quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Em grande momento de sua vida, Hamiltão produz texto desaconselhável para pessoas preguiçosas


Ah, casa paterna...

Não lembro o ano em que a mulher pegou as meninas e as mochilas e se mandou. Só me lembro do dia e do mês: 8, março. Dia Internacional da Mulher. (Eh mulherzinha radical...)
Minhas filhas voltaram a morar comigo. Meu refúgio na Ladeira do Vento, de um dia para outro, foi tomado por uma turma da pesada: Elza, Lígia, Zeca e Cisco Kid.
O quarteto foi recebido pelo viúvo Fidel e por mim. Fidel fora trazido para casa pelas meninas, tempos atrás, juntamente com a gata Letícia, que mais tarde seria assassinada, com os quatro filhotes, pelo cachorro do vizinho, um dobermann.
Fidel não gostou nada dos novos hóspedes. Dou-lhe certa razão. Não se pode chamá-lo de gato ranzinza, como às vezes me chamam a mim. Tanto o cocker spaniel  Zeca quanto o gato mestiço (?) Cisco Kid são sempre importunos, “infantis” e bagunceiros.
São como colaços: têm praticamente a mesma idade, vivem se pegando em brincadeiras pesadas e se lambem e se cheiram. O maduro Fidel colocou-os na geladeira, não lhes dá a mínima bola e evita qualquer assédio amistoso por parte deles, principalmente do cachorro.
Aliás, coitado do Fidel. Nos primeiros dias, despeitado, andou sumido no mundo. Fiquei preocupado. Ei-lo de volta: magro, encardido, de cara amarrada, como quem faz grande concessão.
Zeca, quando chegou a casa, apesar de bem alimentado com ração, comia tudo o que calhasse: ponta de cigarro acesa, sabão, planta ornamental. Mas tinha preferência especial pelas minhas meias sujas e pelas correias das Havaianas de meu banho.
Além de adorar colocar a cabeça de Cisco na boca e sacudir, ou prender nos dentes uma perna, uma orelha ou o rabo do gatinho masoquista e arrastá-lo pela casa, Zeca tem um prazer cruel: borrar a calça que acabei de vestir. Ao sentir, lá do enlameado quintal, que me preparo para sair, vem aos saltos fazer “festa” (é como se me quisesse longe de casa, o merdinha.)
Já o Cisco Kid tem um gostinho muito do sacana. Quando fica sabendo que cheguei do trabalho, tirei os sapatos e me deitei no sofá, estendendo os pernões cansados, o miseravelzinho surge não sei de onde e passa a me roer os dedões.
A expectativa agora é quanto a Tina. A gatinha, cujo nome ainda é dúvida, foi encontrada em rua da Vila Nova, assim como Cisco Kid. Por enquanto, a mãe das meninas está cuidando dela, mas, como diria a última loira do tchã, “o destino da pessoa é predestinado”.
O retorno das meninas muda a minha vida. Paínho tem de comer na hora certa (já ganhei quilinhos), arrumar o quarto (ah, saudosa bagunça...), não demorar tanto no banho (“parece que vai casar”). Cortaram até o sal de minha maçãzinha brasileira.
Quanto à despesa... O leitor sabe que não sou mesquinho, e não reclamo. É claro que, a esta altura, elas estão bem carinhas. Cursinho, universidade, shows de Zeca Baleiro, cinema. Elas são a minha alegria; não me queixo de nada.
Fora a aporrinhação permanente dos animais, apenas uma coisa me deixa deveras chateado. É não mais poder passear pela casa trajando apenas óculos.
Mochilas e meninas de volta. Só me resta reaprender a conviver e a compartir.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 187, 11/3/2001)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Eis um quadro de quando um gênio se perde. Não há nada que interesse, mas, por hábito, a humanidade aclama...

