sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O autor jamais, jamais deveria queixar-se de ser incompreendido



Curva de rio

O próspero negócio durou menos de uma semana.
O mais velho de oito irmãos quis tirar um deles “da lama” e resolveu financiar o empreendimento. Alugou a sala pegada ao bar do Tiãozinho, ponto bom, bem na esquina em que termina (ou começa; isso depende de onde se parte) a feira noturna das quintas-feiras, para a instalação de um comércio de frutas e legumes.
Ah, a feira já foi muito melhor. Dobrava a esquina e tomava toda a frente da venda de Tião, cuja área externa se enchia de mesas (e cadeiras, claro) e era point de meninas shortinhos meia-bunda, tudo muito iluminado pelas lâmpadas instaladas pelos feirantes. (Mataram um cara ali, a tiros, a cinco metros de mim.)
Atualmente as barracas sobem (ou descem) a avenida esgarçadamente, mal atingindo a esquina. No entanto, a feira ainda é interessante, e de vez em quando me permito pegar uma frutinha para comer em casa.
A presença dos oito irmãos (todos baixinhos) tornou-se um evento naquela ponta de feira, embora nem sempre se juntassem ao mesmo tempo. Em torno deles (Os Paquitos, como foram cognominados pelo senhorio, Tião) formou-se uma verdadeira catrevage, expressão que, sem dúvida, minha mãe empregaria nesse caso.
“Isso aí”, fazia Tião empurrando a mão com desprezo em direção à esquina, “isso aí virou uma curva de rio, uma tranqueira onde para tudo quanto é bicho morto: peixe, galinha, boi...” Ele se referia, naturalmente, aos frequentadores do verdurão, nome que se dá em Goiás a esse tipo de quitanda.
Um dos frequentadores – que por ali permaneceu mesmo depois da falência do negócio – viria a morrer, repentinamente, recostado no ponto de ônibus da pequena rua. Ih, mas não é esse o caminho que devo seguir. Queria só me referir à vez em que ele usou a privada do bar do Tião, literalmente... Não, não seria esse o caminho.
Do Zero-a-Zero o relutante leitor se lembra, especialmente pelo fato de reclamar de Tiãozinho por não colocar papel higiênico no banheiro.
Nos áureos tempos da feira, quando todas as mesas do bar ficavam ocupadas e a área fervilhava de lindas garotas, certa vez fiz o que raramente fazia naquele lugar: fui providenciar uma mijada. Entrei no minúsculo banheiro e, ao fechar a porta, divisei o cesto de papéis perto da dobradiça.
Não vi papel no cesto. Vi um pano cagado, um pano azul, de um azul desbotado: uma calcinha. Fiquei logo a imaginar a qual daquelas beldades lá de fora a intimíssima peça feminina pertencera. Coisa de tarado, acho.
Há um bar no centro de Goiânia em que o banheiro é mantido trancado. Se precisa responder a algum imperativo da natureza, o freguês tem que pedir a chave ao dono. O chaveiro é um enorme pedaço de pau. No ato solene da entrega daquela espécie de troféu, o botequeiro adverte: “É só pra mijar, cagar não.” Não sei o que ele disse ao passar a chave a uma namorada que levei para tomar umas cervejinhas no conceituado estabelecimento. Não tive coragem de perguntar a ela.
Gente implicante é o que não falta. Por exemplo: a faxineira de um dos jornais em que trabalhei. “Homem é tudo porco”, vivia a repetir.
Havia 16 banheiros no prédio. Ela trancou todos, menos um. E isso, leitor abismado, para toda a equipe de um jornal diário. As mulheres se sublevaram. Com muito custo, ela fez a concessão de abrir mais um. O dos homens ficava no térreo, na garagem.
A ranzinza faxineira reclamava e reclamava. “Toda hora tenho que ficar limpando a sujeira desse povo, não aguento mais.” Ela tomou de ódio visceral (e bota vísceras nisso) contra o vigia noturno, rapaz tímido que raramente falava, quando, ao presenciar uma dessas cenas, disse, bem baixinho: “Mas, dona Teresa, a senhora está aqui é pra isso mesmo.”
(Não me lembro do nome da mulher. Fica Teresa, para efeito dramático.)
Antes, apenas um banheiro liberado, o vaso se entupiu. Foi preciso chamar um bombeiro, que, depois de muito trabalho, removeu o obstáculo: um ovo. A culpa continuou dos homens.
A faxineira se exasperou de vez quando um rebelde pichou todas as paredes desse mesmo banheiro. A frase mais expressiva era: “Me cago para dona Teresa”. A tinta usada pelo misterioso manifestante foi a própria bosta.
Como eu dizia, o promissor negócio da curva de rio não durou uma semana.

