quarta-feira, 31 de março de 2010

Mesmo correndo o risco de ser chato, Hamiltão não tem medo de encarar a besta, e chega a ser oportuno, em momento de “reabilitação”


Na bifurcação da língua

Em 1963 foi publicado um livrinho muito importante chamado A Ignorância ao Alcance de Todos – Cartilha da Analfabetização sem Mestre (Editora Letras e Artes, Rio), do qual tive oportunidade de falar em pelo menos dois textos. E dele pretendo falar mais, e mais.
Na “cartilha”, que é uma espécie de manual de redação, o autor, jornalista Nestor de Holanda, brinca, e assim, brincando, ensina. Ele dá também dicas, faz “algumas recomendações aos novos, aos que se iniciam nas bancas de redação, os focas”, para evitar erros de português.
Há técnica especial que os cursos de jornalismo não ensinam – “cursos que vêm formando excelentes sapateiros, ótimos eletricistas, magníficos otorrinolaringologistas, esplêndidos construtores de banquinhos para elefante de circo se equilibrar no arame”.
Tal técnica partiria de dois princípios: “1º – Substituir a palavra de cuja grafia o redator não tiver certeza; 2º – Substituir a palavra que a revisão não deva conhecer.”
Eu não queria abusar das aspas, mas faço questão de manter o espírito do jornalista, que atualmente é muito mal copiado por comentadores “de imprensa” ou “de português”, os quais nunca mencionam o nome de Holanda (para aparecerem como originais).
Esses carinhas, pedantes, proliferam, aproveitando o fato de pouquíssima gente saber que antes da década de 60 já havia um “Janistraquis”, ou melhor, Iolando.
O primeiro “princípio” seria simples e foi estabelecido para driblar a falta de dicionário em muitas redações, dicionário que serviria “para uma consulta rápida, disfarçada”. Por exemplo, um redator quer informar que alguém levou um tiro no ombro, mas fica na dúvida. Então, pergunta-se a si mesmo, “porque não deverá fazer perguntas a mais ninguém, principalmente se for jornalista diplomado”:
“– Ombro é sem agá, ou é ‘hombro’?”
Já que ele não sabe, “é de supor que ele mesmo não responda”. A solução não seria mudar o ponto em que a bala bateu, e sim substituir a palavra ombro “por ‘enchimento superior da manga do paletó’ ou ‘parte mais alta do membro (esquerdo ou direito) que a obra sublime da natureza bela fez com que se articulasse ao tronco’”.
O segundo princípio, também simples: os redatores “devem evitar certas coisas certas, para que não saiam erradas”, levando em consideração que “os redatores que sabem escrever andam muito desacreditados”, e “os revisores confiam desconfiando”.
Mas atualmente nem todo revisor desconfia, e há certas coisas certas que não podem ser evitadas. Prova disso está, por exemplo, em release que dias atrás chegou à redação da Gazeta.
A notinha é da assessoria de comunicação da Secretaria Estadual da Saúde, que adverte, já no título: “Palmito deve ser fervido por 15 minutos”.
Sabe por que o miolinho de pau em conserva deve ser fervido, ignaro leitor?
Segundo “as autoridades sanitárias”, a medida serviria para “prevenir a ocorrência de casos de bucolismo, doença que nos últimos dois anos apresentou um surto em São Paulo”.
Na época da ditadura militar, muito neguinho quis parecer bucolista para não ser simonalmente apontado como comunista.
O leitor de certa quilometragem deve lembrar-se de canção menor em que um sujeito manifestava desejo de ter uma casa no campo, “com carneirinhos pastando”.
Que medão. Uma casinha no campo... O que o cantoreco queria era não ser confundido e ter que pastar numa celinha do Dops [Departamento de Ordem Política e Social, criado na época em que se engolia uma tal de “educação moral e cívica”...]. Paranoia pura, já que ele não revelava nenhum engajamento “político”, nem sequer do tipo paz-e-amor. E repare que naquela época o que vinha da Bolívia eram ideias, e não palmito.
Para não deixar dúvida quanto à gravidade da bucólica doença, o autor do release repete, e o revisor cochila segunda vez e vai atrás: “... alguns casos de bucolismo foram contraídos devido à ingestão de palmito em conserva, principalmente das marcas bolivianas Lapap, Sol Lunar, Palmeto e Nobre...”
Se o texto não foi revisado é porque provavelmente aquele que vinha desempenhando a ingrata função entrou em férias, para curtir o botulismo de alguma região deste maravilhoso e botúlico Estado.
Não sei. Só sei que, de férias ou não, a orelha do coitado não deixou de queimar, ou melhor, ferver por mais de 15 minutos, já que malhar revisor é delicioso e sutil esporte de mesa de botequim intelectualizado.
Eh vida. Vida boa que me ensina: muita gente não precisa que lhe recomendem a cartilha de Holanda. Afinal...

