Dias atrás vi Divino
Copo-Cheio sentado à porta de sua casa, com um litrão de 51 entre as pernas e,
na mão, um copo evidentemente cheio. Gentilíssimo, levantou-se para me
cumprimentar. Aliás, a gentileza é traço que tem em comum com Natal, amigo dele
de memoráveis cachaçadas.
Eu me lembrei de que uma semana antes havia encontrado Natal lavando a
caveira num boteco. Ora, mas ele não havia deixado de beber?
“Meu camaradinha, estou apenas dando uns tapas de leve”, tentava se
justificar, como se eu tivesse lá alguma coisa com o fato.
Ao avistar Copo-Cheio, com aquele eterníssimo boné verde desbotado,
bateu-me a lembrança dos tapas de Natal. Era no tempo em que os dois eram
inseparáveis companheiros de rabo de galo.
Certa vez, no antigo bar do Florim, aproximaram-se do balcão e Natal
pediu: “Camaradinha, sirva-me um café, por obséquio.” Natal é assim, todo
maneiroso.
Café, para ele, é a mistura de pinga com vinho de jurubeba, da mesma
forma que cerveja, nos bons dias de bolso mais ou menos, é sorvete. “Camaradinha,
sirva-me um sorvete.” Logo em seguida: “Bem geladinho, se não for pedir
demais.”
Quando Florim bateu o fundo do copo de “café” no balcão de fórmica
vermelha, Natal o agarrou e ofereceu a Divino. “Copo-Cheio, dê um tapa aqui.”
Divino deu. Com toda a força. Para desalento do gentil Natal, o copo
voou e foi explodir na rua. Melífluo, perguntou: “Meu coleguinha, por que fez
isso?”
Nunca vi Natal brigar com ninguém, nem mesmo com um Divino desaforado.
Na verdade, eles eram muito unidos. Quando Natal comprou uma velha
motocicleta de 125 cilindradas, de cor preta e ronco suspeito, era comum a
gente encontrar os três juntos, ao ritmo de um só cambaleio.
Levaram uma queda feia. Até pensei que nunca mais andariam – abarrotados
de canjebrina – na bendita “aranha”, como carinhosamente era tratado o veículo.
Que nada. Estropiados, pintados de iodo, continuaram com seus passeios
de moto.
Uma noite, depois de depositarem umas tantas na moleira, o proprietário
da moto resolveu levar o amigo para casa. Só percebeu que o Copo-Cheio tinha
ficado pelo meio do caminho quando chegou ao destino.
Voltou. Quase não encontra o amigo, aninhado em escura valeta.
Natal casou. Fiquei admiradíssimo. Deixou de beber. Fiquei mais admirado
ainda. Melhorou de vida, comprou um Fusca. A amizade com Copo-Cheio esfriou,
porque mulher de amigo interfere, não quer sorver bafo de pinga nem tolerar
chatice de bebum.
Não fiquei espantado ao ver que Natal empunhava um copo de sorvete,
dando seus tapinhas de leve. Em casos assim, recaída é coisa comum. Geralmente
sujeitinho que deixou de beber recomeça com uma Caracuzinha.
Mas, afinal, leitor esperto, que diabo este texto chanfrado tem a ver
com o peru do Natal, pendurado aí em cima à guisa de título?
Macho como eu não tem que ficar comentando acerca de pintos e muito
menos de perus.
O peru do Natal só interessava às “meninas” da Tia, quando o moço era
solteiro e passava por lá antes de seguir para o trabalho.
“Meu camaradinha”, costumava proclamar consultando o relógio, “não leve
a mal, mas estou meio que apressado.” Quando saía para trabalhar não tomava
cafezinho. Passava no Florim para ver os camaradinhas.
“Estou com pressa, ainda vou passar na Tia para furar um courinho.”
Pois é, o peru do Natal só podia interessar às meninas da Tia. Assim
mesmo porque ia acompanhado de uma “gratificaçãozinha”.
Mas o sujeitinho casou. Copo-Cheio passou a andar caidão para o
melancólico. Afinal, era amizade bonita, com “tapas” e, acredito, sem
beijos.
Ali, à porta de casa, sentado com litrão de 51 entre as pernas, sozinho,
estava Divino a empunhar o xará. Na cabeça o boné verde desbotado.
Há alguma esperança, não há, leitor sentimental? Devagarzinho,
devagarzinho, com tapinhas de leve, o natalício amigo volta a beber. Aí, quem
sabe, a velha amizade tornará.
Os dois, então, voltarão a entoar canções da Jovem Guarda ao pé do
balcão.
O bar do Florim deixou de existir. Mas a notícia já corre: Tiãozinho do
Opala Preto abriu um boteco.
Hamilton Carvalho
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