 
Lealdade à Ferrante

Na sala de recreio da Gazeta, tida como fumódromo (eu, elegante, acharia melhor dizer fumoir), existe um aparelho de TV. Hoje eu estava lá, bocão aberto, diante da tela.
Coleguinha chegou e avisou que o tevê estava desligado. Eu, nota-se, também. É que, depois de liquidar com o aporrinhante assunto sobre Maria O., me sentia perdidão, assim que órfão, assim que vazio, doido para atravessar a rua deserta de minha alma.
Na verdade, era como se estivesse em cadeira de barbeiro, letárgico, a olhar sem me ver no espelho. Ou a ler, sem ver, no apoio para os pés: “FERRANTE / R. Independência, n.º 678”.
Acredito que, hoje, a sólida cadeira Ferrante seja raridade. Mas eu a conheço desde os tempos em que chamava cabelo de bebelo.
Nos meus começos, para me rapar o coco, o profissional da lépida tesoura colocava uma tábua atravessada nos braços da cadeira e, literalmente, me jogava nela. Upa.
Eu olhava para baixo e via, lá longe, aquelas sóbrias letras em alto-relevo. Vertigem boa, quase abissal.
Depois que descobri, em meu bairro, uma barbearia com uma Ferrante, nunca mais mudei de barbeiro. Mesmo que, de vez em quando, Luciano me faça uma barbeiragenzinha no cabelo. Aliás, barbeiro só me faz cabelo; neca de barba.
A rigor, o rapaz é cabeleireiro. Mas sou do tempo em que tal palavra não pegava bem em moço de boa família. Além do mais, prefiro arrastar penosamente meu Prestobarba a levar na cara tapinhas de macho.
Já é concessão permitir que homem me passe a mão pela cabeça, como se eu fosse gramático do Jornal Opção cujo pronome “antecede antes” do verbo.
Só não mudo para barbeira porque esse negócio de “salão de beleza” não me deixa muito à vontade.
Um amigo costuma dizer que prefere ficar fofocando em salão de mulher (“unissex”) a deixar que neguinho suspeito lhe acaricie o cangote.
Uma vez ele quis que eu experimentasse cortada de fêmea. Fazia questão de pagar. Lá fui eu, em horário meio morto de segunda-feira, morrendo de vergonha.
Mas aquilo foi bom. Foi gostoso. Suave. Cálida ereção. Nada de bafo de macho e perdigoto de casos babacas.
Apesar do “sucesso”, mesmo empurrado por amigos, não passei a frequentar salão de beleza, porque mulher cobra mais caro. Depois, então, que descobri uma barbearia perto de casa com cadeira Ferrante... Aí é que não vou mesmo deixar-me cair nas garras macias de cabeleireira.
É pena, sei, é pena. Acontece que sou fiel à Ferrante do Luciano, apesar do aliciador (para outros) vocabulário evangélico que o rapaz passou a empregar depois que virou “crente”.
No começo, Luciano cobrava R$ 1,99 por corte. Era muito rigoroso no preço: mantinha um pires cheio de moedas de R$ 0,01 para troco. Agora faz curso para pastor e cobra R$ 3, o que não me deixa feliz, apesar do vale-picolé com que brinda os fregueses.
No entanto, aferrei-me à Ferrante. Aqueles entalhes, aquelas curvas... A sinuosidade das pernas, os braços curvilíneos... O negror brilhante da silhueta...
Dias atrás vacilei. Dona de salão de beleza lá do meu pedaço queria porque queria fazer um “corte decente” em meus ralos cabelos. Neguei, negaceei, mas já estava quase disposto a encarar a tesourinha da moça quando me informaram que ela vendera o salão.
Ufa, que alívio. Tudo indica que neste fim de semana vou chupar o picolé do Luciano.
Ah, sim. A coisa de ficar vendo TV com aparelho desligado é o melhor programa que ando tendo ultimamente. Na verdade, na verdade, fico ligadão.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 186, 4/3/2001)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Erupção vulcânica em boleia de caminhonete atira lavas no lombo de pobre animal...


