domingo, 13 de março de 2016

Em conversa casual com um amigo, a memória de Hamiltão se incendeia, e ele se lembra de outra conversa (aparentemente) casual

                                                                                                                   Carlos Sena                                                                                                                                                            
Michael Douglas

O leitor sabe, esse leitor desgraçadamente fiel e cheio de cobranças, que sou dado a certas crises depressivas, coisa que a bombinha da asma não resolve.
Aí, depois de encher o peito de ar (na medida do possível) e clamar pelos deuses do arroubo e da coragem, boto um pé, um pequeno pé, para além do portão de casa. E ando, e ambos os pés vão crescendo, crescendo, crescendo, até o boteco mais próximo.
Minha sorte é ter filhas sensíveis, que compreendem meu desmazelo, minha “preguiça”, e dizem: “Papito, se você quiser a gente vai aí ajudar na casa.” Ajudar na casa quer dizer: vamos limpar um pouco dessa imundície, e o resto fica por sua conta. Meu problema é o resto, leitor, é o resto.
Filhas... Como tê-las e não amá-las? Houve quem me perguntasse se eu não queria um filho homem. Ah, não. Só de pensar numa cópia mais mal-ajambrado do que sou fico com vontade de entrar em pânico.
Foi assim que certa vez fui parar à solitária mesa da calçada do Bar do Warllen, onde passei a empunhar garbosamente meio copo de rabo de galo e a expirar o fumo de um paraguaio qualquer de vinte centavos a unidade. E estava lá, chamando mais uma crise de asma, quando me aparece o Pato Donald.
Não, leitor coxinha, não. Não confundo meu curvilíneo bairro com uma Disneylândia. É que o cara... Bem.
Sou implicante, sou mesmo. Ele tinha uma namorada que não deveria ser dele. E deveria ser de quem, então? Do alto desta minha petulância, eu achava que ela tinha mais jeito para mim.
E aí implicava.
E éramos amigos. Ainda somos. Pelo menos, há cumprimentos efusivos quando às vezes nos encontramos no sempre superlotado ônibus da concessionária de serviço público.
A esta altura, tenho que botar minha mãe no meio desta conversa. Em tardes sem que fazer, ficávamos os dois diante da televisão preto e branco a ver filmes e desenhos animados.
Os filmes, geralmente (quando não era episódio da série MacGyver), tinham como personagens centrais crianças inteligentíssimas. Mãe dizia não suportar filme com crianças e cachorros. Mas suportava, para me fazer companhia.
É daí que me ocorreu associar meu amigo ao pato do desenho animado. Não propriamente ao pato, mas à voz do dublador.
Por falar em dublador... Não, não mudemos de assunto.
Meu amigo era feirante, acordava de madrugada para providenciar a vida. A gente, os três, se encontrava sempre comecinho de noite.
O casal, alegre, chegava com os cabelos ainda úmidos do banho pós-foda. Mas antes, lá sentadão, eu via quando eles assomavam na esquina, e ficava a observar a figura esbelta da moça, unicamente a figura da moça, até que puxavam cadeira.
É assim. Nem preciso dizer mais nada.
Uma noitinha ela chegou, cabelos secos, e informou que o companheiro tinha ido à Ceasa tratar de um frete, ou sei lá o quê. (Algumas vezes me sinto incomodado com o leitor que gosta de detalhes.)
Bebemos, conversamos. E conversamos e bebemos, até que ele apontou na esquina. Eu disse: “Lá vem o pato rouco.”
Ela gargalhou. O riso tão belo, tão cristalino, como se viesse ecoando de algum romance de Zé de Alencar, possivelmente Sonhos d’Ouro.
Onde é que estávamos mesmo? Ah, sim, no Bar do Warllen.
O amigo chegou de repente, surpreendentemente. Não precisava das madrugadas, senão para dormir. Agora mexia com confecção na Feira Hippie, que funciona aos domingos.
Falamos abobrinhas, algo que ele não tinha mais que vender. Perguntou como estava o Diário da Manhã, onde havia muito tempo eu não trabalhava mais. Mesmo assim eu disse: “Uma bosta.” E ele: “Então quer dizer que é a mesma merda.”
Quase naufragados no silêncio, ficamos a nos encarar.
“Tem visto a Fulana?”, quis saber. Respondi que fazia anos que não a via. E ele, meio enigmático (foi assim que interpretei suposta investida, infantil leitor): “Sabe que ela tem um filho?” Não, eu não sabia.
Enquanto ele se referia com carinho à antiga companheira, e com certa reserva ao menino, fiquei sem ter o que comentar. Por isso indaguei: “Como ele se chama?”
“Michael Douglas.”
Meio arriado para dentro de mim, intentei calcular a distância no tempo. Para isso, tinha que saber a idade do estrupício. O amigo informou. Achei que ele estava tão angustiado quanto eu.
O desgraçado bem que podia ser meu filho. Michael Douglas... Mas não, não.
Onde diabos deixei a bombinha da asma?

