quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Hamiltão, na prática, revela o truque: o que vale não é aquilo que se diz, mas como se diz



Ventos de agosto

Penteadíssimo, botei a cara na ladeira. Os ventos de agosto me apanharam à porta de casa e me levaram ao ponto de ônibus.
Fiquei ali um tempão, no côncavo da frente fria que se abatera sobre a cidade, imaginando com que enganar o leitor esta semana.
Diante de mim havia bela carroceria metida em justíssima calça preta. A moça – a dona da carroceria – não me dava a mínima bola. Até aqui, nada de assunto para crônica.
Na verdade, assunto não me falta. Acontece que o negócio de mexer com a minha vida entrelaçada com outras vidas assusta um pouco a freguesia, pois há quem duvide de meu bom senso.
“Esse cara”, neguinha pode pensar, “vai contar pra todo mundo, e por escrito, que eu dei pra ele.”
Peguei, leitor, peguei a explicação para tão longa abstinência.
Mas, por cima da explicação, bate crudelíssima dúvida: será que tenho tantas leitoras assim?
Se a coisa continuar no pé em que está, vou botar anúncio no “Classiamor” do Diário da Manhã – o que me levaria a entrar em competição direta com a moçada do Cepaigo [Centro Penitenciário Agroindustrial de Goiás, hoje com outra denominação].
Enfim, apareceu o ônibus. Sem pressa, subi os degraus atrás daqueles hemisférios languidamente móveis que recheavam a calça acetinada da jovem.
Os hemisférios, por breve momento à altura de minha cara, pareciam zombar de mim, o olho nos meus olhos. (Ai, preciso urgentemente...)
Um coleguinha que me acha pra-baixo disse que eu deveria aprender a fazer “egomarketing” (depois de tanto trabalho tentando aprender a ser só...).
Merdíssima nenhuma. Não necessito de nenhum apelo estilo spotlight. Quero atrair apenas uma parte da humanidade – a parte feminina. Só.
Isso a gente faz com discrição e charme, não com presepadas chamadas autoestima, o egotismo disfarçado de alto-astral (ou será, por aproximação, autoastral? Não tenho aqui nenhum manual de autoajuda para dirimir a dúvida).
Não faltam mocinhas a me oferecer alma e coração, é certo. Mas não sei por que descargas d’água isso é tudo o que estão dispostas a dar. Elas me pegaram para cristo, só pode.
Dentro do ônibus não vi novidade. A mesma massa a se comprimir, a mesma sovaqueira, as mesmas pisadelas, os mesmos trancos. Sem novidade.
A determinado ponto entrou uma mulher de velocímetro já meio carregado, vestida com elegância e a ostentar monumental cabeleira mogno.
Ela, majestosamente, abriu caminho entre a caboclada ignara do subúrbio. Trazia no peito uma espécie de outdoor.
Aliás, a propósito do cabelo mogno da mulher. Recorro mais uma vez a manual de Nestor de Holanda, para quem os puristas não gostam que se diga acaju. Galicismo.
Mas o jornalista justifica o ponto de vista da dama do society: “Cabelo acaju é uma coisa; cabelo mogno não dá ideia do que o cabeleireiro cobrou.”
No nosso caso, como se trata de cabeleireiro de periferia, vai mogno mesmo. Afinal, a tabela de preços é afixada logo à entrada do salão de beleza.
No outdoor, isto é, no broche enorme que a mulher trazia... Ah, en passant: broche, como se sabe, também é francesismo. É por isso que a moçada de hoje prefere button, no castiço inglês de Rosenwal Ferreira [que, assim como todo publicitário, escreve “bottom”, grafia que está mais para bunda do que para o detalhe, na ácida observação do cronista].
No button da mulher (não no botão, atente-se), no button estava escrito em letras negras: “Comece a emagrecer agora”. Depois, letras vermelhas: “Pergunte-me como”.
Ela, apesar da certa quilometragem, era a própria garota-propaganda, ao vivo vivíssimo. Havia – mas relevemos – alguma banhazinha meio que dissimulada. O que justificaria mais uns dizeres: “Já fui bem mais gorda, juro”.
Desci do ônibus e, empurrado pelos ventos de agosto, por fim cheguei à redação da Gazeta, desgrenhadíssimo. E aqui estou, ainda sem assunto para a crônica da semana. Sem assunto vou ficar, pronto.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 111, 22/8/1999)

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