quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Curvilíneo e um tanto contraditório, o autor lança um olhar sobre o outro lado do mundo, e dá palpite em negociata alheia



Vendeu a mulher e levou calote

Há quem pense que sou mais errado que relógio público em Goiânia. Claro, ando marcando sobre mulher que me apetece, mas jamais faria como o decasségui Adriano, que caiu no terreiro (se é que no Japão existe espaço para terreiro) de Eizo Okayama e lhe arrebatou a mulher.
É preciso reconhecer que o brasileiro foi à terra do haraquiri para ganhar a vida e não para ganhar a mulher de Eizo. (Devo esclarecer que haraquiri não é prato muito recomendável para o estômago.)
Talvez Adriano tenha ido para o Japão para isso mesmo, matar aquela velha curiosidade da verticalidade ou horizontalidade da cona oriental. Foi quando ele, terceiro-mundão, deu de cara com o mundo civilizado. Em crise, mas civilizado.
Matou a curiosidade e não morreu. Mas, se fosse aqui, coitado. Botar chifre por estas bandas é correr risco de vida. Ainda mais por acochambrar fêmea já com certa quilometragem e duas filhas, como a mulher do Eizão.
Mas o adepto do haraquiri não recorreu ao sabre nem para inovar no bucho do brasileiro. Não sei o que equivale a chifre em japonês, mas quando o corno descobriu que a dita coisa florescia em sua cabeça exigiu que o decasségui lhe pagasse 5 milhões de ienes (US$ 35 mil).
Isso é que é sociedade avançada. Os decadentes somos nós, espiritual leitor, que deixamos o dinheiro em segundo, terceiro ou quarto plano. O amor não tem preço, a amada é objeto não-negociável...
Ops! É por causa de deslizes como este que já andaram acusando o cronistazinho aqui de machista.
A amada não é objeto, embora às vezes nos use como objeto de prazer. Pode não ser vendida, mas é bom não facilitar, porque a desgramada quando quer dar para outro não há reza antichifre que impeça.
O Eizão está certo. Neguinho fez da gente carregador de chifre, tem de pagar o frete. Só que a coisa não foi tão simples como o japão esperava. Ele não contou com um detalhe. Adriano é um bom brasileiro e, como tal, quis aplicar o calote.
Eizo ficou mais amarelo e acionou a Justiça. Quer indenização. Mas também é espertinho: pegou a mulher de volta. Corno com tanta desenvoltura só mesmo no Primeiro Mundo.
Entre o Primeiro Mundo e o Terceiro há um abismo, principalmente depois que acabaram com o mundo do meio. (A história da humanidade está parecendo trem cargueiro do Paraguai, que tem somente a primeira e a terceira classes para os passageiros – e elas são quase a mesma bosta.)
Acontece que Adriano, o aplicador de chifre e de calote, é mero decasségui, trabalhador mais que explorado, humilhado e discriminado. O povinho antípoda não é de brincadeira.
No trabalho, por exemplo, brasileiro pega no pesado e tem direito a ir ao banheiro uma vezinha só. O carinha tem que analisar a situação e optar: cagar ou mijar? O ideal seria fazer tudo de uma vez, mas a natureza tem suas manhas.
Não há como não me solidarizar com Adriano, pois o encorneado japonês, além de querer pagamento à vista por Kayo, a mulher, ainda exigiu que o brasileiro levasse junto a descendência dele.
Fingir gostar de filho de mulher que a gente vem traçando dá uma sensação desagradável, ainda mais quando o que se sente é uma vontade danada de aplicar uns cascudos no empata-foda.
Adriano não foi buscar Kayo e as meninas. Está sendo processado. Como a ilha é terrinha civilizada, nenhum advogado quis pegar a causa do moço.
Todos os advogados consultados deram uma de juiz e disseram que ele estava errado e tinha de ser condenado. Vai ver que eram um monte de cornos invejosos.
Temos de reconhecer, no entanto, que japonês gosta de tudo feito com categoria. O Eizão sentiu-se ludibriado, pois até já havia preparado a mão de obra: ensinara Adriano a trocar fralda.
Marco em cima as mulheres que me apetecem, mas marco certinho.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiáss, nº 69, 26/7/1998)

Aqui, Hamiltão conseguiu a proeza de se igualar aos demais cronistas. Se o leitor não tem mais nada pra fazer...


