quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O grande cronista, sob pressão, em virada de ano, cai para o sentimentalão



Uma boa ideia

Mesa farta, todos felizes, no aconchego do lar. É claro que me faço exceção e dispenso toda frescura. Só queria ter uma boa ideia para produzir texto que fosse digno de minhas filhas, distantes.
Elas, no entanto, aprenderam que meu amor não se prende a convenções. Passagem de ano... Mas bem que eu gostaria de tê-las a meu lado neste momento. Imensamente.
Se não consigo arrancar uma boa ideia deste cansado e melancólico cérebro, poderia ao menos falar da ideia dos outros.
Por exemplo.
Engenho Novo, Rio. Num tempo em que isso não era comum acontecer comigo (era mesmo muito difícil), entrei em uma lanchonete. Além do dinheiro para o trem, tinha somente o de um cafezinho, e a fome me avassalava o estômago.
Eu precisava de energia para aguentar os trancos do batente, algo que a beberagem pegajosa que me serviram não me daria.
Tive, então, o que considerei boa ideia. Despejei tanto açúcar no café que ele, de pegajoso, passou a gosmento. Energia pouca, mas energia, pensei. Aliás, essa tática de enganar a natureza vinha de outros tempos.
Enquanto empurrava aquela coisa, tentava a todo custo desviar os olhos do belíssimo lanche que um garoto, mais ou menos de minha idade, arrastava para o bucho. Éramos, ali, os únicos fregueses. Ainda muito cedo, 5 da manhã, hora de encarar o caminho do trabalho.
O garoto, depois de devorar a segunda remessa, foi saindo tranquilamente, palitando os dentes. Sem ter pago.
O dono da espelunca, ao sentir o calote, saiu para a calçada e berrou: “Ei, volte aqui, seu desgraçado.” O caloteiro, já a uns trinta metros, nem deu bola. “Não vai pagar não, filho da mãe?”
O rapaz, como se fizesse uma concessão, parou e, virando-se, disse, cheio de direito: “Não, mas também não vou morrer de fome.”
A ideia que eu não tive ao entrar na lanchonete. No entanto, recebendo-a de mão beijada, não fui capaz de também colocá-la em prática.
Realmente: morrer de fome é imbecilidade. Eu ali, diante de estufas cheias, aspirando odores que falavam até à alma de bem-abastecidos... Eu ali, olhos fundos, quase arriando a carcaça. E muito honesto.
Por sinal, minha mente nunca soube discernir bem as coisas. É por isso que me pergunto se também pratiquei a honestidade quando, por exemplo – nos velhos tempos a que me referi ao falar da “tática” –, recusei certo convite.
Na ocasião, em firma exportadora de borracha, eu tentava conseguir um vale fora de época. Para tanto, tive que expor o “humilhante” motivo.
Em vez de grana, um pau de cabeleira me veio lá com um papelzinho. Um endereço, na belíssima caligrafia da contadora da firma. Um sussurro informou que aquela tirinha significava lauto jantar.
Acontece que o pau de cabeleira era uma garota, e que garota. A qual eu desejava ardentemente comer, claro.
Decepção. Logo ela. Logo ela... Transformar-se em caftina para me prostituir...
Veja você, leitor libertino: sou incompetente até para exercer o ofício de gigolô, ofício útil-com-agradável.
De qualquer forma, guardei o papelzinho. Fim de expediente voltei para o quartinho que havia alugado no Bairro de São Jorge, Manaus. E tive sorte: comi o pirarucu da senhoria.
Uma ideia. Tudo por uma ideia.
É angustiante sentir tanta fome de palavras e não conseguir o estofo de uma ideia, um conteudozinho qualquer para cumprir o dever paterno de demonstrar afeto.
É por isso que caio no desespero e na vulgaridade. Fico feliz apenas porque sei que a Elza e a Lígia me entendem. “Meu pai é tão bobo”, dirão por certo.

(Gazeta de Goiás, n.º 78, 31/12/1998)

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