quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Hamiltão ignora a ontologia, e parte para questões bizarras...

                                                                                                                     Ilustração: Salvio Juliano


À idílica luz do luar


A égua, na maior pachorra, apareceu de repente na esquina, batendo as patas no asfalto molhado. Parei para que aquele animal graúdo, nédio, de pelos claros, atravessasse o meu caminho.
Foi numa tarde da semana passada. Eu, debaixo de um chuvão danado, estava com pressa. A égua não.
Mas foi vê-la, leitor, foi só vê-la, e me lembrei de Maria O., sensualíssima garota de Anápolis. Até chegar à sede da Gazeta, não me importei mais com a chuva, aquecido pelas recordações.
O leitor, claro, não me vai chamar de animalesco, de adepto da zooerastia ou de coisa que o valha. Tampouco pensará que comparo qualidades atinentes a Maria O. com qualquer suposto atributo equino.
Ah, mas sei que, na verdade, o leitor é sacana, e já viajou para esse lado pervertido da mente.
À propos. Lembro que, noutra terra e noutros tempos, era comum sujeitinho sem freio sexual “possuir” égua ou jega (fêmea do jegue) em pastos alheios. Confesso que já testemunhei, já.
A operação era realizada geralmente por duas pessoas, à idílica luz da lua. Uma segurava o corrião em volta do pescoço do animal, mantendo-o com o traseiro virado para murundu feito por cupins, enquanto a outra...
Aquele que segurava o corrião era sempre o bocó, mesmo que depois quisesse e pudesse ter vez no traseiro da égua, ou seja, ia bater soro.
(É como se eu estivesse a ver o leitor fazendo carinha safada... botando dúvida... querendo crer que fui, pelo menos, um bocozinho.
Nisso é que dá a gente escrever com autenticidade. Aparece logo um enxerido para insinuar que tudo aquilo vem de experiência própria do autor.)
Paro de escrever e – plaft – bato na testa: onde ficamos com a Maria O.? Como posso esquecer-me da inesquecível? Como?
Não, não me esqueci daquele pedaço tentador de paraíso. Não. Só que...
Fico encafifado com certas coisas. O que leva sujeitinho, num mundo cheio de mulheres, a sair pelos brejos à cata de jumentas, cabras, jegas, a enlamear os pés e a encher a roupa de carrapichos?
Qual a sedução da vasta xandanga de mula, quando há tantas fêmeas da raça humana que correspondem muito bem? Por que encurralar a berregante cabrita do vizinho, se esse mesmo vizinho pode ser um segurador de corrião cuja mulher anda doidinha para soltar o berro?
É de ver, cético leitor, mocinho vibrante encarapitado em cupim, com as calças nos tornozelos, a empalmar um pau duríssimo, jumental, e a clamar, com voz entrecortada: “Chega mais... chega mais...”
Enquanto isso, lá na dianteira do muar, o bocó vai muxoxeando para induzir o animal, como se fosse um garagista.
O que poderia excitar tanto? A capitosa brisa da noite enluarada? O cheiro de estrume? A iminência de um coice na virilha? O quê?
Naquela tarde de chuva, a égua, com as patas ferradas a bater no asfalto, dorso luzidio, me lembrou Maria O. Mas – ora, expectante leitor, ora – Maria O., Maria O.... Ela que fique para próxima crônica.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 179, 14/1/2001)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Em texto aliciante, quase rapsódico, Hamiltão relata como se tivesse “roubado”