Hamilton Carvalho

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

As eleições tiraram o autor do “foco” – para usar, aqui, palavra da moda



Na esquina seguinte

Ao meter a cara feia no estirão de dois quilômetros de avenida que leva à urna em que consigno o voto de cidadão efêmero, sucedeu o de sempre desde que, há anos, eu vira a estupenda morena na esquina seguinte.
Ah, falando em eleição: nesta campanha, como em outras, candidatos imploravam ao eleitor, à exaustão, “um voto de confiança” – expressão que se aplica bem a certos elementos tortos. Ora, voto de confiança só se reserva a calhorda, a quem cometeu safadeza e suplica, na maior cara de pau, mais uma oportunidade.
A bronzeadíssima garota estava nua.
Asseguro, correto leitor, que eu havia decidido não tocar neste assunto. A cada ano eleitoral, tenho resistido a ele por uma questão de pudor. Sim: pudor. Não há por que estranhar que tal sentimento se aloje em mim. (É bem verdade que até minha mãe duvidaria disso.)
A crônica em mente tinha já o comecinho: “O próspero negócio durou menos de uma semana.” É provável que eu haja ficado com medo das dificuldades que o texto apresentaria, pois detesto conversa que inclua morte.
Não, leitor azucrinante, não tenho o menor escrúpulo em falar de nudez, ou mesmo em exibi-la – o que talvez venha desde o porre dos 10 anos de idade, durante festa junina, quando minha mãe me tirou toda a roupa e me deixou lá, no quarto apinhado de gente, a gritar o nome da amada com o pauzinho em dolorido estado de ereção. Mas você já conhece a história.
Sempre transitei pelado, sem nenhum problema, da cama ao banheiro, ainda que aconteça de ele ficar na parte externa da casa, como em Imperatriz, cidade deliciosamente despudorada e de muito calor do Estado do Maranhão.
Bem. Naquele tempo foi um tanto diferente, já que a apreciadora do langoroso desfilar não era eventual amada, e sim a cozinheira contratada por meu pai, com quem eu trabalhava na Arrozeira Vale do Tocantins, longe da mãe e dos irmãos.
Melenas cacheadas ombros abaixo (nunca penteadas ou escovadas, porque impossível fazê-lo), lá ia eu, peladão, a cruzar a cozinha rumo ao banheiro, e de lá voltando, molhado e ainda peladão, a sacudir a majestosa cabeleira. E a rola, claro.
Neste ponto, o leitor e eu precisamos de um entendimento.
Sim, a mulher ficava chocada, virava-se para o fogão, tensa. No começo. Depois, soltava estrondosa gargalhada. Com a rotina estabelecida, passou a me receber com, digamos assim, certo deleite. Às vezes ela me detinha para que provasse a pontinha de algum petisco que preparara. Não se espantava nem mesmo quando eu aparecia a transportar, briosamente, a chamada ereção matinal, popularmente conhecida como tesão de mijo.
Completamente nu estava o belíssimo corpo da morena que andava com suprema elegância em sentido contrário ao que eu fazia depois de votar. Isso foi na última esquina antes de atingir a que dá início ao retão por onde encetara a caminhada para a urna. Havia uma espécie de corredor polonês formado por cabos eleitorais coloridos com bandeiras coloridas, acima do chão juncado de folhetos.
A pele bronzeada daquela deusa (e só poderia ser a deusa dos loucos e dos inocentes, a ostentar tanta e sublime formosura), a pele bronzeada trazia a marca do biquíni e um pedacito triangular com nigérrimos pelos. Os lábios da moça distendiam-se em inefável sorriso que, por certo, não era para mim.
Entende agora, cético e malicioso leitor, o porquê do meu insuspeitado pudor? Não, não entende, nunca entenderá. Da mesma forma que jamais saberá o que indivíduos como eu são capazes de encontrar na próxima esquina.

