Uma boa ideia
Mesa farta, todos felizes, no aconchego do lar. É claro que me faço exceção e dispenso toda frescura. Só queria ter uma boa ideia para produzir texto que fosse digno de minhas filhas, distantes.
Elas, no entanto, aprenderam que meu
amor não se prende a convenções. Passagem de ano... Mas bem que eu gostaria de
tê-las a meu lado neste momento. Imensamente.
Se não consigo arrancar uma boa ideia
deste cansado e melancólico cérebro, poderia ao menos falar da ideia dos
outros.
Por exemplo.
Engenho Novo, Rio. Num tempo em que
isso não era comum acontecer comigo (era mesmo muito difícil), entrei em uma
lanchonete. Além do dinheiro para o trem, tinha somente o de um cafezinho, e a
fome me avassalava o estômago.
Eu precisava de energia para aguentar
os trancos do batente, algo que a beberagem pegajosa que me serviram não me
daria.
Tive, então, o que considerei boa
ideia. Despejei tanto açúcar no café que ele, de pegajoso, passou a gosmento.
Energia pouca, mas energia, pensei. Aliás, essa tática de enganar a natureza
vinha de outros tempos.
Enquanto empurrava aquela coisa,
tentava a todo custo desviar os olhos do belíssimo lanche que um garoto, mais
ou menos de minha idade, arrastava para o bucho. Éramos, ali, os únicos
fregueses. Ainda muito cedo, 5 da manhã, hora de encarar o caminho do trabalho.
O garoto, depois de devorar a segunda
remessa, foi saindo tranquilamente, palitando os dentes. Sem ter pago.
O dono da espelunca, ao sentir o
calote, saiu para a calçada e berrou: “Ei, volte aqui, seu desgraçado.” O
caloteiro, já a uns trinta metros, nem deu bola. “Não vai pagar não, filho da
mãe?”
O rapaz, como se fizesse uma concessão,
parou e, virando-se, disse, cheio de direito: “Não, mas também não vou morrer
de fome.”
A ideia que eu não tive ao entrar na
lanchonete. No entanto, recebendo-a de mão beijada, não fui capaz de também
colocá-la em prática.
Realmente: morrer de fome é
imbecilidade. Eu ali, diante de estufas cheias, aspirando odores que falavam
até à alma de bem-abastecidos... Eu ali, olhos fundos, quase arriando a
carcaça. E muito honesto.
Por sinal, minha mente nunca soube
discernir bem as coisas. É por isso que me pergunto se também pratiquei a
honestidade quando, por exemplo – nos velhos tempos a que me referi ao falar da
“tática” –, recusei certo convite.
Na ocasião, em firma exportadora de
borracha, eu tentava conseguir um vale fora de época. Para tanto, tive que
expor o “humilhante” motivo.
Em vez de grana, um pau de cabeleira me
veio lá com um papelzinho. Um endereço, na belíssima caligrafia da contadora da
firma. Um sussurro informou que aquela tirinha significava lauto jantar.
Acontece que o pau de cabeleira era uma
garota, e que garota. A qual eu desejava ardentemente comer, claro.
Decepção. Logo ela. Logo ela...
Transformar-se em caftina para me prostituir...
Veja você, leitor libertino: sou
incompetente até para exercer o ofício de gigolô, ofício útil-com-agradável.
De qualquer forma, guardei o
papelzinho. Fim de expediente voltei para o quartinho que havia alugado no Bairro de
São Jorge, Manaus. E tive sorte: comi o pirarucu da senhoria.
Uma ideia. Tudo por uma ideia.
É angustiante sentir tanta fome de
palavras e não conseguir o estofo de uma ideia, um conteudozinho qualquer para
cumprir o dever paterno de demonstrar afeto.
É por isso que caio no desespero e na
vulgaridade. Fico feliz apenas porque sei que a Elza e a Lígia me entendem.
“Meu pai é tão bobo”, dirão por certo.
(Gazeta de Goiás, n.º 78, 31/12/1998)
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