Cavalgadura

O cantor Nelson Ned – que depois passaria a prestar inestimáveis serviços à máfia cubana de Miami – fazia sucesso: “Só se encontra a felicidade / Quando se entrega o coração”.
Taí. Maria O. não leu o meu cardiograma. Aliás, nem eu. Porque nada justificava aquela paixão forçada pela professora de inglês. Não era por ela que eu descabelava o palhaço.
Os traços da realidade estavam na palma da mão. Cozinhei muito esperma na água do banho, e a visão que me cegava tinha a estupenda ossatura e a morena carnadura de Maria O.
Ah, leitor, vivo a reprisar teipes desta vida cambaia.
Maria O. se mudou com a tia, o primo e a mulher do primo para o centro da cidade. Apareci por lá umas duas vezes, a pretexto de visitar antigos vizinhos.
Não tenho a menor dúvida de que minha família suspeitou de algo, já que nunca fui – nem sou – de fazer visitinhas. A não ser que haja xoxota à vista.
A situação estava difícil. Para beijar Maria O., uma vez tive que cercá-la em um ponto cego da pequena casa, uma soleira. Quem estivesse no quarto poderia ver no máximo uma ponta da bundinha dela; quem estivesse na sala não poderia ver coisa nenhuma.
Aí, leitor, injunções da vida, ah, injunções desta vida cambaia... Tempos depois eu a encontraria em rua movimentada, sob o sol brilhante da tarde. Ela estava com uma amiga. Foi cortês – e só.
Nem parecia que havíamos cavalgado juntos, em álacre intimidade, na chácara a que fomos duas ou três de minhas irmãs, Maria O., o primo dela, a mulher do primo e eu, amontoados na carroceria de uma caminhonete. Minha mãe e a tia da garota viajaram na cabine.
Lá (onde Maria O. havia morado antes de ir estudar na cidade), Nelson Ned berrava pelo alto-falante da vitrola portátil.
Ah, era daqueles lugares em que todos os apetites se aguçam. As pessoas comem bem, há frutas, frango, lábios com sumo de jabuticaba.
Depois do almoço, aproveitando-me da leseira que se abatera sobre os mais velhos, fui para a caminhonete, arrastando Maria O. com um olhar.
Sentei ao volante e esperei. Daí a pouquinho, a porta do lado do passageiro se abriu e Maria O. entrou, esticando aqueles pernões compridos. Estava descalça. Tirei as Havaianas e pousei o pé direito no acelerador.
Meu deusim do céu... mas meu deusim do céu... Ela, com tremor na voz, murmurou, pondo em mim os lucilantes olhos castanhos: “Me ensina a dirigir.” Eu...
Ora, leitor detalhista. É claro que me lembro de haver dito, em crônica anterior, que a moça tinha olhos negros. E daí? Por que uma coisinha assim tem que interferir no fluxo da narração? Ora.
Ficamos um tempão naquela cabine quente, eu a ensiná-la a “dirigir” com o carro parado, nossos pés a se misturar com acelerador, freio e embreagem, misturando-se uns aos outros, as mãos apertando-se umas às outras no volante.
“Vamos montar”, ela disse, de repente. Hein? Abriu a porta e chamou: “Vem.” Saiu correndo para a manga e voltou a puxar um cavalo pelo cabresto. Ágil e bela, bela e ágil, com as longas pernas, saltou para o animal. “Vem.”
Com dificuldade, apoiando-me numa cerca, pulei para a garupa. Não havia cela. Minha bunda escorregou pelo lombo do animal, e o baixo-ventre, irresistivelmente, foi-se apoiar no traseirinho dela. Meu deusim do céu...
Saímos a cavalgar maciamente, a embrenhar-nos pelas veredas. Por mais medroso que fosse, eu não tinha como segurar aquela tesão. Agarrava a garota pela barriguinha, o pau atrás dela mais duro que couraça de extintor de incêndio. Ai. Estava quase babando.
Ela fez o animal parar. Pediu que trocássemos de posição. Balbuciei alegando que não sabia guiar cavalo. “Não tem importância, eu guio”, disse a mocinha saltando para o chão. Deixei-me escorregar para a frente, enquanto ela, pernões lindos à mostra, se acomodava na garupa.
Aquele vestidinho amarelo de algodão, soltinho... As pernas morenas, uma de cada lado de meu corpo trêmulo... Ela segurou as rédeas, enlaçando-me por trás. E fomos, e fomos, o baixo-ventre dela coladinho em mim.
Meu deus. Maria O. estava ficando mais ousada do que eu. Respirava forte, com o queixo em meu ombro esquerdo. Só de imaginar o pinguelinho dela...
Quando voltamos, lá estava novamente Nelson Ned saindo pelo alto-falante da vitrola portátil: “... que tudo passa, tudo passará...”
Antes que me esqueça: o título desta crônica é uma homenagem que me faço.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº  185, 25/2/2001)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Hamiltão trai obsessão por Maria O., a sensualíssima morena de Anápolis. E não anda nem desanda