Palavra de campeão

Prometi a mim mesmo não falar de futebol nesta banda de página. Vou cumprir o prometido, registrando apenas uma lembrança que me vem com a empolgação da Copa do Mundo.
Não só Zagallo, eu também fui campeão como jogador e como treinador. Imagine. Treinador de time de futebol de salão [hoje futsal] de turma de colégio. Sempre desconfiei que aquilo fosse uma sinecura que me deram para que ficasse fora de campo.
Mas não, penso que não. Eu era goleiro, e muito bom. Lembro-me de que treinava pra valer, em um dos porões lá de casa, em Anápolis. Levava um tempão chutando a bola contra a parede para segurá-la ou chutá-la na volta.
Na primeira vez que entrei em campo houve gracejos a respeito de minha indumentária. Parecia goleiro profissional com proteção nos joelhos e camisa acolchoada. Claro, não era bobo para me ralar no cimento da quadra. Com minhas performances, os gracejos viraram admiração.
Apenas não consegui arrancar suspiros de C., já que ela, infiel, torcia pelo time de outra turma e só tinha olhos para o líder dos bagunceiros do Só-Cinco. Ela devia achar que meu time, o Centauro, era time de careta.
Mas não me derreei todo por C., porque havia a professora de inglês.
Ah, tempos atrás me apaixonara por uma professorinha de francês. Não sou lá muito bom de línguas (tenho somente uma), mas não dava para me apaixonar pela professora de matemática, por exemplo.
Aquela professorinha de francês, mon dieu... Eu ficava nas nuvens quando ela puxava o ar para os pulmões asmáticos e fazia biquinho para pronunciar francês. Mon dieu.
Meu inglês só não vingou em Anápolis porque tive de levantar acampamento. Fui amar as manauaras.
A baixinha levava letras de música com tradução meio suspeita e a gente decorava as originais, cantando em coro desafinado. Aliás, eu não cantava, não, tímido que era. Mexia os lábios para tapear.
Minha mãe devia estar intrigada com o marmanjo que demorava tanto no banheiro. Quer dizer, ela já estava acostumada com meus banhos demorados, mas então a demora era muito maior.
É que, além do ritual de sempre, eu ficava a cantar “Love is all” aos berros, apaixonadamente, repetidamente.
O chato de apaixonar por professora é que a gente não gosta do período de férias. Que saudade danada.
Sujeitinho babão, ficava perambulando pela cidade, cavando a coincidência, forçando a barra do acaso, tomando a providência divina. Às vezes nada, mas às vezes eu a via à sombra do batente do prédio em que morava, esfregando o pé de bucho no namorado. Ô raiva, ô trauma, ó trouxa.
Mas eu aproveitava muito bem o último dia de férias. Naquele tempo andava meio magoado com a esquerda brasileira. Pô, ninguém me recrutava para a luta armada, eu, valoroso combatente em potencial. Não fazer nada contra a ditadura militar era cruciante tortura.
Então me dava solitária missão. Na véspera da volta às aulas, saltava o muro do colégio e, furtivamente, entrava em várias salas para registrar no quadro-negro, em letras garrafais, impropérios contra o regime.
Confesso que, naquela época, meu coração era meio sem-vergonha. Havia ainda uma moreninha que morava perto de minha casa por quem derramei muitos versos inflamados de amor.
Passava as tardes na plataforma da caixa d’água (ah, as caixas d’água da minha vida) para vê-la nos fundos da casa dela, no outro lado do brejo. Penso que a gárrula menina nunca tomou conhecimento de minha pálida existência.
Havia outra... Ora, leitor de alma monogâmica, eu produzia no mínimo dez sonetos por dia. Tinha que buscar um pouquinho de calor para o meu solitário coração e imprimir sinceridade nas chaves de ouro. Mas sexo, que era bom... É claro que eu dava minhas enchidinhas de mão.
Bati muita bola na vida e me tornei tricampeão pelo Centauro. Não faturei C., mas venho obstinadamente fazendo minha sopa de letras e vou devorar todo o alfabeto. Não necessariamente pela ordem, viu, Z.?