Hamilton Carvalho
(13/3/2016)

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Hamiltão rompe a preguiça depois de longo tempo. Um texto apenas para aquecimento do que virá, segundo promete o salafrário


PF à la carte

A proliferação dos chamados restaurantes self-service acaba com a minha beleza. A primeira vez que peguei um desses foi em São Paulo, no intervalo de reunião numa casa velha de onde só podíamos sair (da mesma forma que havíamos entrado) aos poucos, espaçadamente, para não chamar a atenção do público em geral e da polícia em particular. Era novidade, e eu pude escolher as leguminosas, com os dois companheiros com quem havia deixado a casa velha. Mas a minha paixão pelo prato-feito é imorredoura, sentimentalíssimo leitor comedor de refeições ligeiras. O prato já vem prontinho da cozinha, muitas vezes passando por um buraco em meia-lua na parede.
Naqueles idos não havia balança nos restaurantes, humilhante maquininha com tara e tudo em que se assenta um prato descomunal, com o qual se procura criar a ilusão de que a comida é apenas um montinho razoável. Hoje existem também os self-services “à vontade”, sem balança, quando o neguinho pode esgoelar-se com o que der conta de feijão, arroz, abóbora e (nem sempre no à-vontade, quando há funcionário para controlar a gana do freguês) muxiba, em pratos pirex de reduzido tamanho.
Minha paixão pelo PF é imorredoura, embora comer não seja das coisas de que mais gosto de fazer. Quer dizer... Bem, não brinquemos com acepções. Estou tentando sustentar um papo sério com o leitor.
É verdade que meu peito nostálgico (e asmático) se aperta quando me vêm à memória as poucas refeições à la carte que fiz, a viajar de caminhão com meu pai ou depois de conduzir garbosamente a raríssima namorada a restaurante de luz dourada, quando o pagamento de salário, mais raro ainda, saía. (Meu pai pedia os pratos sem olhar carta nenhuma, pois não havia isso em pontos de motorista de caminhão, mas eram – condescendamos, afetuoso leitor – refeições à la carte.)
Penso que devo pausar um instante para explicar que PF significa prato feito ou, da forma de minha preferência, prato-feito, com hífen. (Talvez eu devesse grafar P-F, para diferenciar da famigerada.) Explico por que explico: não há muito, coleguinha de boas origens (credo) me pediu para explicar que coisa era aquela que eu dizia comer. Vai ver achava que era patê foie-gras, ou coisa assim.
Sei que o leitor não tem apetite por detalhes. Voltemos.
O devorador de pratos-feitos deveria ser pessoa humilde, pouco exigente e tal. Geralmente, sim. Mas há os enjoados, os chatos, que ficam especificando ao atarantado servente de estabelecimento cheio como querem o prato. “Pouco feijão, mais arroz, um caldinho, só um caldinho de carne cozida, e um bife bem-passado no canto, sem encostar no feijão.” O garçom já corre – atarantado – para o buraco em meia-lua antes que esqueça as especificações quando o freguês grita da mesa: “Sem cebola.” Já vi isso acontecer em mesa com cinco funcionários de loja das redondezas, cada um deles com especificações do PF, azoretando a pobre da moça que os atendia.
Nessas horas me dá vontade de escoicear: “Vai procurar restaurante de grã-fino, porra.” (Versão menos chula de “Vai procurar uma rola”.) Só que preciso de muita calma para comer.
A rigor, se é que existe alguma coisa a rigor, o PF é à la carte. O cardápio está logo à entrada da casa de pasto, a giz, em pequeno quadro-negro:

