quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Batismo de fogo, Hamiltão de fogo. E naqueles tempos não existia a delicadíssima expressão “transar”


Imposição genética

Parente, costuma dizer um amigo, é uma imposição genética. Não sou tão radical, mas sinto que em certos momentos a parentada pode ser considerada abominável. Principalmente quando se mete a dar conselhos a respeito do insolucionável, a respeito da mulher da gente ou a respeito de como ganhar dinheiro.
Nem tanto, porém, quando irmão bem-intencionado empurra um moleque para atos pouco recomendáveis, abrindo caminho para a zona de meretrício ou iniciando o ingênuo na cachacice.
Foi em remota festa de São João. Estava eu lá, pálido e bem-comportado, curtindo o calor da enorme fogueira armada em frente de casa. Irmão mais velho, cheio de mistério, me chama para dentro e me leva a um quarto. E ali, em cima do cofre, um litro de pinga.
O irmão entorna o límpido e aparentemente inocente líquido num copo americano, enchendo-o até a borda. “Agora você vai virar homem”, proclama. Sem hesitar – porque macho em minha terra não foge de desafios –, de uma só vez deixei o copo cheio apenas de ar.
Voltei à fogueira, olhos brilhando, pleno de determinação, fitando as garotas e fazendo discursos imorais. Logo, no entanto, rodopiei e caí em cima das brasas esparsas em torno do fogo. Ali fiquei rindo imbecilmente até que alguém me colocou em lugar seguro. Não me sapequei mas me levantei mais sapeca ainda.
E determinado. Subi a rua aos cambaleios e fui parar à porta de Maria Purcina.
Meu primeiro amor, a menina com quem vivia a sonhar todos os momentos de todos os dias. Eu trepava na caixa d’água e ficava horas e horas, exposto a sol, a frio e até mesmo a chuva, só para vê-la nos breves instantes em que aparecia na esquina, para comprar alguma coisa ou para visitar vizinha. Meu secreto, secretíssimo amor.
Eu adorava aquelas canelas finas, aqueles peitinhos de pomba, aquela bundinha quase impressentida. Quando acontecia de vê-la mais de perto, ficava embevecido com aqueles lábios exangues, com aquela pele cinzenta e principalmente com aqueles olhos meio vesgos.
Tímido, mudo, torto, eu disfarçava, arrastava os pés descalços, a fazer desenhos na terra, e depois saía correndo, para me abrigar no regaço do lar. Ou melhor, para trepar na caixa d’água e de lá ficar a adorar aquela longínqua e seca figura metida num vestidão de chita.
Como todo moleque dissimulado, fiz amizade com os irmãos dela, com os quais jogava gude por onde a menina costumava passar. Se isso acontecia, eu não acertava uma jogada, com a concentração longe dos buracos do chão.
Quando ia ao cinema, que “coincidência”. Ela estava lá, para assistir ao mesmo filme, entre os irmãos. Você, leitor cinéfilo, não imagina as porcarias de filme.
De qualquer forma, eu só tinha olhos virados (tão virados que chegavam a doer) para aquele rostinho acinzentado, iluminado pela luz vacilante de filme preto e branco.
Ah, secreto amor, secretíssimo amor.                      
     Até aquele miserável são-joão. Que o santo me perdoe. Aliás, como não é deste mundo, o bom João deve saber que não me refiro propriamente a ele. Na verdade, a culpa foi da danada da cachaça. Ou da imposição genética que me fez tragar o traiçoeiro líquido.
À porta da casa da amada, abri os braços, a boca, os olhos, o coração. E berrei: “Maria, quero foder com você!” Para que a menina não tivesse dúvida e para que ninguém da vizinhança duvidasse, eu repetia o chamamento acrescentando informação: “Maria irmã de Dalmar, quero foder com você!”
Ao dar por mim, estava deitado em meu quarto, quarto iluminadíssimo, cheio de gente. Não sei por que motivo, minha mãe, como se fosse uma imposição genética, tirou toda a minha roupa.
Entre as pessoas que se acotovelavam no quarto, divisei Hidalmar, pálido, perplexo. Aí, como se algo se iluminasse em meu cérebro, disse, renitente, com voz quase chorosa, pidona: “Quero foder com a irmã de Dalmar...”
Ninguém no recinto podia duvidar do meu desejo. As pessoas, todas elas, olhavam arregaladamente para meu baixo-ventre. Ali estava o testemunho da verdade: um pintinho duro feito couraça de extintor de incêndio.
A ressaca. Até hoje não consegui ressaca igual. Levei mais de mês a curti-la, sem sair de casa. Afinal, a molecada – todo o timinho de futebol – só esperava que eu metesse a cara na rua para mangar do besta. Besta não, apaixonado – e apaixonado por ninguém menos que a irmã de Dalmar.
É, realmente. Às vezes a gente só aceita parente porque não adianta brigar com os caprichos da natureza, que podia muito bem não ter essa coisa de replicação.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 64, 21/6/1998)

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