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 65, 28/6/1998)

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Batismo de fogo, Hamiltão de fogo. E naqueles tempos não existia a delicadíssima expressão “transar”


Imposição genética

Parente, costuma dizer um amigo, é uma imposição genética. Não sou tão radical, mas sinto que em certos momentos a parentada pode ser considerada abominável. Principalmente quando se mete a dar conselhos a respeito do insolucionável, a respeito da mulher da gente ou a respeito de como ganhar dinheiro.
Nem tanto, porém, quando irmão bem-intencionado empurra um moleque para atos pouco recomendáveis, abrindo caminho para a zona de meretrício ou iniciando o ingênuo na cachacice.
Foi em remota festa de São João. Estava eu lá, pálido e bem-comportado, curtindo o calor da enorme fogueira armada em frente de casa. Irmão mais velho, cheio de mistério, me chama para dentro e me leva a um quarto. E ali, em cima do cofre, um litro de pinga.
O irmão entorna o límpido e aparentemente inocente líquido num copo americano, enchendo-o até a borda. “Agora você vai virar homem”, proclama. Sem hesitar – porque macho em minha terra não foge de desafios –, de uma só vez deixei o copo cheio apenas de ar.
Voltei à fogueira, olhos brilhando, pleno de determinação, fitando as garotas e fazendo discursos imorais. Logo, no entanto, rodopiei e caí em cima das brasas esparsas em torno do fogo. Ali fiquei rindo imbecilmente até que alguém me colocou em lugar seguro. Não me sapequei mas me levantei mais sapeca ainda.
E determinado. Subi a rua aos cambaleios e fui parar à porta de Maria Purcina.
Meu primeiro amor, a menina com quem vivia a sonhar todos os momentos de todos os dias. Eu trepava na caixa d’água e ficava horas e horas, exposto a sol, a frio e até mesmo a chuva, só para vê-la nos breves instantes em que aparecia na esquina, para comprar alguma coisa ou para visitar vizinha. Meu secreto, secretíssimo amor.
Eu adorava aquelas canelas finas, aqueles peitinhos de pomba, aquela bundinha quase impressentida. Quando acontecia de vê-la mais de perto, ficava embevecido com aqueles lábios exangues, com aquela pele cinzenta e principalmente com aqueles olhos meio vesgos.
Tímido, mudo, torto, eu disfarçava, arrastava os pés descalços, a fazer desenhos na terra, e depois saía correndo, para me abrigar no regaço do lar. Ou melhor, para trepar na caixa d’água e de lá ficar a adorar aquela longínqua e seca figura metida num vestidão de chita.
Como todo moleque dissimulado, fiz amizade com os irmãos dela, com os quais jogava gude por onde a menina costumava passar. Se isso acontecia, eu não acertava uma jogada, com a concentração longe dos buracos do chão.
Quando ia ao cinema, que “coincidência”. Ela estava lá, para assistir ao mesmo filme, entre os irmãos. Você, leitor cinéfilo, não imagina as porcarias de filme.
De qualquer forma, eu só tinha olhos virados (tão virados que chegavam a doer) para aquele rostinho acinzentado, iluminado pela luz vacilante de filme preto e branco.
Ah, secreto amor, secretíssimo amor.                      
     Até aquele miserável são-joão. Que o santo me perdoe. Aliás, como não é deste mundo, o bom João deve saber que não me refiro propriamente a ele. Na verdade, a culpa foi da danada da cachaça. Ou da imposição genética que me fez tragar o traiçoeiro líquido.
À porta da casa da amada, abri os braços, a boca, os olhos, o coração. E berrei: “Maria, quero foder com você!” Para que a menina não tivesse dúvida e para que ninguém da vizinhança duvidasse, eu repetia o chamamento acrescentando informação: “Maria irmã de Dalmar, quero foder com você!”
Ao dar por mim, estava deitado em meu quarto, quarto iluminadíssimo, cheio de gente. Não sei por que motivo, minha mãe, como se fosse uma imposição genética, tirou toda a minha roupa.
Entre as pessoas que se acotovelavam no quarto, divisei Hidalmar, pálido, perplexo. Aí, como se algo se iluminasse em meu cérebro, disse, renitente, com voz quase chorosa, pidona: “Quero foder com a irmã de Dalmar...”
Ninguém no recinto podia duvidar do meu desejo. As pessoas, todas elas, olhavam arregaladamente para meu baixo-ventre. Ali estava o testemunho da verdade: um pintinho duro feito couraça de extintor de incêndio.
A ressaca. Até hoje não consegui ressaca igual. Levei mais de mês a curti-la, sem sair de casa. Afinal, a molecada – todo o timinho de futebol – só esperava que eu metesse a cara na rua para mangar do besta. Besta não, apaixonado – e apaixonado por ninguém menos que a irmã de Dalmar.
É, realmente. Às vezes a gente só aceita parente porque não adianta brigar com os caprichos da natureza, que podia muito bem não ter essa coisa de replicação.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 64, 21/6/1998)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Copa do Mundo na França. Mas Hamiltão não está de olho no futebol