Cavalgada

Justiça seja feita: a vida me tem sido pródiga de grandes amores e paixões azoretadas. Quer dizer, pelo menos promessas... Olha, leitor, é que sou bobo de doer. Deixar escapar Maria O. daquele jeito... Não há desculpa.
Nem José de Alencar, em Sonhos d’Ouro, descrevera tão romântico passeio a cavalo. O cavalo, ou a égua (já não tenho certeza), estava em pelo.
Naquela época, o cantor Nelson Ned (que mais tarde passaria a prestar relevantes serviços à máfia cubana de Miami) fazia sucesso: “Eu te dei meu amor por um dia / E depois, sem querer, te perdi...”
O disco, na vitrola, rodava repetidas vezes nos cômodos que Maria O. ocupava com a tia, o primo e a mulher do primo. Minha família morava na parte maior da casa, que tinha entrada independente, lateral, onde ficava a varanda.
Esse primo... Quando ficava sozinho com a mulher, ele a fazia rodar mais que o disco no pino da vitrola, no maior escândalo, com o solão comendo lá fora. Parece-me que era o único trabalho que o desgraçado tinha.
Enquanto isso, na varanda, minhas irmãs, Maria O. e eu ficávamos a bater papo, sentados na mureta. Ah, foi ali, leitor alencariano, nas tardes ensolaradas da Vila Góis, que irresistível paixão começou a tomar conta de mim.
Aquelas roçadinhas de Maria O. faziam que eu vivesse a descabelar o palhaço, com mais tesão, até, do que nos tempos de Norma.
Talvez porque não houvesse, como antes, o avassalador sentimento de culpa que me levava a rezar e a pedir mil perdões a Deus depois de cada punhetinha. (A leitura de um tal de Manual da Vida Sexual, feita às escondidas, no telhado, me transformou no Cão.)
Era começo de cálida noite anapolina. Eu me preparei cuidadosamente, após demorado banho. Vesti a melhor roupa. Camisa nova, azul-clarinho, de listras verticais, calça marinho, sapatos lustrados com Nugget.
Namorei-me ao espelho, depois de untar os cabelos com creme, aplicado com vigorosa massagem. Pentear era um ritual. Tempão ali, a arrastar fios com pente Flamengo.
Hoje duas garotinhas diriam: parece até que vai casar. E olha que não me trato com o carinho de antigamente, quando me preparava para o cinema.
O leitor que me acompanha há algum tempo sabe que meu pai dava dinheiro para que eu fosse à zona, mas ia mesmo era ao cinema. (Acredito que o velho estivesse com medo de que me tornasse veado. De qualquer forma, John Wayne e Humphrey Bogart não deixariam.)
Naquela noite estava me sentindo tão nos trinques que resolvi aproveitar melhor de mim. Maria O. conversava com minhas irmãs, no quarto delas.
Sem pedir licença, entrei e me acomodei numa cama ao lado de Maria O. Não demorou, minhas irmãs, como se tivessem combinado, saíram, uma a uma. O leitor já conhece cena parecida. Agarrei a oportunidade. A voz da experiência me gritava.
Fiz o que deveria ter feito com Norma. Arrastei a bunda alguns palmos para perto da jovem. Ela ofegava. Senti o hálito de capim recém-esmagado.
Com insuspeitada ternura, afastei-lhe com a mão uma mecha dos longos cabelos e pousei os lábios em sua têmpora esquerda, fazendo-os deslizar lentamente para beijar as pálpebras que se cerravam.
Dali, os lábios desceram por um lado do narizinho reto e foram-se comprimir, com maciez, muito docemente, nos lábios delazinha...
Quando senti que a primeira de minhas irmãs voltava, levantei-me todo trêmulo, com as pernas bambas, e, tentando disfarçar a ereção, saí do quarto. Fui ao cinema.
Dias depois iríamos a uma chácara. Lá ouviria como nunca, saindo do alto-falante de uma vitrola portátil, a voz de Nelson Ned: “Eu te dei meu amor por um dia / E depois, sem querer, te perdi...”
Mas o bom mesmo foi a cavalgada. Nem José de Alencar para descrever.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 184, 18/2/2001)