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De cabeça leve
Vai que eu esteja assim mesmo no ano-novo, o
otimismo imbecil a se derramar pelo canto dos lábios junto com a sidra
Cereser morna, furta-cor à luz esbodegada do puteiro de Tia Alzira. Vai que eu tenha
emprego – ainda que fodido e mal remunerado como sempre – e possa “socializar” um
13.º com os meus pinguços. Assim: de cabeça leve feito espanador de diarista
canadense ou mão de amigos invisíveis.
Mas não é o caso, no meu caso. E, se fosse,
seria suspeito.
Fui ao salão de beleza. Eu poderia dizer que
fui à barbearia se a pessoa que me desbastou as cinéreas madeixas fosse do sexo
masculino, o barbeiro. Se fosse para me repetir, poderia explicar ao leitor por
que de uns tempos para cá tenho minha preferência voltada para cabeleireiras,
que não me fazem a barba, da mesma forma que não me faziam a barba os barbeiros
de antigamente, os gentis rapazes de jaleco branco do Salão e Barbearia Charm,
Rua 6, Centro, frequentado exclusivamente por homens. O “Salão” na placa
indicava que havia manicure (sexo feminino) à disposição dos executivos (hoje
CEOs).
Não sei. Acho que nos tempos que correm
ninguém mais se barbeia em barbearia. Talvez Carlinhos Cachoeira, sei lá. Mas
também ninguém mais envia pajem a determinado profissional com a missão de
entregar uma cabeleira para ser empoada. Ou será que ainda? Não sei.
Ora, etimológico leitor, vamos lá à origem perdida
das expressões, ou vamos ficar aqui a conversar sem compromisso, como de
costume, até o fim dos tempos ou apenas até o fim deste ano?
Pois é, então. O salão é uma pequena sala (eh
idioma) de porta única enviesada para a praça da feira de domingo. Ao longo da
parede fronteira à dos espelhos, um banco para bundas de espera. Entre ele e a
bancada com suas escovas e cremes, duas cadeiras de barbeiro – humildes,
acanhadas, duras. Não são Ferrante.
O patético é que são duas cadeiras. A mulher
trabalha só, provavelmente por não ter como pagar alguém para ajudá-la. Mas a
outra cadeira está lá, de prontidão, o tipo de prontidão que sempre reservamos
para o lugar ao lado, o da esperança.
O leitor me conhece, e desconfia.
De manso e de fino, desço à prosa rasteira
para contar de minha primeira vez com aquela mulher, ela como cabeleireira, eu
como portador da própria cabeleira.
Pensando melhor, não vou me estender sobre
isso. Digo apenas que relutei, não queria, não tinha coragem de cruzar aqueles
umbrais e me deixar tosar por aquelas mãos que estavam sempre a folhear revistas
por não haver clientes com que se ocupar.
Quando me jogava Ladeira do Vento abaixo e amarrava
o burro naquelas paragens era para tomar cachaça no bar do Lucimar – nome aliás
de namorada que tive nos longínquos tempos amazônicos – ou para comprar quiabo
em ressacadas manhãs de domingo. E, claro, a cada dois ou três meses para que
me aparassem a guedelha na barbearia que fica loguinho depois do bar.
Ao me arredondar na curva e avistar
bicicletas miúdas deitadas na calçada, à porta da barbearia, era acometido de
desânimo e – por que não? – raiva. Estava ali uma espécie de gangue de
adolescentes cujos cabelos, parece, cresciam ao mesmo tempo e no mesmo ritmo.
Os barbeiros, dois jovens irmãos compositores
de sertanejo, se deliciavam com aquela turma, e em cada cabeça cada um deles se
demorava a seguir minuciosas instruções. Falavam dos mistérios do show business ou interrompiam o trabalho
para trautear trechos da própria lavra, usando o pente à guisa de batuta. Aguardando
a vez, havia sempre um garoto a dedilhar o violão que tinha lugar reservado na
mesinha de intocadas revistas.
E os bocós, ah, esperávamos.
A salinha do salão ao lado ficava sem nenhum
cliente. A dona, longilínea morena, pernas cruzadas, folheava uma revista.
Lucimar é um desses comerciantes que se
cansaram do medo de assalto. Transformou o bar em distribuidora de bebidas, o
que significa que passou a atender a freguesia por telefone ou através das
grades que mandou instalar no estabelecimento. Num começo de tarde de sábado estava
do lado de fora, no passeio, certamente entediado por não se sacudir ao longo de
um balcão disputado por gente como eu.
Era inevitável que ele me retivesse para além
dos cumprimentos, senti logo. Ao perceber o olhar de desconforto estético que me
enquadrava dos ombros para cima, tentei como que uma justificativa: “Tô indo
cortar o cabelo.” Ele, meio beicinho, mostrando um rumo qualquer: “Então vai.” Ficou
a me observar enquanto eu caminhava pela calçada irregular.
Passei pelo salão da cabeleireira sem sequer
olhar para dentro, para onde havia moreno par de pernas cruzadas. Eu estava
esmagado pela quantidade de bicicletas miúdas deitadas alguns passos adiante.
Não, não me submeteria àquilo.
Retrocedi, sem pressa e sem ânimo. Mirei o salãozinho
exatamente no momento em que a mulher resolveu levantar o rosto das páginas
enfastiadas. Na maldita calçada irregular, tropecei em direção ao comerciante, que
ainda me observava. “Tem muita gente, volto depois”, expliquei.
“Ué, cara, e ela?”, o amigo apontou. “Ela também é
barbeira, cara.” Ante parva hesitação, praticamente me empurra: “Ela
corta bem; vai lá.” Fui.
Na segunda-feira a colega de trabalho que se
sentava do lado disse, para me aliviar das brincadeiras que os demais faziam a
respeito deste coco nordestino: “Você ficou bem com esse corte.” Presumo que eu
estivesse com o ar embevecido de poeta quando murmurei: “Ela tem um cheirinho
de milho verde.”
“Quem?”, empinou-se a colega. Falei da
barbeira. “Credo”, fez a moça, repentinamente ríspida. “Então essa mulher é
fedida.”
É quando me sinto só, feio e enrugado feito passarinho
que rompe a casca do ovo e sai para o frio cá de fora, sem a proteção de penas
ou de asas maternas.
Não era assim que pretendia terminar a
crônica, nem começar o calendário. Estiquei o texto sem dizer o que tinha em
mente e faço a abordagem do ano como quem salta numa canoa. Prometo voltar ao
assunto. Vai que acerte na veia e tenha motivo de brindar com o leitor, cabelo
cortado, cabeça leve, à luz do puteiro de Tia Alzira ou, quem sabe, de novos
tempos.
Hamilton Carvalho
(31/12/2013-1.º/1/2014)
(31/12/2013-1.º/1/2014)
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