quarta-feira, 17 de março de 2010

Hamiltão continua com suas implicâncias. Imagine o tamanho da paciência de quem convive com ele...

                                                                                                                       [Foto: Letícia Coqueiro]


Pipoca mecânica

Alguém, talvez já anunciando fase de condescendência ideológica, afirmou, nas páginas do velho Pasquim, que o conceito de fascismo se tornara elástico.
O articulista – provavelmente Ziraldo – deu como exemplo de “fascismo elástico” o costume de assistir a filmes descascando balinhas.
Realmente. Aquele ruidozinho remexendo nos ouvidos é capaz de tirar a concentração de qualquer alma sensível.
Depois vem o som do duro caramelo a bater em dentes. Em seguida, as chupadelas, as fungadas e os suspiros de prazer – manifestações que eu, por exemplo, só faço sob estímulos mais dignos.
Neguinho que executa esse tipo de sinfonia infernal com um pacote de balas, ainda mais em sala lotada, é realmente irritante.
Mas daí a afirmar que ele é fascista é querer dar muita elasticidade ao que Mussolini, Franco, Stroessner, Salazar, Médici e outros andaram “descascando”.
Todavia, se a gente, tapeando a solidão, se deixa estar diante de uma tela é porque quer sossego.
Ah, sossego. Então – triiim – um celular toca no escurinho. Uma pessoa põe-se a informar onde está, com quem está (não está com ninguém) e o que se passa na tela.
E aí, meu irmão, quem tem vontade de cair no fascismo e sair trucidando é o pobre do coitado que busca a paz refrigerada de uma sala de exibição (cinematográfica).
Dias atrás, lá fui eu, abandonado pelas contingências da vida, assistir a um filme do barulho. Não sabia que ia encontrar barulho maior à minha esquerda.
Já ali no hall do Ritz não sei que número, acometeu-me ligeira vontade de comprar pipoca. Vontade ligeirinha mesmo, pois a insuficiência de grana não permitiu que ela se demorasse mais que o tempo necessário para rápido cálculo.
Atravessei as cortinas e escolhi corretamente um lugar para me aboletar. A escolha correta se faz dividindo o recinto, com os olhos, em três partes. A cadeira ideal fica entre o primeiro terço de fileiras, mais próximo da tela, e o segundo. [O método não se aplica a essas modernas e íngremes salas em shoppings.]
É lugar ideal não somente para apreciar o filme. A área ali não costuma ficar tão cheia de gente como o fundão, ou seja, há menos conversa e bater de queixos.
Mas eis que garotão, daqueles bichos compridos e animados, se senta a duas fileiras da minha. Até aí tudo bem. Só que o danado arregaça a boca de enorme saco de pipoca e se entrega a sôfrega e ruidosa mastigação.
Dava para aguentar. Ele não estava tão perto e, com o início do filme, os pipocares de suas mandíbulas seriam abafados pelos tiroteios.
No entanto, mal a luz se apaga, o infeliz sai de sua fileira, sobe a rampa até a altura em que estou e se põe à minha esquerda, com apenas um assento a nos separar.
E cai de boca e mãos no saco de pipoca. De pipoca.
Fiquei meio para lá do desconfiado. Porra, naquela parte do recinto só havia nós dois. Com tantos lugares, o roedor foi sentar-se logo perto de mim.
O infeliz, enquanto se entupia de milho estourado, gemendo e resfolegando, fazia rápidos comentários e soltava risinhos ao desenrolar de cenas supostamente interessantes ou engraçadas.
Fiquei teso.
Ora, leitor malicioso. O que quero dizer é que, desconfiado, não reagi aos comentários e nem sequer olhei para o lado. Fiquei duro.
Sei lá. Qualquer manifestação poderia parecer convite para o desgraçado empurrar a bunda para a cadeira ao lado da minha e jogar os braços sobre os meus ombros.
Não, não tenho nada contra pessoas mastigarem seus amendoins e pipocas, chuparem suas balinhas e o que mais quiserem. Mas para quê tanto barulho?
Sujeitinho desses corre o risco de, no momento em que estiver chupando os dentes, levar trompaço de democrata macho que se fascistizou.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 91, 4/4/1999)

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