Hamilton Carvalho

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Mais uma vez, ainda que sem querer, Hamiltão revela o seu amor pela humanidade


Os “Paquitos”
                        
O cara simplesmente morreu.
Eu descidinho do ônibus, caminho de casa, bateu-me no cérebro carunchado o início da crônica que pretendia escrever: “Pelo amor de deus, que a atriz Xuxa Meneghel não me processe.” Não é lá grande começo, mas eu tinha que fazer alguma coisa ante o furor do leitor abandonado. Assim, como diria Zé de Alencar, estuguei o passo.
Mas, alguns metros depois que desentortei a esquina da estreita rua do bar do Tião, vi uma das personagens que seria ligeiramente mencionada no texto. Então resolvi dar uma chegadinha ao bar para saber mais a respeito dela. E a crônica se perdeu, ou se adiou.
Em resumo, eu iria falar de um grupo de rapazes que decidiram entrar para a iniciativa privada. Todos irmãos, oito. Parecidíssimos uns com os outros. Só não diria que são óctuplos por causa das pontas: o mais velho é mais alto e o mais novo é mais baixo que a planície intermédia. Mas todos pequenos.
Por falar em óctuplos, a “octomãe” estado-unidense Nadya Suleman é mesmo uma desnaturada. “Odeio bebês, eles me dão nojo”, declarou com desenvoltura à revista Touch. Ah, sim, leitor, não podemos julgar “açodadamente”; afinal, nada do nosso DNA provém do juiz Gilmar Mendes. Sem mencionar o fato de que ela tem o antecedente já prolífico de seis filhos, que qualifica de “animais”. Se tomar por base a infância de dois sobrinhos que tenho...
Bem. Voltemos ao assunto.
Os rapazes alugaram o cômodo pegado ao bar de Tião que antes fora o consultório tocado por uma detistazinha recém-formada. Nos bons tempos do caça-níquel que havia ali na área externa do bar, uma vez ela e eu... Meu deusim do céu.
Então. Os irmãos pretendiam prosperar no negócio de frutas e legumes e, numa bela noite de quinta-feira, instalaram, em ângulo reto, dois tabuleiros na área coberta que abrange a frente do bar e a da sala que alugaram de Tião, a que servira de consultório para a dulcíssima morena, na quina do imóvel, a partir de onde, às quintas, se realiza a feira-livre noturna do bairro.
Com preguiça de descer a comprida feira para comprar umas laranjinhas mais em conta, resolvi me abastecer ali mesmo. Olhei para a casca ressequida das laranjas, para as bananas empretecidas, para as beterrabas empoeiradas, para os repolhos desgrenhados, hesitei. Eram xepa.
É preciso que, agora, eu tome o leitor pela mão, pois a esta altura há por onde se perder.
Não fui eu quem apelidou de Paquitos os novos empresários do ramo hortigranjeiro. Deduz-se logo: foi o vendeiro Tião. De início, não entendi por que Paquitos. O encanecido leitor se lembra de que os rebolativos meninos que participavam de programa de televisão apresentado por Xuxa eram loirinhos.
Os ex-verdureiros (o próspero negócio durou menos de uma semana) são bem morenos, cabelos pretíssimos e escorridos. Parecem quadrilha de bandidos mexicanos em filme hollywoodiano. Solícito, Tiãozinho explicou.
Dada a uniformidade da aparência, seriam versão em papel carbono dos fremebundos garotos. Discutir quem há de?
Ah, rapazes que eram um carisma só, os Paquitos do Tião. Em torno deles enxameavam notórios tomadores de cachaça do pedaço. É verdade que notei a ausência de Zero-a-Zero, que se sentiria bem à vontade naquele grupo.
No entanto, havia um estranho. Apareceu, simplesmente, e se apegou ao lugar, e ali permaneceu mesmo depois da dissolução da confraria. Até que, simplesmente, morreu.
Prometo ao leitor que voltarei ao assunto. O assunto me engasga.
Não acredito que a Xuxa vá me processar por uso indevido da marca Paquitos. Em última instância, conto com que as aspas no título deste texto me livrem de advogados sedentos de sangue.

Hamilton Carvalho

domingo, 1 de abril de 2012

Depois de tarde agradável, Hamiltão deveria escrever algo mais condizente com felicidade...