Sem presente, sem amor

Este Dia dos Namorados foi pobre de presentes para mim. Aliás, não recebi nenhum presente. Houve época...
Homem não deve viver assim, sem namorada, sem nada, abanando a mão. Há mesmo quem pague por uma boa noite de amor, mas amor sem namoro, ou namoro sem amor.
Brasileiro bestinha sai daqui para remunerar puta na França, a pretexto de assistir à Copa do Mundo. O deputado Fernando Gabeira pelo menos é franco: vai à Holanda para fumar maconha, pois lá o bagulho é “legal”
Ah, alma pura, esse parlamentar bossa-nova, como diria Stanislaw Ponte Preta... Legalista, não burla a legislação brasileira.
Nos velhos bons tempos, quando ainda não havia deserção em massa, ele deve ter proposto aos companheiros de luta armada ir aos Estados Unidos para sequestrar embaixador norte-americano.
Como sou para lá de pobre, não vou à França transar com prostituta sul-americana nem vou aos Países Baixos tirar umas baforadas. São coisas que podem ser feitas por aqui mesmo, por baixo dos panos, na moita.
Não sou do ramo (nem do caule, nem da folha), mas um baseado nesta terra exuberante não deve ser muito caro, e para ser saboreado não é preciso que se vá a um coffeeshop em Amsterdã.
Mulher então, tarado leitor. Aqui há anúncio em jornal oferecendo transa a R$ 15 ou R$ 20, serviço completo e cheque pré-datado.
Por exemplo. A equatoriana Jéssica, segundo a Folha de S.Paulo, na edição de segunda-feira [8/6/1998], tem tabela bem discriminada.
Ela atua em uma van nos estacionamentos da estrada de Ozoir-la-Ferrière, cidade de 20 mil habitantes, 25 quilômetros a leste de Paris.
É ali que a seleção brasileira faz seus treinos. Com a chegada de imbecis compatriotas deste brilhante cronista, as meninas aumentaram o faturamento.
A tabela. Um “pipe”, que em português quer dizer cachimbo, sexo oral, custa 100 francos (R$ 17). Já para o sexo “convencional” a equatoriana e suas colegas cobram 200 francos (R$ 33).
Para “pedidos mais extravagantes”, as meninas fazem o atendimento por 300 francos (R$ 50). Como o jornal não deu exemplo de pedido extravagante, fico a imaginar... a imaginar... Não, não é tão caro assim, leitor pão-duro.
Já que se trata de chão do Primeiro Mundo, elas não obrigam cliente a usar camisinha ou encarecem a tabela, como acontece no Brasil. Para umas boas cachimbadas, “tanto faz se o cliente quer usar camisinha ou não”, diz Carla, equatoriana de Guayaquil, como Jéssica. (Esse “como” não ficou lá muito bem colocado.)
Jackie, “uma das raras francesas nos estacionamentos”, segundo a Folha, é meio fatalista: “Quem está nessa vida não pode escolher.”
Nós, machos solitários, em certos momentos também não podemos escolher como e a quem amar. Ou a gente degenera ou fica com saudade de uma capa de pelve, do almíscar da fêmea, até que a amada resolva conceder a honra, depois de enfim compreender que cada uma adiada é uma perdida.
É, leitor sem inveja, estou na saudade, metido na salmoura da solidão, a cultivar pelos na palma da mão direita e às vezes infiel a ela, entregando-me à esquerda. Não, não quero ver estes pelos ficarem grisalhos, enquanto a amada não se decide.
O consolo de estar só no Dia dos Namorados é que a gente, se não recebe presente, também não dá.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 63, 14/6/1998)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Compungido, o cronista adverte: não é só a danada da cachaça...