Hoje, dois pratos:
– Bife de fígado ou de vaca ou carne cozida
– Dobradinha

Feijão e arroz estão subentendidos para o prato da escolha, a menos que o feijão seja tropeiro e o arroz seja com pequi. Já sentado, o cliente informa se quer salada (alface com tomate) e verdura (jiló ou abóbora, por exemplo). Se pedir ovo, são mais 50 centavos.
Mas achar um PF está uma dificuldade, leitor a esta altura empanzinado, depois do advento e da subsequente proliferação dos self-services. Isso até no mundo da grã-finagem, suponho.
Não é fácil para mim pegar fila atrás de gente que está no intervalo de alguma convenção, crachás enormes no pescoço, a salivar à vista das vasilhas com comida mais fria que morna (quiçá com asas de mosca ou pernas de barata ou fios de cabelo), sem parar de falar, a jogar perdigotos juntamente com o sotaque. Não dá.
Ah, não é só. Para esculhambar de vez, inventaram o PF de self-service de balança. Um funcionário da casa vai à frente do freguês atirando bruscamente coisas no prato à medida que avançam diante da bancada com as vasilhonas. O rango sai mais barato, pois não é colocado na balança. Há um porém. Você tem de escolher: abobrinha ou macarrão? carne ou frango? Sem churrasco, cuja trempe fica lá na ponta e é supervisionada por rigoroso funcionário, possivelmente o genro do dono do restaurante.

Hamilton Carvalho
(23/11/2015)

sábado, 12 de abril de 2014

Hamiltão em hora absurda. Mas outra vez “de cabeça leve”


Weligton do salão

Fui à barbearia.
Sim, leitor de boa vontade, é necessário que você vá ao texto anterior, para relembrar ou, caso não o tenha lido, tomar conhecimento. É claro que eu poderia “colar” aqui o trecho que interessa. Mas o que me irrita mais do que repetir e repetir é ter condescendência para com a preguiça do leitor. Ah, sim, talvez me irrite mais ainda a preguiça de autor que faz remissão a links para que os leitores se virem, em vez de encarar o trabalho dele historiando um pouco. Só que isso não interessa, pô.
Aliás, nem sei mesmo o que interessa.
Vivo em meio a contrassensos. Mais um não vai acabar com o que me resta de humanidade. “Eu poderia dizer que fui à barbearia se a pessoa que me desbastou as cinéreas madeixas fosse do sexo masculino, o barbeiro”, escrevi no texto que acima – inutilmente, vejo bem – sugeri ao leitor.
Há pouco, dias atrás, semana que passa, fui a uma barbearia que se chama Weligton do Salão. Imagine o fiel leitor se o nome do salão de beleza da Eliane fosse Eliane da Barbearia. Isso não pegaria bem para muita gente de bem. Nem se fosse Eliane do Salão.
Pauso-me, diria (não tenho certeza) Fernando Pessoa. O olhar de lince do leitor me incomoda, embora eu não saiba que diabo é lince. A barbearia que, num repentão, surge na rota do meu ônibus (que aliás pertence a uma concessionária do serviço público), um pouquinho antes do ponto em que desço a caminho de casa, representou a resposta a uma emergência, e não uma traição à minha barbeira. Se bem que Welington (com ene, como está no certificado na parede, no alto do espelho) tem uma mão boa, profissionalmente falando.
Sim, pauso-me. O nome do rapaz está grafado na fachada da modesta sala do jeito que o reproduzo no título desta crônica, mas no certificado de conclusão do curso de cabeleireiro – ministrado por meio de convênio entre governo federal e prefeitura – está com um ene entre o ele e o gê, como discretamente expliquei entre parênteses. Aí é que entra o tal olhar de lince do leitor. “E se na certidão de nascimento do moço ‘Welington’ for ‘Wellington’, com dois eles?”, insistiria um arrogante qualquer. Se me coubesse escolher os leitores, não escolheria gente tão infeliz.
Acho-me no direito de renovar o meu pausar-me para outro esclarecimento, já que o mundo das minudências me sufoca.
Disse, no já chatíssimo texto anterior, que ia ao barbeiro “a cada dois ou três meses”. Não é uma mentira, é uma imprecisão. Os órgãos de imprensa em que tenho trabalhado não costumam pagar os funcionários em prazo tão curto. O corte de cabelo, em qualquer lugar, é “à vista”, embora, no desespero e recorrendo a este meu charme infantil, por duas vezes cavei um “fiado”.
Não, não foi traição. Desde que a longilínea morena me aparou a guedelha pela primeira vez, mantive-me fiel à tesoura dela. O devasso leitor concluiria que essa lealdade se estendia às longas pernas morenas dela, o que não é verdade, mesmo que eu admita que tal verdade não me obrigue a nenhum juramento.
Mencionei o cheiro a milho verde que emanava do vulto que volteava a cadeira de barbeiro em que me sentava. Rejeito, veementemente, a observação de minha colega de trabalho que tentou desqualificar aquele aroma vegetal quando exalado por corpo humano. Dispenso o leitor de recorrer ao (meu deus) texto anterior.
Não mencionei o ventre, aquele ventre macio e, digamos, leve que me roçava os braços arrepiados que se apoiavam nos braços da cadeira. Não mencionei, nem devo, aquela sensação (apenas sensação) de coisa grossa que me crescia entre as coxas. A minha alma computou tudo isso como a manifestação poética de um momento novo. E o ofegar que me chegava à nuca era algo imaterial, ilusão táctil talvez, ou talvez o zéfiro do cair da tarde.
A última vez, estes meses atrás, em que estive no salão dela, as coisas não decorreram exatamente assim. Ela exibiu um pelo retorcido de 12 centímetros que me arrancara da orelha esquerda, o qual estivera escondido no desgrenhado geral da cabeça. Disse algo sobre o lobisomem da idade, e quase elabora um discurso dialético-existencial com aquilo na mão, voltada para duas garotas que aguardavam atendimento, enquanto eu a observava pelo espelho.
A esta altura o leitor se pergunta se foi mesmo por causa de uma emergência que procurei a barbearia do Welington. Foi. E fico por aqui, fazendo força para não voltar ao assunto.
Contrassensos, ah, contrassensos.
O nome do estabelecimento bem que poderia ser Salão do Weligton, mas não me compete pensar pelos outros. Pauso no que penso, diria Fernando Pessoa (ou outro poeta metido a bacana).

