Um trio quase feliz
A culpa é da enchente. O igarapé que rolava aos fundos da “estância” em que eu morava transbordou, virou rio e invadiu meu quarto.
Fiquei de bubuia o máximo que pude, esticando a rede à medida que a água subia. Cheguei a ficar tão perto do teto que já não tinha mais espaço para uma ereção.
Por falar nisso, o teto era na verdade o assoalho do quarto da senhoria. Eu habitava o porão, aonde de vez em quando ela me levava um pirarucuzinho.
Antes que este texto pareça coisa de “escritor goiano” – e nem escritor eu sou –, é preciso entrar no assunto.
De qualquer forma, tive de me mudar por causa da enchente. Cercando a nova vizinha, fui obrigado a levar o filho dela ao cinema, entre outros “agrados”.
(Ora, eventual e acomodado leitor. Em vez de eu ficar aqui historiando texto, devia era mandar você ler a crônica da semana passada. Aliás, faça isso, que não vou perder mais tempo e espaço.)
Escolhi um filme cujo título evoca meu amigo Quincão: Um Homem Chamado Cavalo.
A índia. Não a do filme, é claro, mas a que me encantou. Enquanto Cabeção e eu olhávamos os cartazes na enorme sala de espera do cinema (antigamente era outra coisa...), a indiazinha adejava em torno de nós.
O desgraçado do menino, com já disse, era inteligente e perguntador. Nesse caso era bom, porque, de cartaz em cartaz, a índia ia nos acompanhando e ouvindo os comentários.
Às vezes dava um sorrisinho, às vezes uma palavrinha. Eu, como se tivesse problema de audição, me aproximava para ouvi-la. Ela recendia a qualquer coisa de comestível para o miserável do faminto de xota que sempre fui.
Quando terminou o circuito diante dos cartazes afixados em todas as paredes da sala, eu já estava irremediavelmente apaixonado.
A desgraça era o Cabeção, o filho da vizinha, a vizinha que eu não queria mais comer. Pelo menos ali no hall do cinema.
Ele era o empata-foda mais persistente que já conheci. Primeiramente, empatava-me com a mãe, uma pancada de mulher cuja carroceria era de fazer inveja a qualquer tchãzeira. Depois, empatava-me com a minha iracemazinha.
O otário aqui ainda levou o infeliz até a bonbonnière, onde ele escolheu o que bem quis. Para a indinha do meu coração, ofereci um Sonho de Valsa...
Formando um trio quase feliz, fomos para a sala de projeção. A certa altura do corredor, parei e, cavalheirescamente, estendi um braço em direção a três cadeiras, oferecendo passagem à moça.
Ela passou por mim. Quando ia segui-la, o moleque, quase me atropelando, embarafustou-se atrás dela. Revoltado, peguei a rabeira daquela fila indiana.
Ah, que vontade de agarrar o filho da mãe pelo colarinho.
Depois de sentados, cutuquei-o e sussurrei a seu ouvido: “Vamos trocar de lugar?”
Assustei-me com o próprio tom de voz. Diabos, estava quase implorando.
Se o leitor deu uma chegadinha ao texto anterior, sabe que o menino me chamava de senhor, apesar de meus 20 aninhos. Ele acoplava um seu a meu sobrenome, envelhecendo-me mais ainda.
Vira minha assinatura nos livros que me tomara emprestado. O danado lia até dicionário. Mas cultura sem espírito crítico não ensina ninguém a se mancar.
“Vamos trocar de lugar?”, implorei. E o miserável egocêntrico: “Não, aqui está ótimo, seu...”
Nunca um filme me parecera tão longo. Fervendo de raiva e frustração, não conseguia entender patavina do que se passava na tela.
Em certo momento, ao olhar meio de banda para o Cabeção e vendo-o todo relaxado e satisfeito com a vida, uma fúria assassina tomou conta de mim.
Cheguei a armar a unha dura do polegar para aplicar-lhe um beliscão.
Quando saímos do cinema, meu saco transbordava. Era uma patética enchente de saco.
Sem me policiar mais, adrenalina já me transformando num Hulk branquelo, disse para a mocinha: “Você pode me esperar aqui, enquanto levo esse estrupício para a mãe dele?”
Ela sorriu breve e discretamente, anuindo.
Fiquei meio inseguro e me perguntei: “Será, será que elazinha vai mesmo me esperar?”
Assim, com aquela coisa cabeçuda e curta nos meus calcanhares, eu comprido e mal-ajambrado, de chinelão, peguei o rumo da liberdade.
O sol do equador derretia a Glostora do coco vasto do estorvo, que se esbofava para me acompanhar.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 80, 17/1/1999)