São João passou por aqui?
O espírito
do são-joão não baixou no meu terreiro. Ou, numa resposta impossível na minha
terra: São João não passou por aqui.
Para mim, o nome santificado é apenas sinônimo de
festa, e não ando lá com o espírito muito festivo.
Lembro-me de remotos são-joões. Gostava muitíssimo
daquelas noites pirotécnicas e sensuais, densas.
Hoje, em outro espaço e outro tempo, qualquer
traque me deixa abalado e quase toda mulher complica e dá chabu. Uma
sem-graceza só.
A cada são-joão, madrinha Mira mandava erguer
fogueira colossal, enfeitava o terreiro com papéis coloridos e abria as portas
da casa. Para entrar e tomar um licorzinho não era nem preciso gritar a senha:
“São João passou por aqui?”
Dona Mira tinha o bem-querer de todos, e para mim
ela era fantástica, maravilhosa: uma fada, a fada madrinha.
Morreu depois de longa e dolorosa enfermidade. Aí,
leitor sentimentaloide e besta, as festas juninas deixaram de ser muita coisa
para mim. O santo parece que foi perdendo a alegria, até deixar de passar pelo
meu pedaço.
Mas que ele passava passava, e com generosidade.
Para conferir, pequeno grupo de meninos saía pelas ruas, parava em frente a uma
casinha e gritava o abre-te sésamo.
Era recebido com as honras da casa e tomava do
licor – que era verde ou vermelho ou amarelo, servido em pequenino copo de
vidro grosso – e partia alegremente com as mãos cheias de biscoito.
Tudo muito bem-comportado, apesar da estrepitosa
alegria. Barulho havia com intensidade por todo lado. Os estrondos, pipocos e
chiados dos fogos de artifício não incomodavam. Todo mundo estava no coração da
alegria.
Hoje, até estouro de saquinho de papel me
desmantela. Então imagine você, leitor pacato, o que é ter de aturar molecada
de rua atirando bombinhas para tudo quanto é lado. É de estourar o peito
combalido de intranquilos transeuntes.
O pior para mim é que os diabretes, em ostensiva
provocação, acham por bem colocar bomba na caixa de correio da minha casa. O
estrondo é enlouquecedor.
Para provar a ação dos pequenos vândalos, tenho
aqui no bolso o aviso de vencimento da conta de energia, todo chamuscado.
Não sei. Talvez ande para lá de sensível. Certa
vez, por exemplo, fui assistir a um jogo de futebol de salão em Anápolis, e as
torcidas festejavam cada gol com rojões.
Já pensou? Em ginásio pequeno, cobertura de zinco,
com aquela acústica miserável, seria justo que o cidadão se revoltasse. Mas
não, todo mundo parecia muitão satisfeito da vida.
Somente eu, o boboca, fui quem esboçou gesto de
indignação. Logo brecado por pessoinha festiva: “Ora, cara, você precisa entrar
no espírito da coisa.”
Espírito da coisa... Ela, a bonachona, é que não
soube, anos depois, entrar no espírito de minha coisa, que tanto a atraía. Ou
atrai, não sei. Ainda estamos por ver.
Aliás, estou completamente no estar por ver, no
estar por fazer, nas pendências e dependências. Não sei o que serei de mim, da
vida e das mulheres.
Em crise, estagnado, sinto-me lagoa cheia de limo,
a sobrar, miúda, no chão estorricado da caatinga da solidão.
Ah... Eis a razão deste texto carregado de má
vontade, nadinha festivo. Com a alma ensombrada, sem pirotecnia, como é que
poderia casar meu espírito com o espírito dos que amam e são amados, dos que
veem e são vistos, dos que dão e recebem?
Não há em meus olhos a chama bailarina da fogueira
de madrinha Mira. Já não sei sequer balbuciar a senha que me abriria a porta
hospitaleira do amor e da fraternidade.
Pô, leitor estonteado com tanta bestagem
adjetivada. O espírito do são-joão não baixou no meu terreiro, mas não é
preciso que você acredite nesta dose homérica de melado.
É certo que São João não passou por aqui. Nem
qualquer outro santo. Isto, todavia, não é o fim da picada.
Resta congratular-me pela proeza de redigir 70
linhas (não cheias) sem ter o que dizer.
Hamilton Carvalho