Hamilton Carvalho

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Não há novidade no front, entre um ano e outro. O mesmo labirinto, a mesma linguagem arrevesada

                                                                                                    [Imagem de master1305 no Freepik]



De cabeça leve


Vai que eu esteja assim mesmo no ano-novo, o otimismo imbecil a se derramar pelo canto dos lábios junto com a sidra Cereser morna, furta-cor à luz esbodegada do puteiro de Tia Alzira. Vai que eu tenha emprego – ainda que fodido e mal remunerado como sempre – e possa “socializar” um 13.º com os meus pinguços. Assim: de cabeça leve feito espanador de diarista canadense ou mão de amigos invisíveis.
Mas não é o caso, no meu caso. E, se fosse, seria suspeito.
Fui ao salão de beleza. Eu poderia dizer que fui à barbearia se a pessoa que me desbastou as cinéreas madeixas fosse do sexo masculino, o barbeiro. Se fosse para me repetir, poderia explicar ao leitor por que de uns tempos para cá tenho minha preferência voltada para cabeleireiras, que não me fazem a barba, da mesma forma que não me faziam a barba os barbeiros de antigamente, os gentis rapazes de jaleco branco do Salão e Barbearia Charm, Rua 6, Centro, frequentado exclusivamente por homens. O “Salão” na placa indicava que havia manicure (sexo feminino) à disposição dos executivos (hoje CEOs).
Não sei. Acho que nos tempos que correm ninguém mais se barbeia em barbearia. Talvez Carlinhos Cachoeira, sei lá. Mas também ninguém mais envia pajem a determinado profissional com a missão de entregar uma cabeleira para ser empoada. Ou será que ainda? Não sei.
Ora, etimológico leitor, vamos lá à origem perdida das expressões, ou vamos ficar aqui a conversar sem compromisso, como de costume, até o fim dos tempos ou apenas até o fim deste ano?
Pois é, então. O salão é uma pequena sala (eh idioma) de porta única enviesada para a praça da feira de domingo. Ao longo da parede fronteira à dos espelhos, um banco para bundas de espera. Entre ele e a bancada com suas escovas e cremes, duas cadeiras de barbeiro – humildes, acanhadas, duras. Não são Ferrante.
O patético é que são duas cadeiras. A mulher trabalha só, provavelmente por não ter como pagar alguém para ajudá-la. Mas a outra cadeira está lá, de prontidão, o tipo de prontidão que sempre reservamos para o lugar ao lado, o da esperança.
O leitor me conhece, e desconfia.
De manso e de fino, desço à prosa rasteira para contar de minha primeira vez com aquela mulher, ela como cabeleireira, eu como portador da própria cabeleira.
Pensando melhor, não vou me estender sobre isso. Digo apenas que relutei, não queria, não tinha coragem de cruzar aqueles umbrais e me deixar tosar por aquelas mãos que estavam sempre a folhear revistas por não haver clientes com que se ocupar.
Quando me jogava Ladeira do Vento abaixo e amarrava o burro naquelas paragens era para tomar cachaça no bar do Lucimar – nome aliás de namorada que tive nos longínquos tempos amazônicos – ou para comprar quiabo em ressacadas manhãs de domingo. E, claro, a cada dois ou três meses para que me aparassem a guedelha na barbearia que fica loguinho depois do bar.