O maior chuparino

Subi ao telhado pela traseira da casa. Fui-me arrastando, devagar, até divisar o portão no outro lado da rua. Lá estava ela, a lúbrica Língua de Veludo.
O leitor, naturalmente, não se interessa por assunto tal qual o que se delineia nas palavras acima. Por isso, vou mudar de paleta e de tom.
Antes, porém, devo dizer que a lembrança da bela Língua de Veludo me ocorreu ao ver hoje, no ônibus, uma garota muito parecida com ela. (“... lembrança da bela Língua de Veludo” – o leitor sente como alitero deliciadamente...)
Pode ser coisa feia, mas a memória me arrasta ao encontro de Calhambeque, um velho desdentado que se dizia “o maior chuparino do mundo”.
No entanto, o que fez o sujeito ganhar o apelido de Calhambeque não foi a obscena e arreganhadíssima boca cheia de gengivas e vorazes papilas. Todo o puteiro daquela planaltina vila não o conhecia por outro nome.
Dizia-se no bar em que um de meus irmãos trabalhava, à margem da Rio-Bahia, que o epitetado (meu deus) vivia carregado de doenças venéreas. Vazava pus como carro velho solta óleo pelas juntas desgastadas.
Mesmo assim o desgraçado não perdia a pose. Dedo em riste, com veemência perdigoteira, proclamava: “Sou o maior chuparino do mundo.”
Isso poderia até ser verdade – sei lá, meu deus –, já que o infeliz era sempre muito bem-vindo ao brega. “Sou o maior chuparino do mundo.”
Não era um chupador qualquer. Afinal, artístico leitor, nunca houve um bailador chamado Nureyev.
A língua é realmente muito sutil, quer dizer, a língua portuguesa.
Caso em que pensar, o do Calhamba. Depois de levar anos fodendo todas as quengas do perímetro rodoviário, a trocar cocos com elas, o velhote passou a chupitá-las com unção cada vez maior, até consagrar-se definitivamente nos anais (ou vaginais) da vila.
O leitor, hoje, é testemunha de um retrocesso sem precedentes na história sexual da humanidade.
Conscientizado pela propaganda na televisão, putanheiro dos tempos atuais pega camisinha Ploc, a paraguaia, e vai à decadente casa de Tia Alzira para aplicar uma, digamos assim, fodinha formal.
Nada para encher a boca e proclamar: “Sou o maior chuparino do mundo.”
Ih, nem falar do amante pé de muro. O Valentino boqueteiro já não pode, galantemente, ajoelhar-se diante da amada, lotar as mãos de bunda e... fazer, leitor, fazer o que se faz com laranja destampada.
Há em mim como que uma sensação de perda. Não existem heróis iguais aos de antigamente. Ali, à margem da Rio-Bahia, eu, molequinho que mal se iniciava na punhetinha digital, ouvia, como se roubasse, épicos relatos de figuras que bailavam em torno de uma mesa de bilhar, nas tardes preguiçosas da amada vila planaltina.
Foi assim, cheio de aspirações, que anos depois me encarapitei no telhado de casa. Dali, passei a observar, excitadíssimo, a lasciva Língua de Veludo. Mas sinto que o assunto não interessa ao leitor, e paro por aqui.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 176, 17/12/2000)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Cenário estilo The Great Gatsby. Texto apressado, como se quisesse esquivar-se de personagens. E ecos, muito leves, do jornalismo provinciano


Confraternização de fim de ano

Chego de manso, a medo, a este canto de página. Não é uma volta triunfal, já que desta vez nenhum leitorzinho filho da mãe lamentou a ausência de minhas baboseiras semanais.
Nada de chutar o pau da barraca, nada de sacanais loucuras, nada de taras e tarinhas. Adiro, com este cronicão pesado, ao estilo modorrento de certos coleguinhas (como me detesto...).
Por falar em pau... Ah, não, não me deixarei cair na tentação das baixarias. Ando a reciclar-me nos páramos do amor.
Pois é, sentimentalizei-me de vez na festa de confraternização da Gazeta, domingo passado. É claro que a farta cerveja ajudou bocadão.
Retifiquei alguns sentimentos, concedi dois ou três perdões, jurei pagar uma ou outra dividazinha de mil-réis.
Minhas retinas, desbotadas pelo sol áspero da vida, serenaram-se no verde e no azul da paisagem onírica. Agarrei a utopia pela goela e bradei: “És minha.”
És minha. Comemorei a volta do eu possessivo, querente, aflitíssimo pelo gozo. Abri o sorriso incompleto e estendi as mãos a carícias de repente possíveis.
Beatificamente instalado diante de um copo inesgotável, à sombra das palmeiras, sucedeu de, vezinha que outra, eu ficar perdido olhar adentro. Em momento assim foi que alguenzinha me surpreendeu: “Por que essa carinha tão melancólica?”
Não, não havia melancolia. A cara de bunda era a mesma, apenas um pouco mais nua, desprevenida, como que arreganhada. Mas logo armei o ar blasé de intelectual aclamado por multidões ignaras.
E por falar em bunda... Ah, leitor de suplementos literários, paciência. Paciência. Como resistir ao fato? A calipigidade das meninas festeiras era realmente notável. Uma, em particular... Ora, leitor indiscreto. Bah.
Ganhei o meu domingo logo ao pisar o gramado irretocável da chácara. Com algum atraso, pois o caminho do eldorado nem sempre é fácil para não iniciados.
Aí, dei de cara com um esfuziante Luiz de Aquino. Ele acabara de conhecer Beethoven – pessoalmente. Olhei para o lado e vi o safado do Ludwig, surdo ao burburinho, a se esfregar nas torneadas pernas da colunista Jô Almeida. Aliás, ele (o poodle) era o único cachorro da festa.
Eu, pelo meu ladinho, preferi avaliar o rosto promissivo de Mona Lisa, cujo defeito circunstancial era estar debaixo do braço de Juarez Alencar, que não é e nunca foi nenhum marchand. Talvez por isso é que a menina, sob disfarce, tenha adotado o codinome de Sheila.
É, arredio leitor, sentimentalizei-me. Assim, reciclado, mas a medo, chego de manso ao meu velho cantinho de página.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 175, 10/12/2000)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O que vier, dois palitos. Na hora do aperto, Hamiltão aposta qualquer coisa, só para ter o gostinho de não dar o braço a torcer


