quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Os gênios incompreendidos às vezes se deixam contaminar pela presunção dos que os cercam...



Doença ocupacional

Ao revisitar Lisístrata, peça teatral de um matuto chamado Aristófanes, encontrei (reencontrei) vários erros de concordância verbal do tradutor e “adaptador” Millôr Fernandes, a partir da nota introdutória, cujo título também tem erro: “... como e porquê”. [Em respeito aos leitores de outros países que visitam Vida Cambaia: no Brasil, a palavra “porquê” é substantivo (o porquê), enquanto a conjunção “porque” (por + que) se grafa separadamente (por que motivo). Como diria o colunista José Simão, não há reforma que dê jeito.]
É vício, ou melhor (ou pior), é doença ocupacional do indivíduo isso de ficar vendo erros em tudo o que lê.
É duro não poder saborear sossegadamente uma boa leitura sem ficar tropeçando a todo momento em errinhos que não seriam notados por pessoas normais e felizes.
(Boa leitura? Há quem goste muito de Márcio Souza. Até apreciei A Resistível Ascensão do Boto Tucuxi, apesar de chorar o tempo todo sobre cadáveres gramaticais e perder a coragem de encarar Galvez Imperador do Acre, “10ª edição revista pelo autor”.)
Não gosto de apontar deslizes gramaticais em texto de ninguém. Cometo os meus, e também não acho bom que neguinho fique debochando de minhas escorregadelas, ou mesmo de meus escorregões de arrebentar o pobre glúteo.
Quando o dever me chama, não me importa nem um pouco que o autor fique com o queixo pousado no meu ombro para acompanhar a revisão e “sentir”. (Epa, peraí, peraí... Sentir mudança de estilo, quando necessária.) Se ele não quiser acompanhar a minha leitura, faço as correções caladinho.
Leio e não dou sequer opinião a respeito do que li. Se neofitozinho estiver mesmo interessado em pegar o tchã ou brigar comigo, que observe o trabalho com atenção depois de publicado.
O que pega mal é sujeito apontar erro errando. Já vi maganão cometer dois ou três em frase miúda para apontar unzinho de coitado com quem não se deveria perder tempo.
Agora mesmo estou com o toba arrochado.
Todo mundo já viu aquela advertência nas saídas de Goiânia e comentou sobre ela: “Fiscalização eletrônica à 500 metros”.
Eis como o monumento de O Popular Ivan Mendonça, na coluna “Giro” do dia 19, informa, sob o título manjado de “Flor do Lácio”:
“Na GO-020, na saída para Bela Vista, o Dergo atropelou a língua portuguesa ao colocar uma crase a mais nas placas anunciando fiscalização eletrônica a 500 metros.”
Esse “uma crase a mais” é demais, ó meu. Principalmente se considerarmos que não há nem uma crase no alerta do Dergo. O que há é um diacrítico que não deveria estar lá.
Sem querer ser professoral, tolerante leitor, crase (no caso da letrinha a que se quis conferir tal papel) é a fusão da preposição “a” com o artigo “a”.
O sinalzinho, coitado – o acento grave –, apenas indica essa fusão, como aliança em dedo de homem safado, aliás, casado. [Há quem defenda o uso desse acento nos monossílabos resultantes das contrações de “para a” (prà) e “para o” (prò), que em Portugal se grafa também com o agudo (pró), ou seja, o monossílabo é considerado tônico. Haja acordo.]
Já houve coisa mais grave. Nestor de Holanda, em sua cartilha citadíssima neste espaço (A Ignorância ao Alcance de Todos), diz que o recordista (na época, década de 60), tratando-se de busca à crase, era Max Gold, “repórter lítero-recreativo”. [Aqui, o Acordo Ortográfico ainda não permitiu um acordo: lítero-recreativo ou literorrecreativo?]
Holanda lembra que, quando divulgador da Rádio Guanabara, o “beletrista” enviou nota aos jornais afirmando: “A programação é á seguinte...”
“Errou, assim”, explica o jornalista, “duas vezes, numa letra só, o que jamais foi conseguido por qualquer campeão”, porque aí não há crase e, se houvesse, o acento não seria o agudo.
Bem. De Lisístrata passo para As Nuvens, na tradução de Gilda Maria Reale Starzynski, que, ao que parece, não menosprezou o leitor fazendo adaptação (ou “ampliando o humor”), o que poderia ser feito durante a montagem da peça.
O vício de ler demasiadamente com os olhos é uma doença. O cara sai do trabalho, pega um livrinho para relaxar e continua trabalhando. Só que dessa vez sem remuneração. Ô sina.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 118, 31/10/1999)

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