Zero-a-Zero

Acabo de chegar. Peguei um cineminha com Elza, a primogênita. Antes do filme almoçamos, depois do filme nos sentamos para café e papo a uma mesa da praça de alimentação do shopping. Nossos assuntos não se acabam.
Em dado momento, eu disse que pretendia escrever uma crônica sobre um nosso velho conhecido. Mas agora, ao encarar o écran (como dizem meus preciosos leitores portugueses), já não sei. É que a escabrosidade do “tema” pode fazer com que a filha deste sórdido redator exclame, como de outras vezes, “Eco, pai, você é nojento.”
Bem. Que este chatíssimo nariz de cera sirva de advertência à sensível garota, e ela pare de ler por aqui.
Na verdade, eu deveria lavar minhas cuecas e deixar o texto para outra ocasião, caso contrário terei de re-vestir alguma do everéstico monte de roupas sujas. Sinto, porém, que devo cuidar da fome de ávidos leitores. Não lavo as cuecas, mas lavo as mãos.
Eis que, inopinadamente, entro no assunto. Ou, melhor, o assunto sai de mim.
Estava eu no bar de meu amigo Tião, como costumo fazer há séculos, sempre ao pé do balcão, quando vejo o pesado vulto de Zero-a-Zero passar por mim e se meter pelo estreitíssimo corredor que leva ao banheiro. Deixou um amigo sentado à mesa lá fora.
Tiãozinho, distraído a me contar um de seus espichados casos, não percebeu o apressado movimento do exótico freguês, com suas enormes botas de borracha, seu chapelão de couro falso, seus grandes e redondos óculos de fundo de garrafa de vidro.
De repente, o dono do conceituado boteco ergue o nariz e fareja a atmosfera abafada e quente. “Algum desgraçado cagou e não deu descarga.”
Devo esclarecer ao leitor engajado em nobres causas de sustentabilidade ambiental que Tião não gosta de desperdiçar água com qualquer bosta. Tanto é assim que na sexta-feira (hoje é domingo) – mal se escorrera o Dia Mundial da Água – um funcionário da Saneago esteve no estabelecimento. Saneago é a companhia de água e saneamento do Estado de Goiás.
A “autoridade” não estava, evidentemente, preocupada com saneamento, e sim com água. Foi categórico com d. Lourdes, a mulher de Tião: “O consumo está fora do padrão.” Ainda sob o clima evaporativo do Dia Mundial da Água, d. Lourdes acreditou que o homem falaria de provável desperdício. Mas não.
“O consumo está abaixo do normal”, esclareceu o preposto, avisando que mandaria uma equipe para averiguar as instalações hidráulicas da venda e da residência do casal. Meu amigo está preocupadíssimo, a temer mais uma multa. “Se eu estivesse aqui explicava que a gente faz uma economia danada de água.”
Não sei se ele diria isso à Vigilância Sanitária, que há algum tempo mandara uma fiscal para ameaçá-lo com multa. Ela deu prazo de trinta dias para o vendeiro colocar sabão e papel higiênico no banheiro. Não deu ouvidos à explicação de que era só colocar papel e sabão na casinha dos suspiros para os produtos desaparecerem. “Aqui atrás do balcão tem sabão e papel higiênico, basta a pessoa pedir”, disse cheio de razão o meu amigo, cansado dos furtos.