Crises e mudanças

Estou (não vou generalizar com um “estamos”) no fundo da curva da crise. Mas, dizem, as crises prenunciam mudanças. Sei lá. Penso na crise que alguns amigos e eu vivíamos com a falta de cerveja durante o Plano Cruzado.
Leitor, ah, leitor, você já jogou porrinha? Não, não me refiro ao ato de atirar porra no côncavo uterino ou em antipático bico de camisinha. Ou em qualquer concavidade ou conduto. Ou mesmo em ralo de banheiro.
(Aliás, nessa variante do sublime esporte do gozo, a do banheiro, ultimamente ando no ápice de minha carreira de craque. Resultado de crises.)
Porrinha, no nobre sentido que aqui quero expressar, é o mesmo que jogo de palitinhos, conhecido também, por gerações mais cultas – ou esnobes –, como basquete de bolso. (E ainda dizem que não sou cultura...)
Na área coberta em frente ao bar do Florim (hoje o vistoso Supermercado Bom Sucesso, ainda de Florim e família), eu, metido em sensualíssimo calção (não desses bermudões escrotos), costumava bater uma porrinha adoidada.
O velho Argemiro, um aposentado da RFFSA (que o preguiçoso leitor descubra que diabo é isso), comandava o evento dos fins de semana. Figura alegre e levemente maliciosa, seu Argemiro, ao ver passar mulher boa, suspirava: “Ai, ai... Deus é justiceiro; tira a força mas não tira a vontade.” [O advento do Viagra viria confirmar essa “teologia”.]
A turma em volta da mesa, como é de praxe em jogo de palitinhos que se preze, apostava a próxima cerveja enquanto golejava a da garrafa posta. O dia, assim, transcorria gostoso, sombra aqui e solzão comendo na rua.
Ora, com a crise da carne, quero dizer, com a crise da cerveja, nossa disputadíssima farra semanal estava ameaçada. Foi quando alguém deu a ideia. Por força da crise, alguém tinha que ter uma ideia. “Por que a gente não aposta uma garrafa de jurubeba?”
Nas circunstâncias, era uma boa ideia. Mandamos descer uma garrafa de vinho de jurubeba (não me lembro se Leão do Norte ou se Cangaceiro). A certa altura, constatamos um problema: não se traga jurubeba no mesmo ritmo com que se bebe cerveja.
Como apostar a próxima? Como gritar, eufórico apesar da derrota, “Florim, desce a minha”? Havia sempre uma próxima depois da próxima da próxima. A chumbada era pra valer: pesava mesmo.
Decidimos, então, apostar carteira de cigarros. A coisa deu certo durante vários fins de semana, até que um não fumante (só pra variar...), que vinha numa maré de sorte, protestou.
Passamos a apostar barras de chocolate. Florim festejou, pois ali o produto não era muito acessível à garotada, e ele ficou, rapidinho, sem o estoque de chocolate.
Assim, chegamos a apostar até panela de pressão, ó meu. Era só um produto entrar em crise, a gente mudava para outro.
Vou sair desta.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 143, 30/4/2000)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A linguagem no embalo dos fatos, do tédio e do medo. Banalização