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 94, 25/4/1999)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Às vezes o autor cruza com a personagem ali nas redondezas da Ladeira do Vento. A aparência continua a mesma: eis a vantagem de ser velho quando jovem


Uma coitada saborosa

feriadão ficou para trás, graças. Que finzão de semana pesado, ó meu. Terrível. Depois de passar a Semana Santa sem bacalhau, pensei que ia malhar com a vara no Sábado de Aleluia.
Não malhei nada. Me deixaram na mão, na própria, pura e simplesmente.
Digamos que, claro, houve uma espécie de malhação. Mas faltou alguma coisa. A coisa. Comecei a desconfiar que Onã era um cara assim meio que triste.
Não, não era triste. Pelo menos não como eu, no feriadão. O danado do Onã tinha o seu bacalhauzinho. O que ele fazia era conceder somente as honras finais à palma da mão.
Mas interrompamos este papo sobre coitus interruptus ou outras incompletudes. Falemos de determinado sábado de aleluia de um amigo.
Quase todos os que o conhecem o chamam de Veím. Eu o chamo pelo nome de batismo, que vai ficar fora desta croniquetazinha desclassificada. 
Conheci Veím em meados da década de 1980, um jovem muito pequeno, macérrimo, de pele enrugada. Na primeira vez em que o vi, no então boteco do Florim, ele estava bebendo, de um só gole, um copo d’água. Água? Aquilo era pinga da pura.
Naquela época, ele emborcava seguidamente vários copos transbordantes, sem tirar sequer uma ruga do lugar. Hoje, quando o vejo tomar uma dose “normal” (a generosa dose goiana), fico preocupado: parece que não anda bem de saúde.
Com sua voz grave, entrecortada pelo risão alegre, Veím me conta de como gostava de fazer o seu sábado de aleluia.
A festa era em torno de galinha em molho que só cachaceiro sabe preparar. E a galinha, para ser gostosa mesmo, tinha que vir de algum quintal das redondezas. O crescimento dela era acompanhado desde a mais tenra “infância” por olhos cobiçosos.
Esse negócio de cobiçar a galinha do próximo...
A coitada era caçada à noite, sem a devida permissão, no terreiro de algum conhecido. Crime altamente premeditado.
Por falar em tal coitada, talvez seja preciso esclarecer: a palavra não é derivada de coito. Portanto, tire da cabeça aquilo de “Vou dar uma coitada”.
A coitada aqui vem de coitar, ou seja, causar coita, pena. Vale esclarecer, ainda, que tal pena não tem nada a ver com a do galináceo surrupiado na noite do Sábado de Aleluia.
Para evitar que a ave abrisse o bico e denunciasse o próprio rapto, ela era executada sumariamente, ali mesmo no quintal. Veím e o parceiro aproximavam-se do poleiro e a “abafavam” com a camisa, enquanto ela, naturalmente, dormia o sono dos sustos.
Aí, torciam o pescoço da (mais uma vez e mais que nunca) coitada. Fugiam sob o alarido dos outros galináceos, mas já tarde demais para eventual resgate.
Foi depois de uma operação dessas que Veím e amigo tentaram depenar uma penosa. Serviço muito mal feito, já que eles estavam excitados, sôfregos, cada qual com a caveira chacoalhando canjebrina.
Para facilitar as coisas para ambos, Veím socou a defunta semidescascada debaixo do braço e marchou, seguido pelo cambaleante parceiro, para um boteco ali mesmo no pedaço. A dissecação e o preparo exigiam mãos sóbrias de mestre.
Uma espécie de receptação. O dono do bar preparou a galinha com capricho e participou, feliz, do banquete. Em troca, serviu pinga à vontade aos amigos.
Veím me aponta o lugar: “A venda era ali e Fulano (o dono) morava nos fundos, onde criava galinhas.”
Como vê, leitor perspicaz, foi um grande sábado de aleluia para o meu amigo. Não poderia ter sido mais saboroso.
O mesmo não posso dizer dos meus sábados, de aleluia ou não. No de Aleluia que passou, por exemplo, não malhei nada. Não abafei nem mesmo galinha daquelas do rabo branco, as que mais dão sopa.
Já pensou, gastronômico leitor, que insuspeito ensopado não daria aquelazinha que trepa no poleiro alheio bem pertinho de você?
Um alheio tão alheio...

