quarta-feira, 20 de abril de 2011

Era quase no tempo das diligências, com estradas poeirentas, estalagens e paixões

Um sonho

O fidelíssimo leitor não precisa se sentir obrigado a me ler hoje. Sei o quanto é penoso encarar texto em que o autor, para embromar, resolve contar sonho – coisa que não acrescenta nada a entrecho nenhum.
Contrito, peço perdão, e peço licença.
Noite passada, antes de dormir, reli a crônica que fiz sobre a fodinha relâmpago do ex-tenista Boris Becker (como se eu tivesse alguma coisa a ver com intimidades alheias...). Lá pelas tantas acordei, pensei um tanto na amada que não me ama, e voltei a ressonar.
As imagens eram tão vívidas que eu, que detesto filme “nacional”, senti falta das legendas. Estava deveras impressionado com os 5 segundos do alemão, que agiu feito mero garanhão reprodutor, e em sonho fiz o meu tão sonhado cineminha.
Semelhantemente a dois caubóis de cabelos longos e mochila nas costas, descemos da diligência, quer dizer, do ônibus. A cidade era pequena, as pessoas se moviam como numa marcação de festa, um movimento alegre sob a acariciante brisa do pôr do sol.
Meu amigo e eu fomos ao saloon, quer dizer, a um bar para remover a poeira da garganta. Em seguida procuramos hospedaria. Muito discretos, o que menos queríamos era nos envolver em duelo gratuito.
Estranho... Coisa de sonho mesmo: éramos os únicos clientes do hotel da álacre cidadezinha, toda ela em cinemascope.
Fomos recebidos por uma anciã, alvíssimos cabelos. Ao lado dela uma moça gorduchinha de fagueiras olhadelas, ágil e maneirosa.
Com a queda da noite, depois que meu amigo tomou banho e depois que tomei banho (espero que assim fique bem claro que cada um se banhou em sua vez, cada um sozinho; mesmo em sonho não cato sabonete), a anciã nos convidou para um café.
A velhinha sentou-se à cabeceira da longa mesa, com a garota à sua direita. Eu me sentei de frente para ela, com o amigo à minha direita. (Parecia até que todos ali sabiam quem é que comandava.)
As imagens, agora, estavam puxadas mais para o noir.
A voz da velha ondulou por sobre a toalha xadrezada em vermelho e branco. De onde vínhamos e para onde iríamos? Qual a nossa idade? Qual o curso que fazíamos? Oh, sim, éramos muito inteligentes.
Com uma contrainformação aqui e outra ali, dávamos respostas enquanto a anciã e a rechonchudinha trocavam olhares entre si. A velha sorria larga e serenamente para a moça, que soltava risinhos nervosos.
Tive a impressão de captar algo de intimidador na majestosa senhora. Havia suspense trash na atmosfera daquela sala de jantar, sem lareira e quadro equestre, sem castiçais e velas.
Pô, antes que me acusem de epígono de Poe, vou ringir tesoura na montagem desse sonho, mesmo porque, como diria um amigo metido a cineasta, se trata de uma maldita découpage clássica.
Na quente escuridão do quarto, estendido na cama com mínima cueca e acreditando que o amigo dormia, esperei. Alguma coisa teria de acontecer. Bateram. Ergui-me num ímpeto e abri a porta, mostrando-me inteiro à luz da lua, de cuequinha mínima e pau duro.
Ali estava a mocinha com um molho de chaves na mão, no amplo pátio cercado de quartos vazios. “Vem”, ela disse. Eu a segui, magricela e branco feito fantasma.
Duas ou três portas em direção aos fundos, entramos num quarto com cama de casal. A gordinha não fechou de todo a porta, deixando um vão de aproximadamente 20 centímetros por onde passava um tímido e espremido luar.
Tirou a roupa e se jogou na cama, pernas abertas. “Vem.” Àquela fraquíssima luz divisei os contornos do treboçu sem muito acreditar.
Mas arranquei a cueca e caí matando. Muito malmatando, porque, enérgica, a moça não me deixou fazer mais nada senão meter, e meter rapidinho.
Depois de gozar e constatar que ela não estava e não estivera nem aí, tentei ficar mais um tempinho encaixado, como a pedir satisfação aos deuses. Então... “Vai”, ela disse.
De pé, depois de enfiar a cueca, ainda resisti. Perguntei: “Como você sabia que era eu quem ia abrir a porta?” Afirmou que não sabia. “Tanto fazia um ou o outro.”
Entrei no meu quarto, murcho e melado, na ponta dos pés. Deitei-me com cuidado, mas não adiantou. Um som que vinha da outra cama, como soluço, foi aumentando de volume até estourar numa gargalhada.
Será que eu fora usado apenas como reprodutor? Será que a velhinha com cara de estampa de natal queria mais companhia naquela estalagem decadente?
Ah, foi somente um sonho que tive, impressionado com Boris Becker e a rapidinha dele. Não fiquei sabendo das intenções nem da moça nem da velha. Acordei com o telefone.
Era minha filha Elza, ligando da universidade para lembrar que a ração dos animais havia acabado. Ainda nas malhas do sono, resmunguei “OK Curral” e desliguei.
É como você vê, teimoso leitor: o sonho, mesmo sem legendas, não teve direito sequer a um singelo The end.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 195, 6/5/2001)

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