Ele foi rigoroso no cumprimento da determinação. Na noite do vigésimo nono dia, pouco antes do baixar das portas do bar, lá estavam um pedaço de sabão do tamanho de um tablete de caldo de galinha e um minguado rolo de papel.
Zero-a-Zero é um sujeito insuportável, com aquela voz arrastada e chorosa, carregada de ironia ou escárnio contra pessoas sérias. Deve ser influência dos “produtores culturais” que frequentam bar na Avenida 84, pertinho da Praça Cívica, em Goiânia. Uma vez, da janela do ônibus que me sacolejava, eu o vi ali, a circular entre mesas com enorme abridor de garrafa pendurado na cintura.
Na maior expectativa, fiquei à boca do corredor que conduz à minúscula privada para observar a reação de Tião quando descobrisse que o evacuante era Zero-a-Zero. A coisa foi melhor do que eu imaginava. O desgraçado nem se dera ao trabalho de aferrolhar a porta, que o meu amigo empurrou para levar um susto.
Ali, voltada para a porta, bem perto de meu amigo, assomava, feito assombração, a carona redonda com óculos redondos. A bunda gigantesca remexia-se sobre a pia, que é do tamanho de um prato de restaurante self-service, enquanto a mão direita, depois de recolher um fio d’água da torneira regulada contra o desperdício, se esfregava na vala do desgraçado.
Zero-a-Zero levou o maior esporro, mas não se abalou. Voz chorosa e arrastada, modulou: “Mas, Tiãozinho, você não coloca papel no banheiro.” Levou mais bronca, reagindo como se fosse elogio. Quando meu amigo voltou para trás do balcão e se postou próximo à estufa de salgados, Zero-a-Zero o seguiu, estendendo a gotejante mão direita, em aberta provocação: “Mas, Tiãozinho, me desculpe, aperte aqui.”
Tião gritou: “Sai pra lá com essa mão cheia de lama de bosta, seu safado.” Em todos estes anos que o conheço, jamais vira o marido de d. Lourdes tão enfurecido. Zero-a-Zero, no entanto – voz arrastada, chorosa –, continuou com o desplante: “Mas, Tiãozinho, você não coloca sabão no banheiro.”
Então, como que para apaziguar o vendeiro, pediu um tipo de salgadinho aqui chamado de disco de carne. Lábios fortemente cerrados, a ofegar de tanta raiva, Tião pegou um guardanapo e com ele recolheu da estufa o salgado, que Zero-a-Zero agarrou – com a mão direita – pela parte superior, descoberta, desprezando o guardanapo.
Espectador atento, acompanhei com os olhos o abominável freguês, que se dirigiu à mesa em que antes estivera, partiu generosamente ao meio o disco de carne e estendeu ao amigo a metade que segurava com a mão direita. Ambos, felizes, devoraram o petisco. Zero-a-Zero era, sem dúvida, o mais feliz dos dois, talvez o homem mais feliz do mundo.
Ah, leitor, sei muito bem que minha Elzinha não dará a mínima para a advertência que fiz e lerá até o fim este caudaloso texto, falto de economia e comedimento. Ela faz qualquer sacrifício para saber até onde o pai é capaz de ir. Só não ficará curiosa para saber por que o crápula ganhou o apelido de Zero-a-Zero. Ela já sabe.