Um assalto light

Domingo passado, este portento da intelligentsia latino-americana assistia ao programa do Gugu quando... Vamos ao onde primeiramente.
Estava eu na mercearia de meus amigos Sebastião e Lourdes, pernões cruzados, concentradíssimo na mancha de molho de mostarda na calça jeans mais que bufada, quando uma voz de veludo, transbordante de amor e bondade, me fez erguer os olhos para o televisor atrás do balcão.
Era Celso Pitta. Não, leitor; espere. Não desista. Continue a ler. Afinal, sem você não sou ninguém.
Com a mais humílima cara de pau, o prefeito de São Paulo, falando para todo o Brasil, pedia à ex-cara-metade que “medisse as palavras”. Fiquei fascinado, embora, degenerado como sou, fizesse tradução simultânea: “Cuidado com o que diz, sua cabra.”
Mesmo com um revólver apontado para o rosto, demorei a sair do transe hipnótico.
Revólver apontado para o rosto? Sim, leitor, era um assalto. Mas vamos por partes.
Quando aportei na mercearia de meus amigos, às 8 da noite, estava mais entediado que jegue de cangalha estacionado em frente de bodega à espera do dono, que conta lorotas e enche a cara.
Na televisão, num intervalo comercial (intervalo comercial... que coisa), Ney Matogrosso, serpiginoso, matava de vergonha algum compositor sério.
Simpático jovem, que ali tomava cerveja com um amigo, me perguntou candidamente: “Ney Matogrosso é gay?” Sorri e perguntei se era só agora que ele desconfiava. Ele sorriu de volta, simpaticíssimo. “Pensei que esse jeitão dele fosse porque todo artista é malucão.”
Foi aí que me sentei, apoiando cotovelo no balcão. Além dos rapazes, que tomavam da cerveja mais barata (R$ 1), havia um senhor escorado num freezer, também a golejar. Tiãozinho e a mulher estavam sentados atrás do balcão.
Ney Matogrosso cedeu lugar a Celso Pitta. Os rapazes pagaram duas cervejas e pediram mais uma ao Tião. Quatro pessoas no recinto, cujo silêncio era quebrado pela voz rastejante – pura humildade e amor – de Pitta.
Com dificuldade para sair do torpor, dei rápida olhada na arma que um dos simpáticos rapazes que tomavam cerveja ao balcão apontava para o meu nariz, e voltei a me fixar no vídeo cheio de Pitta cordeirinho.
Quando a ficha caiu (como costuma dizer o populacho), voltei a olhar para o moço do revólver, já ensaiando um sorriso para sorrir da brincadeira.
Mas era mesmo assalto. O moço me disse, baixinho, para ficar quieto, e passou para o lado interno além do balcão. O outro informou baixinho ao homem perto do freezer que era um assalto, encostando uma arma enorme, de cano serrado, no pobre rim direito do respeitável senhor.
O respeitável senhor, com a mão direita, tirou a carteira e disse para o assaltante que nela só havia documentos. Nisso, com a mão esquerda, ele, maroto, jogava R$ 85 para trás do freezer. O gentil assaltante devolveu a carteira sem abri-la.
Fiquei lá, sentado, pernões cruzados, olhando ora para um assaltante, ora para a televisão, ora para o outro assaltante, ora para Tião e dona Lourdes. Ninguém ligava para mim nem para o meu dinheiro. Parece que a cara da gente diz tudo.
Enquanto dona Lourdes tremia toda, o danado do Tiãozinho estava lá, calmão, a ajudar o ladrão a catar notas de R$ 1 na gaveta. Era a primeira vez que ele se via envolvido em assalto, mas não se abalou. Nem parecia torcedor do Goiás Esporte Clube.
Os rapazes saíram sem terminar a terceira cerveja, a qual, aliás, se esqueceram de pagar. E custava apenas R$ 1. Mas deixaram algum troco para meus amigos.
Pessoas que estavam sentadas a uma mesa do lado de fora da mercearia nem sequer perceberam que ocorrera um assalto. Continuei sentadão, pernas cruzadas, a assistir ao programa do Gugu.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 138, 19/3/2000)