quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Eis um quadro de quando um gênio se perde. Não há nada que interesse, mas, por hábito, a humanidade aclama...

 
Lealdade à Ferrante

Na sala de recreio da Gazeta, tida como fumódromo (eu, elegante, acharia melhor dizer fumoir), existe um aparelho de TV. Hoje eu estava lá, bocão aberto, diante da tela.
Coleguinha chegou e avisou que o tevê estava desligado. Eu, nota-se, também. É que, depois de liquidar com o aporrinhante assunto sobre Maria O., me sentia perdidão, assim que órfão, assim que vazio, doido para atravessar a rua deserta de minha alma.
Na verdade, era como se estivesse em cadeira de barbeiro, letárgico, a olhar sem me ver no espelho. Ou a ler, sem ver, no apoio para os pés: “FERRANTE / R. Independência, n.º 678”.
Acredito que, hoje, a sólida cadeira Ferrante seja raridade. Mas eu a conheço desde os tempos em que chamava cabelo de bebelo.
Nos meus começos, para me rapar o coco, o profissional da lépida tesoura colocava uma tábua atravessada nos braços da cadeira e, literalmente, me jogava nela. Upa.
Eu olhava para baixo e via, lá longe, aquelas sóbrias letras em alto-relevo. Vertigem boa, quase abissal.
Depois que descobri, em meu bairro, uma barbearia com uma Ferrante, nunca mais mudei de barbeiro. Mesmo que, de vez em quando, Luciano me faça uma barbeiragenzinha no cabelo. Aliás, barbeiro só me faz cabelo; neca de barba.
A rigor, o rapaz é cabeleireiro. Mas sou do tempo em que tal palavra não pegava bem em moço de boa família. Além do mais, prefiro arrastar penosamente meu Prestobarba a levar na cara tapinhas de macho.
Já é concessão permitir que homem me passe a mão pela cabeça, como se eu fosse gramático do Jornal Opção cujo pronome “antecede antes” do verbo.
Só não mudo para barbeira porque esse negócio de “salão de beleza” não me deixa muito à vontade.
Um amigo costuma dizer que prefere ficar fofocando em salão de mulher (“unissex”) a deixar que neguinho suspeito lhe acaricie o cangote.
Uma vez ele quis que eu experimentasse cortada de fêmea. Fazia questão de pagar. Lá fui eu, em horário meio morto de segunda-feira, morrendo de vergonha.
Mas aquilo foi bom. Foi gostoso. Suave. Cálida ereção. Nada de bafo de macho e perdigoto de casos babacas.
Apesar do “sucesso”, mesmo empurrado por amigos, não passei a frequentar salão de beleza, porque mulher cobra mais caro. Depois, então, que descobri uma barbearia perto de casa com cadeira Ferrante... Aí é que não vou mesmo deixar-me cair nas garras macias de cabeleireira.
É pena, sei, é pena. Acontece que sou fiel à Ferrante do Luciano, apesar do aliciador (para outros) vocabulário evangélico que o rapaz passou a empregar depois que virou “crente”.
No começo, Luciano cobrava R$ 1,99 por corte. Era muito rigoroso no preço: mantinha um pires cheio de moedas de R$ 0,01 para troco. Agora faz curso para pastor e cobra R$ 3, o que não me deixa feliz, apesar do vale-picolé com que brinda os fregueses.
No entanto, aferrei-me à Ferrante. Aqueles entalhes, aquelas curvas... A sinuosidade das pernas, os braços curvilíneos... O negror brilhante da silhueta...
Dias atrás vacilei. Dona de salão de beleza lá do meu pedaço queria porque queria fazer um “corte decente” em meus ralos cabelos. Neguei, negaceei, mas já estava quase disposto a encarar a tesourinha da moça quando me informaram que ela vendera o salão.
Ufa, que alívio. Tudo indica que neste fim de semana vou chupar o picolé do Luciano.
Ah, sim. A coisa de ficar vendo TV com aparelho desligado é o melhor programa que ando tendo ultimamente. Na verdade, na verdade, fico ligadão.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 186, 4/3/2001)

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