Hamilton Carvalho

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um balcão separa a plateia do stand-up comedian. É assim que o autor, sem implicância, revela a verdadeira origem do estilo de humor


Líquido e certo

Ao pé do balcão do Bar e Mercearia Silva, parolava eu com o dono do estabelecimento. O leitor já conhece Tiãozinho, e deve deduzir, de má vontade, que daqui não sairá nada de relevante. “É líquido e certo que lá vem besteira”, dirá a si mesmo. Ora, é carnaval. Um pouco de paciência não custará nada ao leitor solitário que não tem quem o arraste para a folia.
Aproveitei o fim de um dos casos longos e repetitivos do dono do bar para provocá-lo. Lembrei-lhe de fato ocorrido ali em carnaval passado. Para minha surpresa, dessa vez Tiãozinho não se sentiu provocado. Pelo contrário: não me deixou continuar, assenhorando-se da história. Daí a pouco, dois ou três frequentadores do bar entraram na conversa.
Seres humanos costumam formar estranhas confrarias.
O bar do Tião, na parte em que ficam os diminutos balcões e prateleiras, é pequeno e abafado. Do lado de fora há ampla e arejada área com mesas (e cadeiras, claro) que era, naturalmente, o lugar preferido dos fregueses. Eu – como faço sempre que me acontece de cair em bar frequentado quase exclusivamente por machos – ficava junto do balcão, sem intenção de me demorar.
Houve uma inversão. Hoje não é mais assim.
Antes, as pessoas se sentavam do lado fora e faziam seus pedidos aos berros, até perceberem definitivamente que Tião é lerdo e costuma fingir que não ouve enquanto não terminar um caso. Fregueses impacientes passaram, eles mesmos, a vir buscar a cerveja e o tira-gosto. E começou a inversão.
Quando chegava da área para arrancar do comerciante mais uma cerveja ou uma tira de pele de porco, o cliente tinha de esperar o desfecho de um caso que ele era de início obrigado a ouvir. Não adiantava que eu fizesse gestos para que Tião desse uma pausa e atendesse o freguês, que passava a prestar atenção nas babaquices e a rir delas.
Hoje, lá fora, as mesas vivem literalmente às moscas, com exceção de uma ou outra, geralmente quando há mulher. Dentro, homens se amontoam diante dos dois pequenos balcões, plateia ativa e cativa do vendeiro. Já eu passei a ficar mais do lado de fora, empurrado pelo fedor de homem e pela fumaça de WS.
Acredito que, se não fosse pela mulher, que o ajuda no atendimento quando não está na cozinha da casa que fica atrás da mercearia, Tião teria que montar circo para sobreviver ou se dedicar exclusivamente ao pedaço de terra e às vacas que possui.
Por falar em circo, parece que a briga acabou. Até ontem havia dois circos “luxuosamente” armados em meu bairro. Um deles anunciava, por meio de fanhoso alto-falante instalado em Kombi de provecta idade: “Crianças e adultos só paga 5 reais.”
O concorrente, que instalara aparelho de som em algo semelhante a uma Parati, apelou. Ontem, que seria o último dia de ambos os circos na cidade (outra coincidência?), declarava o massacre ao garantir espetáculo “totalmente grátis”.
Confesso que vibrava quando via os carros se cruzarem. Os gritos esganiçados que saíam com entusiasmo sofrido dos alto-falantes davam a impressão de ser da mesma pessoa.
Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim.
Em carnaval passado notei quando um casal se sentou a uma mesa. O homem era um solteirão que morava ali perto. Não reconheci a garota. Os dois estavam com os cabelos úmidos, como se tivessem tomado banho juntos. Ele não esperou muito. Já conhecia o modus operandi do dono do lugar. Veio para dentro e aproximou o rosto do de Tião, como se fosse dizer um segredo. Mas todos que estavam no recinto ouvimos.
“Tiãozinho, veja que gata peguei ontem”, disse com um sorrisão, a jogar um polegar por cima do ombro. Depois pediu: “Antes da cerveja, dois Engov, pois neste carnaval vou arrasar.” Meu amigo serviu meio copo de água (ele é econômico) e descascou os comprimidos que havia tirado da gaveta. O homem os colocou na boca, despejou água por cima, engoliu, fechou as mãos e sacudiu os punhos como se comemorasse um gol.
Enquanto me falava do tempo em que trabalhou em fazenda de gado, o botequeiro ia brincando com um dos invólucros do medicamento que lhe ficara entre os dedos. De repente, parou a brincadeira e pronunciou meu nome em tom de alarme. Olhei para o papelzinho. “Lactopurga”.
Tiãozinho ficou apavorado. “E agora, o que é que eu faço?” Retruquei: “Nada; espera pra ver.” Virei-me de costas, apoiei os cotovelos no balcão e olhei para o casal sentado à mesa lá fora, ele com um sorrisão nos lábios. Deliciado (ou invejoso), ainda sentenciei: “É líquido e certo que ele não vai arrastar a moça para a folia.”