(Gazeta de Goiás, n.º 92, 11/4/1999)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Hamiltão continua com suas implicâncias. Imagine o tamanho da paciência de quem convive com ele...

                                                                                                                       [Foto: Letícia Coqueiro]


Pipoca mecânica

Alguém, talvez já anunciando fase de condescendência ideológica, afirmou, nas páginas do velho Pasquim, que o conceito de fascismo se tornara elástico.
O articulista – provavelmente Ziraldo – deu como exemplo de “fascismo elástico” o costume de assistir a filmes descascando balinhas.
Realmente. Aquele ruidozinho remexendo nos ouvidos é capaz de tirar a concentração de qualquer alma sensível.
Depois vem o som do duro caramelo a bater em dentes. Em seguida, as chupadelas, as fungadas e os suspiros de prazer – manifestações que eu, por exemplo, só faço sob estímulos mais dignos.
Neguinho que executa esse tipo de sinfonia infernal com um pacote de balas, ainda mais em sala lotada, é realmente irritante.
Mas daí a afirmar que ele é fascista é querer dar muita elasticidade ao que Mussolini, Franco, Stroessner, Salazar, Médici e outros andaram “descascando”.
Todavia, se a gente, tapeando a solidão, se deixa estar diante de uma tela é porque quer sossego.
Ah, sossego. Então – triiim – um celular toca no escurinho. Uma pessoa põe-se a informar onde está, com quem está (não está com ninguém) e o que se passa na tela.
E aí, meu irmão, quem tem vontade de cair no fascismo e sair trucidando é o pobre do coitado que busca a paz refrigerada de uma sala de exibição (cinematográfica).
Dias atrás, lá fui eu, abandonado pelas contingências da vida, assistir a um filme do barulho. Não sabia que ia encontrar barulho maior à minha esquerda.
Já ali no hall do Ritz não sei que número, acometeu-me ligeira vontade de comprar pipoca. Vontade ligeirinha mesmo, pois a insuficiência de grana não permitiu que ela se demorasse mais que o tempo necessário para rápido cálculo.
Atravessei as cortinas e escolhi corretamente um lugar para me aboletar. A escolha correta se faz dividindo o recinto, com os olhos, em três partes. A cadeira ideal fica entre o primeiro terço de fileiras, mais próximo da tela, e o segundo. [O método não se aplica a essas modernas e íngremes salas em shoppings.]
É lugar ideal não somente para apreciar o filme. A área ali não costuma ficar tão cheia de gente como o fundão, ou seja, há menos conversa e bater de queixos.
Mas eis que garotão, daqueles bichos compridos e animados, se senta a duas fileiras da minha. Até aí tudo bem. Só que o danado arregaça a boca de enorme saco de pipoca e se entrega a sôfrega e ruidosa mastigação.
Dava para aguentar. Ele não estava tão perto e, com o início do filme, os pipocares de suas mandíbulas seriam abafados pelos tiroteios.
No entanto, mal a luz se apaga, o infeliz sai de sua fileira, sobe a rampa até a altura em que estou e se põe à minha esquerda, com apenas um assento a nos separar.
E cai de boca e mãos no saco de pipoca. De pipoca.
Fiquei meio para lá do desconfiado. Porra, naquela parte do recinto só havia nós dois. Com tantos lugares, o roedor foi sentar-se logo perto de mim.
O infeliz, enquanto se entupia de milho estourado, gemendo e resfolegando, fazia rápidos comentários e soltava risinhos ao desenrolar de cenas supostamente interessantes ou engraçadas.
Fiquei teso.
Ora, leitor malicioso. O que quero dizer é que, desconfiado, não reagi aos comentários e nem sequer olhei para o lado. Fiquei duro.
Sei lá. Qualquer manifestação poderia parecer convite para o desgraçado empurrar a bunda para a cadeira ao lado da minha e jogar os braços sobre os meus ombros.
Não, não tenho nada contra pessoas mastigarem seus amendoins e pipocas, chuparem suas balinhas e o que mais quiserem. Mas para quê tanto barulho?
Sujeitinho desses corre o risco de, no momento em que estiver chupando os dentes, levar trompaço de democrata macho que se fascistizou.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 91, 4/4/1999)

quarta-feira, 10 de março de 2010

Ao reproduzir trechos em sua coluna no “Diário da Manhã”, o jornalista Nilson Gomes acrescentou subtítulo: “Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três...”