Ao me arredondar na curva e avistar bicicletas miúdas deitadas na calçada, à porta da barbearia, era acometido de desânimo e – por que não? – raiva. Estava ali uma espécie de gangue de adolescentes cujos cabelos, parece, cresciam ao mesmo tempo e no mesmo ritmo.
Os barbeiros, dois jovens irmãos compositores de sertanejo, se deliciavam com aquela turma, e em cada cabeça cada um deles se demorava a seguir minuciosas instruções. Falavam dos mistérios do show business ou interrompiam o trabalho para trautear trechos da própria lavra, usando o pente à guisa de batuta. Aguardando a vez, havia sempre um garoto a dedilhar o violão que tinha lugar reservado na mesinha de intocadas revistas.
E os bocós, ah, esperávamos.
A salinha do salão ao lado ficava sem nenhum cliente. A dona, longilínea morena, pernas cruzadas, folheava uma revista.
Lucimar é um desses comerciantes que se cansaram do medo de assalto. Transformou o bar em distribuidora de bebidas, o que significa que passou a atender a freguesia por telefone ou através das grades que mandou instalar no estabelecimento. Num começo de tarde de sábado estava do lado de fora, no passeio, certamente entediado por não se sacudir ao longo de um balcão disputado por gente como eu.
Era inevitável que ele me retivesse para além dos cumprimentos, senti logo. Ao perceber o olhar de desconforto estético que me enquadrava dos ombros para cima, tentei como que uma justificativa: “Tô indo cortar o cabelo.” Ele, meio beicinho, mostrando um rumo qualquer: “Então vai.” Ficou a me observar enquanto eu caminhava pela calçada irregular.
Passei pelo salão da cabeleireira sem sequer olhar para dentro, para onde havia moreno par de pernas cruzadas. Eu estava esmagado pela quantidade de bicicletas miúdas deitadas alguns passos adiante.
Não, não me submeteria àquilo.
Retrocedi, sem pressa e sem ânimo. Mirei o salãozinho exatamente no momento em que a mulher resolveu levantar o rosto das páginas enfastiadas. Na maldita calçada irregular, tropecei em direção ao comerciante, que ainda me observava. “Tem muita gente, volto depois”, expliquei.
“Ué, cara, e ela?”, o amigo apontou. “Ela também é barbeira, cara.” Ante parva hesitação, praticamente me empurra: “Ela corta bem; vai lá.” Fui.
Na segunda-feira a colega de trabalho que se sentava do lado disse, para me aliviar das brincadeiras que os demais faziam a respeito deste coco nordestino: “Você ficou bem com esse corte.” Presumo que eu estivesse com o ar embevecido de poeta quando murmurei: “Ela tem um cheirinho de milho verde.”
“Quem?”, empinou-se a colega. Falei da barbeira. “Credo”, fez a moça, repentinamente ríspida. “Então essa mulher é fedida.”
É quando me sinto só, feio e enrugado feito passarinho que rompe a casca do ovo e sai para o frio cá de fora, sem a proteção de penas ou de asas maternas.
Não era assim que pretendia terminar a crônica, nem começar o calendário. Estiquei o texto sem dizer o que tinha em mente e faço a abordagem do ano como quem salta numa canoa. Prometo voltar ao assunto. Vai que acerte na veia e tenha motivo de brindar com o leitor, cabelo cortado, cabeça leve, à luz do puteiro de Tia Alzira ou, quem sabe, de novos tempos.