Hamilton Carvalho

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Tortuoso, Hamiltão já não sabe se é grego ou latino. Ou os dois


Agalmatofílico ou agalmatoerasta?

Ao dar de cara com a pergunta, o leitor há de sentir-se desestimulado. Afinal de contas, você quer respostas ou afirmações peremptórias para estar confortável no mundo. Então vá para o Google, caralho!
Ando impaciente, sei disso. É a porra da abstinência sexual, só pode. Quem aqui acompanha meus trôpegos passos desde os primeiros textos deve lembrar-se de que a tensão sexual me fez afirmar, certa vez, que até manequim de porta de loja me excitava. Referia-me, naturalmente, a manequins moldados em corpo feminino.
Agora é assim, e não é bem assim.
A caminho do trabalho, conforme a linha do ônibus que primeiro me aparece, passo por lojas que vendem manequins. Ficam expostos na calçada, ao sol, à chuva, à fuligem. Hoje são largamente usados nas barracas de roupa da Feira Hippie, e é comum ver algum deles amarrado sobre capota de Kombi feito lívido e obsceno cadáver, em tarde de domingo, finda a feira.
Naquela estreita e sinuosa avenida, os bonecos não são – é preciso reconhecer – propriamente atraentes. À vezes, dependendo do meu humor, lembram personagens de livro que fui forçado a ler: Incidente em Antares, de Érico Veríssimo.
Multidão de homens, mulheres e adolescentes de plástico azulado, amarelado, esverdeado, ou sob a tentativa de cor de pele, evidentemente pele de branco bronzeada. Pelos traços “caucasianos” (como dizem pessoas complacentes dos Estados Unidos da América), não há lugar ali para “afrodescendentes”.
Por outro lado, ou por outra razão, vejo atrativo em determinados manequins que representam o corpo feminino, em oposição à repulsa que me causam os que representam o corpo masculino, que, aliás, não devem despertar a inveja do pênis nas mulheres. (O dito talvez ficasse melhor assim: não devem despertar nas mulheres a inveja do pênis.)
Há bonecas que revelam claramente que foram modeladas em gostosíssimas garotas de bundinha arrebitada. Domingo destes, na Feira Hippie... Ruborizado confesso, ínclito leitor, que ao deparar com uma delas que, de costas para mim, envergava uma malhazinha das mais finas, tive vontade de lhe passar a mão na bunda. (Talvez ficasse melhor assim: passar a mão na bunda dela.)
Ah, eu não poderia esquecer: existem manequins que representam mulheres grávidas. O leitor já sabe de minha carinhosa tesão por mulher grávida, o que não é bem aquela gentileza de oferecer o banco no ônibus, coisa que as mulheres, todas, já nasceram merecendo.
Interessante. Houve tempo em que era comum, em lotação, homem oferecer o banco para uma dama se sentar, independentemente do estado ou da idade dela. Atualmente os ônibus urbanos têm bancos vermelhos reservados para velhos, grávidas e deficientes físicos. Mas a moçada não está nem aí. Robustos garotões e garotonas cravam o traseiro no assento vermelho e, como diria o cantor Luan Santana, “qui xi dânio mundo”.
Às vezes são os velhos que se recusam, como um desaforo, sentar em banco vermelho, e passam duros para se acomodar em lugar de gente “normal” ou se entregar à tortura potencializada de viajar em pé. Conheço alguns.
Para mim, é incompreensível que jovens finjam dormir ou admirar paisagem de concreto sujo para, assim, sair do desconforto da presença de uma mulher velha ou grávida. Ou de alguém que começa a passar mal durante o trajeto, como aconteceu comigo, quando vinha da casa de uma amiga, depois de carregar uma noite profíqua e esgotante.
Moça caprichosa, aquela. Voraz, impetuosa, exigente. Não me deu de-comer, nem antes nem depois de abusar de mim. Aí, no ônibus, já sob o solão da tarde, me bateu uma zonzeira, uma moleza. Efeito retardado, sei lá. Caí de cócoras entre as pernas que lotavam o corredor do ônibus.
E – pasme, leitor – fui socorrido por – pasme – uma mulher grávida, que me pegou pelos sovacos molhados de suor e me fez sentar no banco que estivera a ocupar. Pelo tamanho do belo bucho envolto em pano vermelho, deveria estar no oitavo mês gravidez.
Certo dia vi uma velha mal se segurando perto da cabeça gelzada de um garoto de pescoço taurino e musculosos braços a jorrar da camisa regata. Notei que ele, ao divisar a macróbia senhora que se aproximava, jogou o queixo na direção do peito. Só faltou fingir que roncava. E foi então que reparei num detalhe. Não era apenas uma velha; era uma velha grávida. O sono tinha de ser, mesmo, muito pesado.
Ora, a esta altura sinto o comichar do leitor: agalmatofílico ou agalmatoerasta?
Li em algum lugar que agalmatofilia é atração por manequins, e agalmatoerastia também, só que com “conteúdo” sexual. Difícil entender bem a diferença. Por analogia com a definição do dicionário Aurélio para pedófilo – aquele que gosta de crianças (pelo menos é assim que está na edição que tenho) – eu estaria mais para agalmatofílico, mesmo porque jamais teria a propensão de arranhar a sensibilíssima glande em algo de plástico, ainda que (suponho) macia boneca inflável.
Espero que o leitor não me coloque no dilema: pedófilo ou pedoerasta?

Hamilton Carvalho

domingo, 22 de janeiro de 2012

Um encontro em fria noite de sábado. O autor narra com singeleza. E, assim, chega a comover