Confissão de um macho

O homem nordestino é, antes de tudo, macho. Euclides da Cunha veio com aquela de “forte” porque ele era um mestiço neurastênico do litoral. Nordestino que se preza só faz confidências para a peixeira.
Pois bem, leitor cheio de cobranças. Tenho feito de você um ligeiro confidente, assumo, mas não assumo absoluta sinceridade nos delírios registrados apressadamente neste espaço.
Não que eu seja propriamente mentiroso. Sempre aceitei o fato de que mentira é manifestação de idealismo. Acontece que não posso tornar meu espírito romântico infenso a devaneios e ludismos. Afinal, são coisas de poetas e ex-poetas.
Com ex-poeta, então, a coisa é mais grave. Ex-poeta é como ex-fumante. Além de detestar o cheiro dos da ativa, costuma sonhar que dá fundas baforadas, rasgado de cálidas inspirações.
Por falar nisso, não participei de recente concurso de “poesia falada” (escrita e inscrita, é claro, com antecedência) porque, além de ser “ex”, fui o oitavo colocado no concurso anterior.
O que incomodou, esclareço, não foi a colocação, mas o prêmio. Humilhante. Um pacotinho de livros de “autoajuda”. De autores goianos.
Como é que alguém pôde imaginar que sujeito de elevado autoconceito ia se esgoelar por madrugadas seguidas para barulhenta plateia de concorrentes – portanto hostil – só para ser xingado de epígono de Paulo Coelho?
Leitor cheio de espírito esportivo, eu estava ali mesmo era por causa do dinheiro. E, pelo montante oferecido, já dá pra sentir até onde chegaram minhas necessidades. Se eu fosse o bode Francisco Orelana...
Aliás, esse bode – não sei se ainda é vivo – era nordestino, e se alguma vez falou não foi para fazer confidências.
Ele morava lá pelas quebradas do Rio Gavião, alimentando-se de livros da biblioteca do compositor e cantor Elomar. Por ser bode intelectual – mas devorador de livros, não apenas orelhas de livros –, tornou-se célebre personagem de Henfil.
Nordestino não é, eu dizia, de fazer confidências. Pode chegar, talvez, a contar um pouquinho de vantagem. Caso de um vizinho meu, cujo nome (fictício – eu não sou besta) é Gabiru.
Parrudo, pequeno, cabeça enorme assentada nos ombros, ele trabalhava (eventualmente) como servente de pedreiro.
Toda vez que eu via Gabi (sem querer humilhar o coitado mais do que a miséria já o faz), ele estava entornando umas e contando histórias heroicas de que era sempre o protagonista.
Indefectível personagem secundária nas narrativas, o Capeta costumava aparecer em seu caminho encaixado na sela de baita cavalo.
E o baixinho (que jamais chegaria a ser da Xuxa) transformava-se em verdadeiro D’Artagnan, a brandir intimorato facão. Certo, leitor rigoroso, o ajudante dos Três Mosqueteiros não esgrimia arma tão grosseira.
Isto me lembra algo.
Não entendo porque o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, bom nordestino, registrou minete como sinônimo de cunilíngua. Não é.
Nordestino é tão macho que nem quando criança se entrega ao troca-troca. Aliás, o Aurélio dá uma definição incompleta desse termo, que depois de largo uso se estendeu aos domínios do futebol.
O macho nordestino não vira o rabo pra ninguém. Daí o minete, que é um ato sexual entre homens, frente a frente, ou melhor, tête à tête. Nisso os machos se enfrentam como verdadeiros espadachins. Assim, continuam machos, porque ninguém deu.
O dicionarista deve ter tido um ataque de pudicícia. Talvez por ter nascido em Alagoas, terra de Collor, que é chegadão, dizem, a um supositório incrementado.
Ataques desse tipo acontecem, como o que um dia sofreu Gabi, que, rompendo a regra, fez confissão. Claro que foi depois de o bravo nordestino ter lavado e enxaguado várias vezes a caveira.
Contava ele que certa noite de lua cheia enfrentava o misterioso cavaleiro de negro, que era sem dúvida o Capeta. Gabi pulava, girava, dava fintas no tinhoso. O intimorato facão arrancava faíscas do cascalho da estrada.
De repente o cabeça-chata, que contava a história reproduzindo a coreografia da luta, aquietou-se, aproximou-se de mim e, com os olhos rasos d’água, confidenciou:
“Tu vê aonde pode chegar um macho: comi Juramar e Juramar me comeu.”
O amigo, que também trabalhava (eventualmente) como ajudante de pedreiro, teria comprado uma garrafa de 29 e convidado Gabi para ajudar no enxugamento. Lá pelas tantas perceberam que estavam sozinhos na casa de Jura. Aí, o pau comeu, quer dizer, os paus comeram.
Você sabe, leitor vivido, que nordestino dialoga com o vizinho cada qual em sua casa. Por causa desse hábito, o de falar alto, é que, ao fazer aquela inconcebível confidência, Gabi acabou deixando toda a população do boteco informada de seu sofrido prazer sexual.
“Aonde pode chegar um macho...” Contendo as lágrimas com as calosas mãos, Gabi era o próprio desalento. “Aonde pode chegar um macho...”
Mas, como bom nordestino, ele não se entregou e acusou: “Foi a maconha, foi a maconha que aquele infeliz me deu.”
Um macho, antes de tudo.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 62, 7/6/1998)