Imposição genética
Parente, costuma dizer um amigo, é uma
imposição genética. Não sou tão radical, mas sinto que em certos momentos a
parentada pode ser considerada abominável. Principalmente quando se mete a dar
conselhos a respeito do insolucionável, a respeito da mulher da gente ou a
respeito de como ganhar dinheiro.
Nem tanto, porém,
quando irmão bem-intencionado empurra um moleque para atos pouco recomendáveis,
abrindo caminho para a zona de meretrício ou iniciando o ingênuo na cachacice.
Foi em remota festa
de São João. Estava eu lá, pálido e bem-comportado, curtindo o calor da enorme
fogueira armada em frente de casa. Irmão mais velho, cheio de mistério, me
chama para dentro e me leva a um quarto. E ali, em cima do cofre, um litro de
pinga.
O irmão entorna o
límpido e aparentemente inocente líquido num copo americano, enchendo-o até a
borda. “Agora você vai virar homem”, proclama. Sem hesitar – porque macho em
minha terra não foge de desafios –, de uma só vez deixei o copo cheio apenas de
ar.
Voltei à fogueira,
olhos brilhando, pleno de determinação, fitando as garotas e fazendo discursos
imorais. Logo, no entanto, rodopiei e caí em cima das brasas esparsas em torno
do fogo. Ali fiquei rindo imbecilmente até que alguém me colocou em lugar
seguro. Não me sapequei mas me levantei mais sapeca ainda.
E determinado. Subi a
rua aos cambaleios e fui parar à porta de Maria Purcina.
Meu primeiro amor, a
menina com quem vivia a sonhar todos os momentos de todos os dias. Eu trepava
na caixa d’água e ficava horas e horas, exposto a sol, a frio e até mesmo a
chuva, só para vê-la nos breves instantes em que aparecia na esquina, para
comprar alguma coisa ou para visitar vizinha. Meu secreto, secretíssimo amor.
Eu adorava aquelas
canelas finas, aqueles peitinhos de pomba, aquela bundinha quase impressentida.
Quando acontecia de vê-la mais de perto, ficava embevecido com aqueles lábios
exangues, com aquela pele cinzenta e principalmente com aqueles olhos meio
vesgos.
Tímido, mudo, torto,
eu disfarçava, arrastava os pés descalços, a fazer desenhos na terra, e depois
saía correndo, para me abrigar no regaço do lar. Ou melhor, para trepar na
caixa d’água e de lá ficar a adorar aquela longínqua e seca figura metida num
vestidão de chita.
Como todo moleque
dissimulado, fiz amizade com os irmãos dela, com os quais jogava gude por onde
a menina costumava passar. Se isso acontecia, eu não acertava uma jogada, com a
concentração longe dos buracos do chão.
Quando ia ao cinema,
que “coincidência”. Ela estava lá, para assistir ao mesmo filme, entre os
irmãos. Você, leitor cinéfilo, não imagina as porcarias de filme.
De qualquer forma, eu
só tinha olhos virados (tão virados que chegavam a doer) para aquele rostinho
acinzentado, iluminado pela luz vacilante de filme preto e branco.
Ah, secreto amor,
secretíssimo
amor.
Até aquele miserável são-joão. Que o santo me perdoe. Aliás, como não é deste mundo, o bom João deve saber que não me refiro propriamente a ele. Na verdade, a culpa foi da danada da cachaça. Ou da imposição genética que me fez tragar o traiçoeiro líquido.
Até aquele miserável são-joão. Que o santo me perdoe. Aliás, como não é deste mundo, o bom João deve saber que não me refiro propriamente a ele. Na verdade, a culpa foi da danada da cachaça. Ou da imposição genética que me fez tragar o traiçoeiro líquido.
À porta da casa da
amada, abri os braços, a boca, os olhos, o coração. E berrei: “Maria, quero
foder com você!” Para que a menina não tivesse dúvida e para que ninguém da
vizinhança duvidasse, eu repetia o chamamento acrescentando informação: “Maria
irmã de Dalmar, quero foder com você!”
Ao dar por mim,
estava deitado em meu quarto, quarto iluminadíssimo, cheio de gente. Não sei
por que motivo, minha mãe, como se fosse uma imposição genética, tirou toda a
minha roupa.
Entre as pessoas que
se acotovelavam no quarto, divisei Hidalmar, pálido, perplexo. Aí, como se algo
se iluminasse em meu cérebro, disse, renitente, com voz quase chorosa, pidona:
“Quero foder com a irmã de Dalmar...”
Ninguém no recinto
podia duvidar do meu desejo. As pessoas, todas elas, olhavam arregaladamente
para meu baixo-ventre. Ali estava o testemunho da verdade: um pintinho duro
feito couraça de extintor de incêndio.
A ressaca. Até hoje
não consegui ressaca igual. Levei mais de mês a curti-la, sem sair de casa.
Afinal, a molecada – todo o timinho de futebol – só esperava que eu metesse a
cara na rua para mangar do besta. Besta não, apaixonado – e apaixonado por
ninguém menos que a irmã de Dalmar.
É, realmente. Às vezes
a gente só aceita parente porque não adianta brigar com os caprichos da
natureza, que podia muito bem não ter essa coisa de replicação.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 64,
21/6/1998)
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