ah, tempos atrás me apaixonara por uma professorinha de francês. Não sou lá muito bom de línguas (tenho somente uma), mas não dava para me apaixonar pela professora de matemática, por exemplo.
Aquela professorinha de francês, mon dieu... Eu ficava nas nuvens quando ela puxava o ar para os pulmões asmáticos e fazia biquinho para pronunciar francês. Mon dieu.
Meu inglês só não vingou em Anápolis porque tive de levantar acampamento. Fui amar as manauaras.
A baixinha levava letras de música com tradução meio suspeita e a gente decorava as originais, cantando em coro desafinado. Aliás, eu não cantava, não, tímido que era. Mexia os lábios para tapear.
Minha mãe devia estar intrigada com o marmanjo que demorava tanto no banheiro. Quer dizer, ela já estava acostumada com meus banhos demorados, mas então a demora era muito maior.
É que, além do ritual de sempre, eu ficava a cantar “Love is all” aos berros, apaixonadamente, repetidamente.
O chato de apaixonar por professora é que a gente não gosta do período de férias. Que saudade danada.
Sujeitinho babão, ficava perambulando pela cidade, cavando a coincidência, forçando a barra do acaso, tomando a providência divina. Às vezes nada, mas às vezes eu a via à sombra do batente do prédio em que morava, esfregando o pé de bucho no namorado. Ô raiva, ô trauma, ó trouxa.
Mas eu aproveitava muito bem o último dia de férias. Naquele tempo andava meio magoado com a esquerda brasileira. Pô, ninguém me recrutava para a luta armada, eu, valoroso combatente em potencial. Não fazer nada contra a ditadura militar era cruciante tortura.
Então me dava solitária missão. Na véspera da volta às aulas, saltava o muro do colégio e, furtivamente, entrava em várias salas para registrar no quadro-negro, em letras garrafais, impropérios contra o regime.
Confesso que, naquela época, meu coração era meio sem-vergonha. Havia ainda uma moreninha que morava perto de minha casa por quem derramei muitos versos inflamados de amor.
Passava as tardes na plataforma da caixa d’água (ah, as caixas d’água da minha vida) para vê-la nos fundos da casa dela, no outro lado do brejo. Penso que a gárrula menina nunca tomou conhecimento de minha pálida existência.
Havia outra... Ora, leitor de alma monogâmica, eu produzia no mínimo dez sonetos por dia. Tinha que buscar um pouquinho de calor para o meu solitário coração e imprimir sinceridade nas chaves de ouro. Mas sexo, que era bom... É claro que eu dava minhas enchidinhas de mão.
Bati muita bola na vida e me tornei tricampeão pelo Centauro. Não faturei C., mas venho obstinadamente fazendo minha sopa de letras e vou devorar todo o alfabeto. Não necessariamente pela ordem, viu, Z.?

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 65, 28/6/1998)

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