Miriã

No que bati os olhos nela, pensei: “Essa daí deve dar mais do que galinha do rabo torto.”
Foi no bar do Uárlen, já que o meu amigo Tiãozinho fechara a mercearia para ir à roça catar pequis e ordenhar vacas. (Mas Tião não me engana: a incursão era mesmo para mostrar ao encarregado da chácara que o dono está de olho...)
De longe dava para ouvir o estrondejar da máquina de música. Entrei no recinto, firme no rumo do balcão, concentrado no pedido que faria à companheira de Uárlen.
Quase fui atropelado. Sim, leitor. Uma baixinha roliça volteava freneticamente em torno das duas mesas de bilhar ao som de uma música estilo ai-se-eu-te-pego. Veio para o meu lado cega feito bola de efeito. Com o reflexo dos meus tempos de goleiro de futebol de salão (hoje conhecido como futsal), dei elegante gingado na ponta dos pés, e evitei o desastre.
Quem nos observasse distraidamente naquele brevíssimo momento poderia tomar-nos por velhos parceiros de danças eróticas. Mas o parceiro dela era um sujeito pequeno e magro que não conseguia acompanhar o ritmo alucinante da moça, ambos já meio encanjebrinados.
Pedi a bebida e voltei com ela para me sentar a uma solitária mesa na calçada, encostada na parede entre as duas portas. Coloquei-me com a cadeira de frente para a rua, o braço direito apoiado na mesa. Quando me entortava para a esquerda e olhava para trás via um grupo de pessoas em inocente carteado, mais ninguém. E estava fora de vista da dupla de dançarinos.
Meu amigo Tião repete com frequência que vivo “dando chute na sorte”. Que o leitor julgue a pertinência disso. Para começar ponha os olhos em mim naquela noite de sábado, a beber no passeio, sem me dar conta de que fazia frio, em flagrante e pública solidão. Por uma vez apenas, infinito leitor, pense complacentemente nesta vida cambaia, nas sortes e nos azares dela. Aliás, foda-se. Vá cuidar do que lhe pertence.
A baixota gordinha saiu num torvelinho da atmosfera cálida do interior do bar e se dirigiu a mim: “Moço, veja que absurdo.” Na rabeira dela veio o baixote magrelo. Mas o absurdo não era ele. “Na minha terra a gente ouve música de graça, e aqui eles cobram cinquenta centavos pra tocar uma”, resfolegou a agilíssima dançarina. “Um absurdo.” O tom de voz era alto.
Deu uns dois giros pelo passeio (quase escrevi “Ciscou à minha volta”, mas me lembrei da galinha do rabo torto da abertura deste texto e achei que seria abusar das comparações) e se achegou a agitar os punhos cerrados. “A gente tá consumindo a bebida desses elementos e ainda temos de pagar pela música.” Aí pediu para se sentar à mesa.
Sentou-se. Resumiu a própria vida sem pausar na falação. Chegara havia pouco do Maranhão, aprendia a fazer sapatos femininos (“Sou sapateira, não sapatão”), gostava de se divertir e namorar. E se chamava Miriã. O baixote, de pé, com o chapeuzinho pendurado de banda na cabeça ossuda, bafejou perto de minha boca: “Essa dá nó duplo em gota d’água.”
A intervenção do companheiro de dança não a perturbou. “Não liga não pro teu futuro cunhado”, pediu a dama festiva a olhar carinhosamente para o homúnculo. “Falo mesmo mais que o homem da cobra.” Foi então que...
“Por falar em cobra”, emendou. Pegou a minha mão que repousava na quina da mesa e me pressionou o dedo médio, forçando-o na direção do braço. Queria, desse modo, tirar a medida do meu pau. O método seria infalível, segundo ela. O dedo, no entanto, não foi muito além da parte carnuda da mão.
Ao notar o ar de desalento da elétrica maranhense, destravei a língua e passei a me justificar anatomicamente. Garanti que meus dedos eram pequenos, desproporcionais em relação a outras partes do corpo. Fui enfático, reiterativo.
Um negro de uns dois metros de altura me fez estancar o jorro de justificativas. Curvou-se diante da dama e lhe ofereceu o espetinho de carne “molhado” em farinha de mandioca que trazia do churrasqueiro que ficava a cerca de vinte metros do bar. Ela não aceitou a gentilíssima oferta, e o grandalhão passou pela porta à minha direita e se sentou fora do meu campo de visão.
“Não fique com ciúme, ele não tá olhando pra mim”, disse Miriã numa voz surpreendentemente baixa. “Parece que ele tá cochilando.” Impaciente, retomei o assunto de minhas medidas penianas. Confesso que não sei por que me empenhava tanto naquilo. Foi quando o negro se materializou novamente. Insistiu para que ela aceitasse o churrasquinho, pois ele não o comeria por não se sentir bem.
Ela enfiou perigosamente o espeto na boca e arrancou dois nacos de carne “molhada” em farinha de mandioca. A mastigar com furor, inclinou-se para mim, retornando ao assunto. “Sendo assim, ele vai ser teu futuro cunhado”, afirmou jogando o queixo na direção do baixinho. Foi aí que me toquei. Eram irmãos.
Agarrou a minha mão e me puxou para ela enquanto se atirava a mim para um apoteótico beijo com direito a língua. Era como se metessem em minha boca, inteiro, um bife à milanesa.
A reclamação quanto à cobrança da música era só pretexto para se aproximar, assegurou. “Eu disse ao mano que tu ia ser o futuro cunhado dele logo que tu passou por nós pra sentar aqui fora.” Para me safar, prometi que a encontraria no dia seguinte, domingo. Não compareci, e não digo que tenha chutado a sorte.
Falei sobre esse encontro ao meu amigo do Bar e Mercearia Silva. Omiti, naturalmente, a dúvida levantada por Miriã quanto às minhas dimensões penianas. Na verdade, eu não deveria ter contado nada. Com um sorriso cínico a mostrar o reluzente dente de ouro, Tião proclamou: “Eu não disse?”

Hamilton Carvalho