quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Hamiltão fala de bela e cativante amizade. Exemplo edificante, ainda que periférico


O peru do Natal

Dias atrás vi Divino Copo-Cheio sentado à porta de sua casa, com um litrão de 51 entre as pernas e, na mão, um copo evidentemente cheio. Gentilíssimo, levantou-se para me cumprimentar. Aliás, a gentileza é traço que tem em comum com Natal, amigo dele de memoráveis cachaçadas.
Eu me lembrei de que uma semana antes havia encontrado Natal lavando a caveira num boteco. Ora, mas ele não havia deixado de beber?
“Meu camaradinha, estou apenas dando uns tapas de leve”, tentava se justificar, como se eu tivesse lá alguma coisa com o fato.
Ao avistar Copo-Cheio, com aquele eterníssimo boné verde desbotado, bateu-me a lembrança dos tapas de Natal. Era no tempo em que os dois eram inseparáveis companheiros de rabo de galo.
Certa vez, no antigo bar do Florim, aproximaram-se do balcão e Natal pediu: “Camaradinha, sirva-me um café, por obséquio.” Natal é assim, todo maneiroso.
Café, para ele, é a mistura de pinga com vinho de jurubeba, da mesma forma que cerveja, nos bons dias de bolso mais ou menos, é sorvete. “Camaradinha, sirva-me um sorvete.” Logo em seguida: “Bem geladinho, se não for pedir demais.”
Quando Florim bateu o fundo do copo de “café” no balcão de fórmica vermelha, Natal o agarrou e ofereceu a Divino. “Copo-Cheio, dê um tapa aqui.”
Divino deu. Com toda a força. Para desalento do gentil Natal, o copo voou e foi explodir na rua. Melífluo, perguntou: “Meu coleguinha, por que fez isso?”
Nunca vi Natal brigar com ninguém, nem mesmo com um Divino desaforado.
Na verdade, eles eram muito unidos. Quando Natal comprou uma velha motocicleta de 125 cilindradas, de cor preta e ronco suspeito, era comum a gente encontrar os três juntos, ao ritmo de um só cambaleio.
Levaram uma queda feia. Até pensei que nunca mais andariam – abarrotados de canjebrina – na bendita “aranha”, como carinhosamente era tratado o veículo.
Que nada. Estropiados, pintados de iodo, continuaram com seus passeios de moto.
Uma noite, depois de depositarem umas tantas na moleira, o proprietário da moto resolveu levar o amigo para casa. Só percebeu que o Copo-Cheio tinha ficado pelo meio do caminho quando chegou ao destino.
Voltou. Quase não encontra o amigo, aninhado em escura valeta.
Natal casou. Fiquei admiradíssimo. Deixou de beber. Fiquei mais admirado ainda. Melhorou de vida, comprou um Fusca. A amizade com Copo-Cheio esfriou, porque mulher de amigo interfere, não quer sorver bafo de pinga nem tolerar chatice de bebum.
Não fiquei espantado ao ver que Natal empunhava um copo de sorvete, dando seus tapinhas de leve. Em casos assim, recaída é coisa comum. Geralmente sujeitinho que deixou de beber recomeça com uma Caracuzinha.
Mas, afinal, leitor esperto, que diabo este texto chanfrado tem a ver com o peru do Natal, pendurado aí em cima à guisa de título?
Macho como eu não tem que ficar comentando acerca de pintos e muito menos de perus.
O peru do Natal só interessava às “meninas” da Tia, quando o moço era solteiro e passava por lá antes de seguir para o trabalho.
“Meu camaradinha”, costumava proclamar consultando o relógio, “não leve a mal, mas estou meio que apressado.” Quando saía para trabalhar não tomava cafezinho. Passava no Florim para ver os camaradinhas.
“Estou com pressa, ainda vou passar na Tia para furar um courinho.”
Pois é, o peru do Natal só podia interessar às meninas da Tia. Assim mesmo porque ia acompanhado de uma “gratificaçãozinha”.
Mas o sujeitinho casou. Copo-Cheio passou a andar caidão para o melancólico. Afinal, era amizade bonita, com “tapas” e, acredito, sem beijos.
Ali, à porta de casa, sentado com litrão de 51 entre as pernas, sozinho, estava Divino a empunhar o xará. Na cabeça o boné verde desbotado.
Há alguma esperança, não há, leitor sentimental? Devagarzinho, devagarzinho, com tapinhas de leve, o natalício amigo volta a beber. Aí, quem sabe, a velha amizade tornará.
Os dois, então, voltarão a entoar canções da Jovem Guarda ao pé do balcão.
O bar do Florim deixou de existir. Mas a notícia já corre: Tiãozinho do Opala Preto abriu um boteco.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 77, 27/12/1998)

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