Hamilton Carvalho
(31/12/2013-1.º/1/2014)

segunda-feira, 11 de março de 2013

Há lembranças das quais não se pode – e não se quer – fugir. É a lição de hoje do brilhante cronista

                                                                                                        [Plein Soleil/Divulgação]


Alain, o galã

A asma me traz sempre a lembrança da professora de francês, mais exatamente quando passo a sentir o efeito do medicamento. O espírito parece que paira acima do corpo macerado pela crise que o deixa, e isso é normal. E me entrego à doce maconha do momento.
O que não é normal, prezado leitor, é que hoje eu me lembre de Alain, figura protuberante que contrasta de forma chocante com a da professorinha da Escola Normal. O fato se explica, no entanto, a partir de conversa que tive com um amigo num desses bate-papos via internet. Falávamos do nosso trabalho de tempos atrás, tempos dificílimos de salários em atraso.
Na conversa, grafei “Alaim” ao me referir a um colega. O outro, lá do seu teclado, escreveu “Alain”.
Foi então que pensei em francês, e quando penso em francês penso na professora, que me ensinou (não sei se ela estava certa) que a pronúncia de Alain é alã. Portanto, o meu amigo Carlos Sena estava montado na razão ao me corrigir. O nosso Alain, embora a pronúncia do nome dele seja alã-in, carrega homenagem ao galã do cinema francês Alain Delon.
O leitor cai para o deboche, sei. Deboche, aliás, é galicismo, vem do francês débauche.
Para ser rigoroso neste fragmento de memória, devo dizer que não era propriamente sobre a situação difícil por que passávamos no jornal (e o jornal à época ia bem) que me transcorria o papo com o amigo Sena. (O meu francês para por aqui; eu não saberia dizer se “Sena” remete ao rio que atravessa Paris, la Seine.)
“Ô”, interpelei mal começamos a teclar, “tá comendo alguém por aí?” E parti logo para o lamento, bloqueando o possível meio otimismo que se delinearia na tela em consoantes e vogais só pequenas. “Desempregado, miséria desgramada, há muito não sei o que é boceta.” Assim mesmo, depravadíssimo leitor: eu previsível como de costume para os meus conhecedores.
Alain era entregador de jornal. Jamais compreendi a necessidade que tinha a empresa, que ia bem, com carros próprios estacionados no térreo da sede e no pátio da gráfica (própria), de contratar um operador de carrinho de mão, um veículo de tamanho que contrariava à larga o diminutivo, empurrado desde a madrugada, no sereno, e rodando boa parte do dia debaixo do sol arregalado de Goiânia.
Era figura cuja presença não se podia ignorar. Não apenas porque protuberante, como ressaltei acima.
Sim, entendo que o termo “protuberante” é inadequado (e insuficiente) para descrever uma pessoa. No início, minha intenção era empregar “proeminente” – também inadequado, vá lá –, mas, como me expresso, por hábito, com a mente voltada para quem lê, optei pelo consignado na ouverture. Quis evitar que o leitor, que pode até dominar com abuso o idioma de Marcel Proust, confundisse proeminente com preeminente.
Aquele vasto moço, 40 anos, por aí, fedia. Banho para ele era coisa de gente metida a besta. Para ter uma noção, pense você no cheiro daquele seu amigo que não há muito retornou da França, depois de profícuo período de estudo sociológico na Sorbonne. Não se pode ignorar tal pessoa.
Nem sempre Alain aparecia na redação. Geralmente fazia isso para acompanhar – sem convite – o dono do jornal quando, à cata de verba publicitária, o big boss (não é expressão francesa, leitor) levava algum agente público para conhecer as instalações e os destacados jornalistas do diário.
A despeito de não ter sequer o benefício da rima, Alain, à sua maneira rude e fedorenta, era também um galã, ainda que feio e suarento. Tinha o sol por testemunha do trabalho árduo a que se dedicava.
Fedia.
Sena teclou gargalhada. Eu falava da falta de grana para sair, tomar cerveja e pegar fêmea mesmo pouco exigente como as que Alain costumava traçar. Lembrei da vez em que o entregador seguiu o patrão até a redação, baixou o carão por trás dele, até quase tocar-lhe o ombro, e intimou: “Me dá dez reais aí.”
Pretendia um vale, um “adiantamento” do salário que já passava do quarto mês de atrasamento, embora a produção do jornal continuasse ininterrupta.
O dono virou-se subitamente, fingindo susto, a jogar para o alto a careca arrogante: “Dez reais pra quê?”
“Tô com necessidade de foder”, justificou-se Alain, em sua candura.
Com todo o patronal direito, o interrogatório prosseguiu. “Mas você quer comer mulher de dez reais?” Agora o espanto era real, ante a miudeza da quantia. O funcionário sentiu-se na obrigação de explicar, tímido de repente: “Não; é que eu queria reservar cinco pra cerveja.”
Eu me vejo, sempre, ainda a compartilhar algo com a professorinha: a asma com que arfava o seu francês. Ela me salvou da desmoralização da doença.
Por sinal, Proust também era asmático.

