quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Começa o ibope do Hamiltão. Um roteiro verdadeiramente cinematográfico


Na Ladeira do Vento

Hoje, eu saidinho de casa, ali na Ladeira do Vento, vi um menino. Ora, é claro, leitor metido a merda, é claro que meninos se veem por toda banda. Mas aquele – ar circunspecto, sisudo – parecia miniatura de gigante.
Ali, na ladeira, mãos em concha na tentativa de acender um cigarro, lembrei-me de outro menino, de tempos meio que distantes. Sério e cheio de formalidades, ele me dava o aporrinhante tratamento de senhor colado ao sobrenome.
Eu tinha apenas duas décadas de pálida existência e estava doido para comer a mãe do cabeçudo (ele era realmente cabeçudo). O garoto não dava trégua, não limpava o meio de campo.
Ele e o pai. Só que o pai, separado da mulher, aparecia por lá somente uma vez por semana, para dar uma carimbada na ex.
O problema é que ele não tinha dia certo para a visita. Podia aparecer a qualquer momento de qualquer dia. E você sabe, leitor sacana: flagrante de ex-marido é dos piores.
O cabeção, no entanto, me atrapalhava demais. Quando eu estava em meu quartinho, que era pegado no da mulher, ele ficava de lá para cá o tempo todo. Era como se quisesse se assegurar da distância entre mim e aquela mulheraça calipígia.
Ao me mudar para a estância (que é como se chamavam lá as casas, geralmente de madeira, que tinham quartos de aluguel), ao me mudar para a estância, fugindo da enchente, perdi o sossego dos fins de semana.
Depois dos duros dias sob as ordens do velho Jorge Abrahim, meu maior prazer era o far-niente. Eu lá, seminu, atiradão na rede, uma das mãos com um livro e a outra metida na cueca, fazendo cafuné nos pentelhos...
Aí, o abominável toque-toque.
Seu...” E lá vinha meu sobrenome em pronúncia afetada. Em seguida, uma sombra, uma cabeçorra, um sorriso formal.
O desgraçado era inteligente. Passava horas a folhear livros, a fazer perguntas e a decretar minha condenação aos infernos.
Mas eu queria traçar a mãe do piolhinho de saco, e cretino como eu age assim. Alisa a cabeça de empata-foda quando, na verdade, quer meter o cascudo.
O sofrimento não parava por aí. Havia ainda a acochambrada semanal do ex-marido. Meu deus, nossos quartinhos eram divididos por fina parede de madeira cheia de brechas.
A gemeção era discreta, mas era gemeção. Sem falar que meus ouvidos ampliavam os sons enlouquecedoramente.
Confesso, leitor escandalizado, que uma vez não resisti e olhei por uma frincha. Acontece que ficar ali, de pau duro, todo teso para evitar estalos da rede, doía, literalmente doía.
Então eu a vi, a cona. Que pentelhal.
O cínico do ex deitou-se e esperou. Lá veio a mulher, nuinha e morena, com os braços abertos, as mãos segurando um cobertor a cobrir-lhe as costas.
Penso que a razão da coberta era obstruir a visão do filho, cuja cama ficava do outro lado do quarto. O sujeitinho só era empata para este cronista cheio de escrúpulos.
A fêmea exuberante ajeitou-se por cima do acomodadão. E treparam debaixo do cobertor e sob o tremendo calor amazônico.
Enquanto a enchente durasse, eu teria que permanecer ali. A coisa era mais séria ainda quando o vizinho do outro lado resolvia levar a namorada para alguns delírios fodais.
Ah, maldita enchente.
Depois, o Cabeça, que um dia quis ir ao cinema. Dá para adivinhar quem teria que levá-lo. O bobaça aqui.
Imagine a cena. Debaixo do solão, antes da chuva, lá ia eu, de chinelão, comprido e mal-ajambrado, com aquela coisa pequena e cabeçuda a meu lado, enfiada em uma espécie de paletó e de calças curtas.
O filme que escolhi talvez não fosse lá muito indicado para criança. O título: Um Homem Chamado Cavalo.
Mas seria concessão demais ter que assistir a um filme da Disney só para agradar ao pentelhinho. O que interessava era a mãe, e ela só precisava saber que tive a bondade de levar aquele rebento feioso para “se distrair”.
Antes de ser pai, eu já era um pai.
Ao chegar à porta do cinema... Não acreditei. Surpresa, feliz surpresa. Conheci linda indiazinha e com ela encetei (que lindo, hein?) um tímido mas promissor papo.
Não, leitor aborrecido, não vou contar a história da indiazinha. Não agora. Fica para a próxima semana.
Na Ladeira do Vento, ao ver um menino com aparência de homem de negócios, lembrei-me de outro menino e, muito especialmente, de encantadora índia.
Assim caminha a minha pequena humanidade.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 79, 10/1/1999)

Nenhum comentário:

Postar um comentário