O teste Paulo Coelho

Meu pai era dono de certas verdades. É claro que nem sempre se podia levá-lo a sério, mas que ele tinha suas filosofias, ah, lá isso tinha.
Quando, por exemplo, ouvia alguém com maledicência, a falar de conceituado membro da sociedade, o velho tacava: “Ora, só porque o coitado deu duas ou três vezes...”
Não vou dizer que concordo com isso. Mas a revolta dele deve ser justa, já que o autoajudador Paulo Coelho confirmou à Folha de S.Paulo, recentemente, o que dissera a repórter espanhol: deu “exatas” três vezes para se testar. [As aspas são pedidas nesta republicação; o autor observa que o exato seria “exatamente”.]
Segundo ele (o bom jornalismo nunca dispensa o “segundo ele”, pois aqui ninguém é besta), segundo ele, não gostou. Agora está credenciado para ajudar o mundo inteiro alquimicamente.
No entanto, teste não quer dizer muita coisa. Eu, por exemplo, já passei até em teste psicotécnico, embora nem saiba que diabo é isso. Só não fiz teste de QI por medo do complexo de burrice.
Também não fiz o teste da farinha, porque sei de minha vida e do que tenho feito.
Se houvesse lei impondo tal teste, muita gente que conheço ia revelar esfíncter mais careca que pneu de fubica.
O leitor, de vasta cultura, deve saber do que falo.
Pega-se farinha bem fina, de preferência farinha do reino, e espalha-se a dita sobre superfície lisa, uniformemente. Depois, tira-se a roupa do testando (meu deus) e fá-lo (meu deus) sentar-se no preparado.
Existe sujeitinho que nem precisaria do teste. Bastava a gente dar uma olhada no fundo da cueca dele. Se aparecesse aquele sinal assemelhado com rastro de pneu de bicicleta [evidentemente pneu novo], o resultado seria “negativo”.
Desse modo, neguinho não precisaria do sofrido e repetido Teste Paulo Coelho.
Não, leitor malicioso, não me venha com essa de pretexto.
Se você acompanha desde o início esta minha jornada nas páginas da Gazeta, deve lembrar-se de Gabiru. Ele não procurou pretexto nenhum. Simplesmente botou a culpa na danada da maconha.
Sucede que a motivação de Paulo Coelho teria sido, digamos, “endógena”. Quis provar a si mesmo que não era (ou era) bicha, embora tenha “confessado” como se a coisa interessasse ao mundo, não informando, porém, se o resultado fora negativo ou positivo.
Do jeito que ele é lido e seguido... O assunto pode dar até obra literária: Na Rombuda Ele Sentou e Chorou. O best-seller viria seguido de outros: Na Rombuda Ele se Empurrou e não Chorou e, por fim, Ele Gozou Sentadinho.
A trilogia do resultado “positivo” poderia ser sintetizada em obra de maturidade, O Alpinista de Vara. Obra de fazer inveja a Umberto Eco.
Oh, não, leitor amante de magias, não estou tentando desqualificar seu autor preferido. É que em certos dias a gente está mesmo é para avacalhar.
Hoje acordei meio atravessado com a vida, profundamente negativista. A primeira coisa que fiz no banheiro foi falar mal de mim diante do espelho. Recomendei-me que me aposentasse como cronista e fosse redigir necrológios para o Diário da Manhã.
O problema é que não passaria no teste (de redação), porque sou daqueles que gostam de falar mal de quem já morreu. “Dr. Fulano de Tal, salafrário que passou a maior parte da vida a malversar dinheiros públicos...”
Poderia, mesmo, fazer mais de um teste e, acatando conselho de alguém bem sintonizado com o viver, mudar o jeito de me expressar. Mas aí teria que renegar a régua e o compasso que me desenharam.
E, como diria o letrista Vinícius de Morais – ao aplicar cantada musical em dama do pedaço dele –, não se vive mais do que uma vez.
A vida não é teste. Muito menos do tipo que possa ser repetido duas vezes sem maiores danos... Bem.
Se meu pai era dono de certas sabedorias, minha mãe também tinha as dela. Lembro-me de quando eu dava minhas malinadas. A sábia senhora advertia, sempre com aquela “fraqueza” de querer dar mais uma oportunidade: “Nas três o Diabo fez.”
Não havia mago que desfizesse esse princípio eterno.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 90, 28/3/1999)