Hamilton Carvalho

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Hamiltão, aqui, demonstra não ambicionar largos voos. Anda preocupado com o preço da passagem no transporte coletivo terrestre


A turbulência dos gases

Hoje, meio caidão para o deprimido, pensei em jogar-me na Ladeira do Vento e desentortar-me na transversal que leva ao Bar do Warllen. Mas me ocorreu este encontro com o leitor, de quem ultimamente me vejo a esquivar. É bom chegar aqui, é menos deprimente que dívida de boteco.
Mesmo assim era preciso assunto, e o que bateu neste espírito conturbado me fez hesitar. Veio de uma notícia: “Cientistas concluem que soltar gases durante viagem de avião faz bem”.
Ora, tema correlato me apareceu dias atrás, quando soube que povo laborioso se preparava para lançar no mercado um tipo de calcinha (ou cueca, ou os dois) à prova de peido, ou melhor, que filtra os odores característicos da flatulência. Descartei o assunto.
É que alguém havia chamado a atenção para o meu descambar para o escatológico (embora, no presente caso, não seja bem assim, pois peido só pode ser devidamente dimensionado a partir de questões socioculturais, além, é claro, dos aspectos fisiológicos).
Busquei confirmar o teor do alerta. Não fiquei muito convencido de minha suposta escatologia com base apenas em textos como “Curva de rio”, “Zero-a-Zero”, “Líquido e certo” e os que deixei de escrever em continuação a cada um deles.
Peço ao leitor que espere um pouco.
Ao repassar sob os olhos os últimos textos aqui incluídos, dei com “Miriã”, sobre uma garota que conheci “no bar do Uárlen”. Se o pressuroso leitor erguer a vista até a cabeça desta olorosa crônica, verá Warllen, com dáblio e dois eles. É que ontem, a caminho da farmácia, vi que o meu amigo botequineiro mandara colocar vistosa placa informativa na fachada do estabelecimento, marcando, definitivamente, a existência de uma entidade de respeito. Por isso, agora, o bê maiúsculo do bar.
Sim, de volta. Especificamente quanto a peido, não precisei pesquisar para saber que já escrevera texto em que toco na gasosa matéria, porque está no comecinho de Vida Cambaia (“Que medicina legal!”) e envolve, como este, o prestígio da ciência.
O que me deixa encafifado na reportagem de hoje é a observação a respeito do peido feminino. Segundo “algumas das mentes mais brilhantes da área”, sob a coordenação do gastroenterologista dinamarquês Jacob Rosenberg, o resultado do estudo “foi uma profunda revisão da literatura científica sobre flatulência, olhando para questões sobre por que os gases das mulheres têm cheiro pior que os dos homens”.
É, realmente, algo profundo, só pode. Isto porque sopra no mesmo rumo de conclusões publicadas em 1973 por um mestre da Universidade Católica de Goiás (hoje pontifícia) em livro intitulado Aulas de Medicina Legal. Ao discorrer sobre causas da impotência sexual masculina, o professor Benedito Soares de Camargo Júnior enumerou, entre outras pérolas de brilho científico:
“... um pequeno travesseiro, sujo e fétido, que o marido conserva há vinte e seis anos; uma boneca de porcelana que deveria dormir entre o casal; a presença da mãe ou irmã mais velha no quarto do casal na noite de núpcias; a luz acesa no quarto; o toco de cigarro; a halitose e a desidrose (hidrose) e, finalmente, duzentos flatos sulfídricos todas as noites.”
Sempre solidário com a mulher, a ponto de peitar a ciência, ponderei se a causa da impotência não estaria no fato de o homem passar as noites contando peidos em vez de se dedicar aos ardores da paixão.
Acredito que voltarei ao assunto. A esta altura, pergunto-me se não seria mesmo o caso de dar uma chegadinha ao Bar do Warllen.

