Doença ocupacional
Ao revisitar Lisístrata,
peça teatral de um matuto chamado Aristófanes, encontrei (reencontrei) vários
erros de concordância verbal do tradutor e “adaptador” Millôr Fernandes, a
partir da nota introdutória, cujo título também tem erro: “... como e porquê”. [Em
respeito aos leitores de outros países que visitam Vida Cambaia:
no Brasil, a palavra “porquê” é substantivo (o porquê), enquanto a conjunção
“porque” (por + que) se grafa separadamente (por que motivo). Como diria o
colunista José Simão, não há reforma que dê jeito.]
É
vício, ou melhor (ou pior), é doença ocupacional do indivíduo isso de ficar
vendo erros em tudo o que lê.
É
duro não poder saborear sossegadamente uma boa leitura sem ficar tropeçando a
todo momento em errinhos que não seriam notados por pessoas normais e felizes.
(Boa
leitura? Há quem goste muito de Márcio Souza. Até apreciei A Resistível
Ascensão do Boto Tucuxi, apesar de chorar o tempo todo sobre cadáveres
gramaticais e perder a coragem de encarar Galvez Imperador do Acre,
“10ª edição revista pelo autor”.)
Não
gosto de apontar deslizes gramaticais em texto de ninguém. Cometo os meus, e
também não acho bom que neguinho fique debochando de minhas escorregadelas, ou
mesmo de meus escorregões de arrebentar o pobre glúteo.
Quando
o dever me chama, não me importa nem um pouco que o autor fique com o queixo
pousado no meu ombro para acompanhar a revisão e “sentir”. (Epa, peraí,
peraí... Sentir mudança de estilo, quando necessária.) Se ele não quiser
acompanhar a minha leitura, faço as correções caladinho.
Leio
e não dou sequer opinião a respeito do que li. Se neofitozinho estiver mesmo
interessado em pegar o tchã ou brigar comigo, que observe o trabalho com
atenção depois de publicado.
O
que pega mal é sujeito apontar erro errando. Já vi maganão cometer dois ou três
em frase miúda para apontar unzinho de coitado com quem não se deveria perder
tempo.
Agora
mesmo estou com o toba arrochado.
Todo
mundo já viu aquela advertência nas saídas de Goiânia e comentou sobre ela:
“Fiscalização eletrônica à 500 metros”.
Eis
como o monumento de O Popular Ivan Mendonça, na coluna “Giro”
do dia 19, informa, sob o título manjado de “Flor do Lácio”:
“Na
GO-020, na saída para Bela Vista, o Dergo atropelou a língua portuguesa ao
colocar uma crase a mais nas placas anunciando fiscalização eletrônica a 500
metros.”
Esse
“uma crase a mais” é demais, ó meu. Principalmente se considerarmos que não há nem
uma crase no alerta do Dergo. O que há é um diacrítico que não deveria
estar lá.
Sem
querer ser professoral, tolerante leitor, crase (no caso da letrinha a que se
quis conferir tal papel) é a fusão da preposição “a” com o artigo “a”.
O
sinalzinho, coitado – o acento grave –, apenas indica essa fusão, como aliança
em dedo de homem safado, aliás, casado. [Há quem defenda o uso desse acento nos monossílabos resultantes das contrações de “para a” (prà) e “para o” (prò), que em Portugal se grafa também com o agudo (pró), ou seja, o monossílabo é considerado tônico. Haja acordo.]
Já
houve coisa mais grave. Nestor de Holanda, em sua cartilha citadíssima neste
espaço (A Ignorância ao Alcance de Todos), diz que o recordista (na
época, década de 60), tratando-se de busca à crase, era Max Gold, “repórter
lítero-recreativo”. [Aqui, o Acordo Ortográfico ainda não permitiu um acordo: lítero-recreativo ou literorrecreativo?]
Holanda
lembra que, quando divulgador da Rádio Guanabara, o “beletrista” enviou nota
aos jornais afirmando: “A programação é á seguinte...”
“Errou,
assim”, explica o jornalista, “duas vezes, numa letra só, o que jamais foi
conseguido por qualquer campeão”, porque aí não há crase e, se houvesse, o
acento não seria o agudo.
Bem.
De Lisístrata passo para As Nuvens, na tradução de
Gilda Maria Reale Starzynski, que, ao que parece, não menosprezou o leitor
fazendo adaptação (ou “ampliando o humor”), o que poderia ser feito durante a
montagem da peça.
O
vício de ler demasiadamente com os olhos é uma doença. O cara sai do trabalho,
pega um livrinho para relaxar e continua trabalhando. Só que dessa vez sem
remuneração. Ô sina.
Hamilton
Carvalho
(Gazeta
de Goiás, nº 118, 31/10/1999)
Nenhum comentário:
Postar um comentário