quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Texto burocrático. Não propriamente chato, porque o estilo é brilhante


O superguarda de trânsito


O Detran está de parabéns. Conta em seus quadros com um funcionário cujas qualidades sobrenaturais causam arrepio até neste incrédulo cronista.

O guarda especialíssimo a serviço do Detran não apenas vê o invisível, como pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Temos aqui, portanto, um atributo divino, a ubiquidade, aliado à capacidade de voyeur do Super-Homem.

Só que o Super-Homem usava o dom para apreciar a calçola da namorada (quando o besta podia ir além), e o guarda de trânsito o tem para a prosaica e pouco excitante atividade de ler placas de carro ilegíveis.

O milagre é comprovado pelo Auto de Infração A46275. A Bernadette Soubirous, no caso, é o pacato cidadão cumpridor das leis chamado Jaime Pereira Cardoso, brilhante funcionário de O Popular, e a Lourdes é a nossa surpreendente Goiânia.

Amigo cá do degas, Jaimão me procurou para relatar o imponderável evento, em vez de procurar o papa. Na verdade, ele não está interessado em pedir a canonização de ninguém.

A aparição da Virgem Maria, aliás, do guarda deu-se às 18h49 do dia 26 de abril, conforme o auto (que não é o da Compadecida). Ou seja, 49 minutos depois que Jaime assumira suas funções, como pode atestar o departamento de pessoal do jornal.

O bom moço mora no Setor Urias Magalhães e faz todos os dias o mesmo trajeto: Avenida Goiás Norte-Marginal Botafogo-Serrinha. A Virgem, aliás, o guarda registrou a falta “gravíssima” na Avenida T-2, Setor Bueno.

O milagre trouxe para a vida do dedicado trabalhador a cobrança de R$ 140,69 e sete pontinhos. E Jaime, mesmo com toda a fé do mundo, reluta em fazer a promessa de pagar a multa, com ou sem os “20% de desconto já incluso”, apesar dos R$ 6 de FHC [Fernando Henrique Cardoso, à época presidente do Brasil; a mixaria se refere ao “reajuste” do salário mínimo do ano].

O caso não é o mesmo da moça que foi multada por pilotar sem capacete. Isso porque o Monza que ela conduzia fora flagrado por um guarda normal, suponho. Nem o caso do dono de carro multado por estacionar no interior da própria garagem.

Fatos assim acontecem, porque são da vida terrena.

Surpreendente mesmo é o fato de um agente do Detran postado na Avenida T-2 anotar à noite o número ilegível da placa de um carro com o motor já frio no estacionamento da Organização Jaime Câmara.

Mas Jaimão, homem de boa vontade, acredita que apenas houve um mal-entendido, e pede reparação. Em troca, em nome da fé cristã, concederá o perdão àquele que, em momento de fraqueza, se deixou cair em tentação.

Ele me conta que ao voltar do trabalho, 15 minutos depois da meia-noite, logo no comecinho do dia seguinte ao dia em que recebera a notificação, foi parado por dois pê-emes, que lhe gritaram a senha: “A cidade contra o crime!” (Não gosto do sinalzinho do barulho, mas voz de polícia não soa bem sem ponto de exclamação.)

Meloso (como se deve ser na presença intimidadora da Autoridade), o “menino Jaime”, encarecidamente, pediu a um deles que lhe conferisse a placa (do carro) e atestasse a incorreção do auto de infração.

O moço da tolerância-zero garantiu que não havia nada de errado com nenhuma das chapas de licenciamento do veículo. No entanto, recusou-se a registrar o fato no documento, o que se deveria fazer em qualquer lugar onde se desprezasse o excesso de burocracia.

Mas, quem sabe, a recusa se devesse ao fato de o fato ser tão concreto, tão claro, tão facilmente constatável... A vocação para o sobrenatural deu voz quase de gente comum ao policial: “Isso não é de minha alçada.” (A contrição exige a ausência do ponto exclamativo.)

Claro, ele não cometeria a imprudência de arrostar o poder divino.

Coube a mim, e não ao papa, ouvir as lamúrias do amigo. “Sempre fui cumpridor de meus deveres, sempre obedeci às leis de trânsito muito antes do novo código e, ainda por cima, paguei os impostos do veículo antes do vencimento.”

Não adianta, Jaimão. Se quiser se livrar dessa, vai ter que enfrentar burocracia da pesada, a burocracia do celestial Detran. Quem sabe o todo-poderoso se apiede...


Hamilton Carvalho

(Gazeta de Goiás, nº 96, 9/5/1999)

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