Cavalgadura
O cantor
Nelson Ned – que depois passaria a prestar inestimáveis serviços à máfia cubana
de Miami – fazia sucesso: “Só se encontra a felicidade / Quando se entrega o
coração”.
Taí. Maria O. não leu o meu cardiograma.
Aliás, nem eu. Porque nada justificava aquela paixão forçada pela professora de
inglês. Não era por ela que eu descabelava o palhaço.
Os traços da realidade estavam na palma da
mão. Cozinhei muito esperma na água do banho, e a visão que me cegava tinha a
estupenda ossatura e a morena carnadura de Maria O.
Ah, leitor, vivo a reprisar teipes desta vida
cambaia.
Maria O. se mudou com a tia, o primo e a
mulher do primo para o centro da cidade. Apareci por lá umas duas vezes, a pretexto de
visitar antigos vizinhos.
Não tenho a menor dúvida de que minha família
suspeitou de algo, já que nunca fui – nem sou – de fazer visitinhas. A não ser
que haja xoxota à vista.
A situação estava difícil. Para beijar Maria
O., uma vez tive que cercá-la em um ponto cego da pequena casa, uma soleira.
Quem estivesse no quarto poderia ver no máximo uma ponta da bundinha dela; quem
estivesse na sala não poderia ver coisa nenhuma.
Aí, leitor, injunções da vida, ah, injunções
desta vida cambaia... Tempos depois eu a encontraria em rua movimentada, sob o
sol brilhante da tarde. Ela estava com uma amiga. Foi cortês – e só.
Nem parecia que havíamos cavalgado juntos, em
álacre intimidade, na chácara a que fomos duas ou três de minhas irmãs, Maria
O., o primo dela, a mulher do primo e eu, amontoados na carroceria de uma
caminhonete. Minha mãe e a tia da garota viajaram na cabine.
Lá (onde Maria O. havia morado antes de ir
estudar na cidade), Nelson Ned berrava pelo alto-falante da vitrola portátil.
Ah, era daqueles lugares em que todos os
apetites se aguçam. As pessoas comem bem, há frutas, frango, lábios com sumo de
jabuticaba.
Depois do almoço, aproveitando-me da leseira
que se abatera sobre os mais velhos, fui para a caminhonete, arrastando Maria
O. com um olhar.
Sentei ao volante e esperei. Daí a pouquinho,
a porta do lado do passageiro se abriu e Maria O. entrou, esticando aqueles
pernões compridos. Estava descalça. Tirei as Havaianas e pousei o pé direito no
acelerador.
Meu deusim do céu... mas meu deusim do céu...
Ela, com tremor na voz, murmurou, pondo em mim os lucilantes olhos castanhos:
“Me ensina a dirigir.” Eu...
Ora, leitor detalhista. É claro que me lembro
de haver dito, em crônica anterior, que a moça tinha olhos negros. E daí? Por
que uma coisinha assim tem que interferir no fluxo da narração? Ora.
Ficamos um tempão naquela cabine quente, eu a
ensiná-la a “dirigir” com o carro parado, nossos pés a se misturar com
acelerador, freio e embreagem, misturando-se uns aos outros, as mãos
apertando-se umas às outras no volante.
“Vamos montar”, ela disse, de repente. Hein?
Abriu a porta e chamou: “Vem.” Saiu correndo para a manga e voltou a puxar um
cavalo pelo cabresto. Ágil e bela, bela e ágil, com as longas pernas, saltou
para o animal. “Vem.”
Com dificuldade, apoiando-me numa cerca,
pulei para a garupa. Não havia cela. Minha bunda escorregou pelo lombo do
animal, e o baixo-ventre, irresistivelmente, foi-se apoiar no traseirinho dela.
Meu deusim do céu...
Saímos a cavalgar maciamente, a embrenhar-nos
pelas veredas. Por mais medroso que fosse, eu não tinha como segurar aquela
tesão. Agarrava a garota pela barriguinha, o pau atrás dela mais duro que
couraça de extintor de incêndio. Ai. Estava quase babando.
Ela fez o animal parar. Pediu que trocássemos
de posição. Balbuciei alegando que não sabia guiar cavalo. “Não tem
importância, eu guio”, disse a mocinha saltando para o chão. Deixei-me
escorregar para a frente, enquanto ela, pernões lindos à mostra, se acomodava
na garupa.
Aquele vestidinho amarelo de algodão, soltinho...
As pernas morenas, uma de cada lado de meu corpo trêmulo... Ela segurou as
rédeas, enlaçando-me por trás. E fomos, e fomos, o baixo-ventre dela coladinho
em mim.
Meu deus. Maria O. estava ficando mais ousada
do que eu. Respirava forte, com o queixo em meu ombro esquerdo. Só de imaginar
o pinguelinho dela...
Quando voltamos, lá estava novamente Nelson
Ned saindo pelo alto-falante da vitrola portátil: “... que tudo passa, tudo
passará...”
Antes que me esqueça: o título desta crônica
é uma homenagem que me faço.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 185, 25/2/2001)
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