quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um balcão separa a plateia do stand-up comedian. É assim que o autor, sem implicância, revela a verdadeira origem do estilo de humor


Líquido e certo

Ao pé do balcão do Bar e Mercearia Silva, parolava eu com o dono do estabelecimento. O leitor já conhece Tiãozinho, e deve deduzir, de má vontade, que daqui não sairá nada de relevante. “É líquido e certo que lá vem besteira”, dirá a si mesmo. Ora, é carnaval. Um pouco de paciência não custará nada ao leitor solitário que não tem quem o arraste para a folia.
Aproveitei o fim de um dos casos longos e repetitivos do dono do bar para provocá-lo. Lembrei-lhe de fato ocorrido ali em carnaval passado. Para minha surpresa, dessa vez Tiãozinho não se sentiu provocado. Pelo contrário: não me deixou continuar, assenhorando-se da história. Daí a pouco, dois ou três frequentadores do bar entraram na conversa.
Seres humanos costumam formar estranhas confrarias.
O bar do Tião, na parte em que ficam os diminutos balcões e prateleiras, é pequeno e abafado. Do lado de fora há ampla e arejada área com mesas (e cadeiras, claro) que era, naturalmente, o lugar preferido dos fregueses. Eu – como faço sempre que me acontece de cair em bar frequentado quase exclusivamente por machos – ficava junto do balcão, sem intenção de me demorar.
Houve uma inversão. Hoje não é mais assim.
Antes, as pessoas se sentavam do lado fora e faziam seus pedidos aos berros, até perceberem definitivamente que Tião é lerdo e costuma fingir que não ouve enquanto não terminar um caso. Fregueses impacientes passaram, eles mesmos, a vir buscar a cerveja e o tira-gosto. E começou a inversão.
Quando chegava da área para arrancar do comerciante mais uma cerveja ou uma tira de pele de porco, o cliente tinha de esperar o desfecho de um caso que ele era de início obrigado a ouvir. Não adiantava que eu fizesse gestos para que Tião desse uma pausa e atendesse o freguês, que passava a prestar atenção nas babaquices e a rir delas.
Hoje, lá fora, as mesas vivem literalmente às moscas, com exceção de uma ou outra, geralmente quando há mulher. Dentro, homens se amontoam diante dos dois pequenos balcões, plateia ativa e cativa do vendeiro. Já eu passei a ficar mais do lado de fora, empurrado pelo fedor de homem e pela fumaça de WS.
Acredito que, se não fosse pela mulher, que o ajuda no atendimento quando não está na cozinha da casa que fica atrás da mercearia, Tião teria que montar circo para sobreviver ou se dedicar exclusivamente ao pedaço de terra e às vacas que possui.
Por falar em circo, parece que a briga acabou. Até ontem havia dois circos “luxuosamente” armados em meu bairro. Um deles anunciava, por meio de fanhoso alto-falante instalado em Kombi de provecta idade: “Crianças e adultos só paga 5 reais.”
O concorrente, que instalara aparelho de som em algo semelhante a uma Parati, apelou. Ontem, que seria o último dia de ambos os circos na cidade (outra coincidência?), declarava o massacre ao garantir espetáculo “totalmente grátis”.
Confesso que vibrava quando via os carros se cruzarem. Os gritos esganiçados que saíam com entusiasmo sofrido dos alto-falantes davam a impressão de ser da mesma pessoa.
Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim.
Em carnaval passado notei quando um casal se sentou a uma mesa. O homem era um solteirão que morava ali perto. Não reconheci a garota. Os dois estavam com os cabelos úmidos, como se tivessem tomado banho juntos. Ele não esperou muito. Já conhecia o modus operandi do dono do lugar. Veio para dentro e aproximou o rosto do de Tião, como se fosse dizer um segredo. Mas todos que estavam no recinto ouvimos.
“Tiãozinho, veja que gata peguei ontem”, disse com um sorrisão, a jogar um polegar por cima do ombro. Depois pediu: “Antes da cerveja, dois Engov, pois neste carnaval vou arrasar.” Meu amigo serviu meio copo de água (ele é econômico) e descascou os comprimidos que havia tirado da gaveta. O homem os colocou na boca, despejou água por cima, engoliu, fechou as mãos e sacudiu os punhos como se comemorasse um gol.
Enquanto me falava do tempo em que trabalhou em fazenda de gado, o botequeiro ia brincando com um dos invólucros do medicamento que lhe ficara entre os dedos. De repente, parou a brincadeira e pronunciou meu nome em tom de alarme. Olhei para o papelzinho. “Lactopurga”.
Tiãozinho ficou apavorado. “E agora, o que é que eu faço?” Retruquei: “Nada; espera pra ver.” Virei-me de costas, apoiei os cotovelos no balcão e olhei para o casal sentado à mesa lá fora, ele com um sorrisão nos lábios. Deliciado (ou invejoso), ainda sentenciei: “É líquido e certo que ele não vai arrastar a moça para a folia.”

Hamilton Carvalho

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