Na Ladeira do Vento
Hoje, eu saidinho de casa, ali na Ladeira do Vento, vi um menino. Ora, é claro, leitor metido a merda, é claro que meninos se veem por toda banda. Mas aquele – ar circunspecto, sisudo – parecia miniatura de gigante.
Ali, na ladeira, mãos
em concha na tentativa de acender um cigarro, lembrei-me de outro menino, de
tempos meio que distantes. Sério e cheio de formalidades, ele me dava o
aporrinhante tratamento de senhor colado ao sobrenome.
Eu tinha apenas duas
décadas de pálida existência e estava doido para comer a mãe do cabeçudo (ele
era realmente cabeçudo). O garoto não dava trégua, não limpava o meio de campo.
Ele e o pai. Só que o
pai, separado da mulher, aparecia por lá somente uma vez por semana, para dar
uma carimbada na ex.
O problema é que ele
não tinha dia certo para a visita. Podia aparecer a qualquer momento de
qualquer dia. E você sabe, leitor sacana: flagrante de ex-marido é dos piores.
O cabeção, no
entanto, me atrapalhava demais. Quando eu estava em meu quartinho, que era
pegado no da mulher, ele ficava de lá para cá o tempo todo. Era como se
quisesse se assegurar da distância entre mim e aquela mulheraça calipígia.
Ao me mudar para a
estância (que é como se chamavam lá as casas, geralmente de madeira, que tinham quartos de aluguel), ao me mudar para a estância, fugindo da enchente, perdi o
sossego dos fins de semana.
Depois dos duros dias
sob as ordens do velho Jorge Abrahim, meu maior prazer era o far-niente. Eu lá,
seminu, atiradão na rede, uma das mãos com um livro e a outra metida na cueca,
fazendo cafuné nos pentelhos...
Aí, o abominável
toque-toque.
“Seu...” E lá
vinha meu sobrenome em pronúncia afetada. Em seguida, uma sombra, uma
cabeçorra, um sorriso formal.
O desgraçado era
inteligente. Passava horas a folhear livros, a fazer perguntas e a decretar
minha condenação aos infernos.
Mas eu queria traçar
a mãe do piolhinho de saco, e cretino como eu age assim. Alisa a cabeça de
empata-foda quando, na verdade, quer meter o cascudo.
O sofrimento não
parava por aí. Havia ainda a acochambrada semanal do ex-marido. Meu deus,
nossos quartinhos eram divididos por fina parede de madeira cheia de brechas.
A gemeção era
discreta, mas era gemeção. Sem falar que meus ouvidos ampliavam os sons
enlouquecedoramente.
Confesso, leitor
escandalizado, que uma vez não resisti e olhei por uma frincha. Acontece que
ficar ali, de pau duro, todo teso para evitar estalos da rede, doía,
literalmente doía.
Então eu a vi, a
cona. Que pentelhal.
O cínico do ex
deitou-se e esperou. Lá veio a mulher, nuinha e morena, com os braços abertos,
as mãos segurando um cobertor a cobrir-lhe as costas.
Penso que a razão da
coberta era obstruir a visão do filho, cuja cama ficava do outro lado do
quarto. O sujeitinho só era empata para este cronista cheio de escrúpulos.
A fêmea exuberante ajeitou-se
por cima do acomodadão. E treparam debaixo do cobertor e sob o tremendo calor
amazônico.
Enquanto a enchente
durasse, eu teria que permanecer ali. A coisa era mais séria ainda quando o
vizinho do outro lado resolvia levar a namorada para alguns delírios fodais.
Ah, maldita enchente.
Depois, o Cabeça, que
um dia quis ir ao cinema. Dá para adivinhar quem teria que levá-lo. O bobaça
aqui.
Imagine a cena.
Debaixo do solão, antes da chuva, lá ia eu, de chinelão, comprido e
mal-ajambrado, com aquela coisa pequena e cabeçuda a meu lado, enfiada em uma
espécie de paletó e de calças curtas.
O filme que escolhi
talvez não fosse lá muito indicado para criança. O título: Um Homem
Chamado Cavalo.
Mas seria concessão
demais ter que assistir a um filme da Disney só para agradar ao pentelhinho. O
que interessava era a mãe, e ela só precisava saber que tive a bondade de levar
aquele rebento feioso para “se distrair”.
Antes de ser pai, eu
já era um pai.
Ao chegar à porta do
cinema... Não acreditei. Surpresa, feliz surpresa. Conheci linda indiazinha e
com ela encetei (que lindo, hein?) um tímido mas promissor papo.
Não, leitor
aborrecido, não vou contar a história da indiazinha. Não agora. Fica para a
próxima semana.
Na Ladeira do Vento,
ao ver um menino com aparência de homem de negócios, lembrei-me de outro menino
e, muito especialmente, de encantadora índia.
Assim caminha a minha
pequena humanidade.
Hamilton Carvalho
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