Hamilton Carvalho

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O autor jamais, jamais deveria queixar-se de ser incompreendido



Curva de rio

O próspero negócio durou menos de uma semana.
O mais velho de oito irmãos quis tirar um deles “da lama” e resolveu financiar o empreendimento. Alugou a sala pegada ao bar do Tiãozinho, ponto bom, bem na esquina em que termina (ou começa; isso depende de onde se parte) a feira noturna das quintas-feiras, para a instalação de um comércio de frutas e legumes.
Ah, a feira já foi muito melhor. Dobrava a esquina e tomava toda a frente da venda de Tião, cuja área externa se enchia de mesas (e cadeiras, claro) e era point de meninas shortinhos meia-bunda, tudo muito iluminado pelas lâmpadas instaladas pelos feirantes. (Mataram um cara ali, a tiros, a cinco metros de mim.)
Atualmente as barracas sobem (ou descem) a avenida esgarçadamente, mal atingindo a esquina. No entanto, a feira ainda é interessante, e de vez em quando me permito pegar uma frutinha para comer em casa.
A presença dos oito irmãos (todos baixinhos) tornou-se um evento naquela ponta de feira, embora nem sempre se juntassem ao mesmo tempo. Em torno deles (Os Paquitos, como foram cognominados pelo senhorio, Tião) formou-se uma verdadeira catrevage, expressão que, sem dúvida, minha mãe empregaria nesse caso.
“Isso aí”, fazia Tião empurrando a mão com desprezo em direção à esquina, “isso aí virou uma curva de rio, uma tranqueira onde para tudo quanto é bicho morto: peixe, galinha, boi...” Ele se referia, naturalmente, aos frequentadores do verdurão, nome que se dá em Goiás a esse tipo de quitanda.
Um dos frequentadores – que por ali permaneceu mesmo depois da falência do negócio – viria a morrer, repentinamente, recostado no ponto de ônibus da pequena rua. Ih, mas não é esse o caminho que devo seguir. Queria só me referir à vez em que ele usou a privada do bar do Tião, literalmente... Não, não seria esse o caminho.
Do Zero-a-Zero o relutante leitor se lembra, especialmente pelo fato de reclamar de Tiãozinho por não colocar papel higiênico no banheiro.
Nos áureos tempos da feira, quando todas as mesas do bar ficavam ocupadas e a área fervilhava de lindas garotas, certa vez fiz o que raramente fazia naquele lugar: fui providenciar uma mijada. Entrei no minúsculo banheiro e, ao fechar a porta, divisei o cesto de papéis perto da dobradiça.
Não vi papel no cesto. Vi um pano cagado, um pano azul, de um azul desbotado: uma calcinha. Fiquei logo a imaginar a qual daquelas beldades lá de fora a intimíssima peça feminina pertencera. Coisa de tarado, acho.
Há um bar no centro de Goiânia em que o banheiro é mantido trancado. Se precisa responder a algum imperativo da natureza, o freguês tem que pedir a chave ao dono. O chaveiro é um enorme pedaço de pau. No ato solene da entrega daquela espécie de troféu, o botequeiro adverte: “É só pra mijar, cagar não.” Não sei o que ele disse ao passar a chave a uma namorada que levei para tomar umas cervejinhas no conceituado estabelecimento. Não tive coragem de perguntar a ela.
Gente implicante é o que não falta. Por exemplo: a faxineira de um dos jornais em que trabalhei. “Homem é tudo porco”, vivia a repetir.
Havia 16 banheiros no prédio. Ela trancou todos, menos um. E isso, leitor abismado, para toda a equipe de um jornal diário. As mulheres se sublevaram. Com muito custo, ela fez a concessão de abrir mais um. O dos homens ficava no térreo, na garagem.
A ranzinza faxineira reclamava e reclamava. “Toda hora tenho que ficar limpando a sujeira desse povo, não aguento mais.” Ela tomou de ódio visceral (e bota vísceras nisso) contra o vigia noturno, rapaz tímido que raramente falava, quando, ao presenciar uma dessas cenas, disse, bem baixinho: “Mas, dona Teresa, a senhora está aqui é pra isso mesmo.”
(Não me lembro do nome da mulher. Fica Teresa, para efeito dramático.)
Antes, apenas um banheiro liberado, o vaso se entupiu. Foi preciso chamar um bombeiro, que, depois de muito trabalho, removeu o obstáculo: um ovo. A culpa continuou dos homens.
A faxineira se exasperou de vez quando um rebelde pichou todas as paredes desse mesmo banheiro. A frase mais expressiva era: “Me cago para dona Teresa”. A tinta usada pelo misterioso manifestante foi a própria bosta.
Como eu dizia, o promissor negócio da curva de rio não durou uma semana.

Hamilton Carvalho