PF à la carte
A proliferação dos chamados restaurantes self-service acaba com a minha beleza. A
primeira vez que peguei um desses foi em São Paulo, no intervalo de reunião
numa casa velha de onde só podíamos sair (da mesma forma que havíamos entrado)
aos poucos, espaçadamente, para não chamar a atenção do público em geral e da
polícia em particular. Era novidade, e eu pude escolher as leguminosas, com os dois
companheiros com quem havia deixado a casa velha. Mas a minha paixão pelo
prato-feito é imorredoura, sentimentalíssimo leitor comedor de refeições
ligeiras. O prato já vem prontinho da cozinha, muitas vezes passando por um
buraco em meia-lua na parede.
Naqueles idos não havia balança nos
restaurantes, humilhante maquininha com tara e tudo em que se assenta um prato
descomunal, com o qual se procura criar a ilusão de que a comida é apenas um
montinho razoável. Hoje existem também os self-services “à vontade”, sem
balança, quando o neguinho pode esgoelar-se com o que der conta de feijão,
arroz, abóbora e (nem sempre no à-vontade, quando há funcionário para controlar
a gana do freguês) muxiba, em pratos pirex de reduzido tamanho.
Minha paixão pelo PF é imorredoura, embora
comer não seja das coisas de que mais gosto de fazer. Quer dizer... Bem, não
brinquemos com acepções. Estou tentando sustentar um papo sério com o leitor.
É verdade que meu peito nostálgico (e
asmático) se aperta quando me vêm à memória as poucas refeições à la carte que
fiz, a viajar de caminhão com meu pai ou depois de conduzir garbosamente a
raríssima namorada a restaurante de luz dourada, quando o pagamento de salário,
mais raro ainda, saía. (Meu pai pedia os pratos sem olhar carta nenhuma, pois não havia isso em pontos de motorista de
caminhão, mas eram – condescendamos, afetuoso leitor – refeições à la carte.)
Penso que devo pausar um instante para
explicar que PF significa prato feito ou, da forma de minha preferência,
prato-feito, com hífen. (Talvez eu devesse grafar P-F, para diferenciar da
famigerada.) Explico por que explico: não há muito, coleguinha de boas origens
(credo) me pediu para explicar que coisa era aquela que eu dizia comer. Vai ver
achava que era patê foie-gras, ou coisa assim.
Sei que o leitor não tem apetite por
detalhes. Voltemos.
O devorador de pratos-feitos deveria ser
pessoa humilde, pouco exigente e tal. Geralmente, sim. Mas há os enjoados, os
chatos, que ficam especificando ao atarantado servente de estabelecimento cheio
como querem o prato. “Pouco feijão, mais arroz, um caldinho, só um caldinho de
carne cozida, e um bife bem-passado no canto, sem encostar no feijão.” O garçom
já corre – atarantado – para o buraco em meia-lua antes que esqueça as
especificações quando o freguês grita da mesa: “Sem cebola.” Já vi isso
acontecer em mesa com cinco funcionários de loja das redondezas, cada um deles
com especificações do PF, azoretando a pobre da moça que os atendia.
Nessas horas me dá vontade de escoicear: “Vai
procurar restaurante de grã-fino, porra.” (Versão menos chula de “Vai procurar
uma rola”.) Só que preciso de muita calma para comer.
A rigor, se é que existe alguma coisa a
rigor, o PF é à la carte. O cardápio
está logo à entrada da casa de pasto, a giz, em pequeno quadro-negro:
Hoje, dois pratos:
– Bife de fígado ou de vaca ou carne cozida
– Dobradinha
Feijão e arroz estão subentendidos para o
prato da escolha, a menos que o feijão seja tropeiro e o arroz seja com pequi. Já
sentado, o cliente informa se quer salada (alface com tomate) e verdura (jiló
ou abóbora, por exemplo). Se pedir ovo, são mais 50 centavos.
Mas achar um PF está uma dificuldade, leitor
a esta altura empanzinado, depois do advento e da subsequente proliferação dos
self-services. Isso até no mundo da grã-finagem, suponho.
Não é fácil para mim pegar fila atrás de
gente que está no intervalo de alguma convenção, crachás enormes no pescoço, a
salivar à vista das vasilhas com comida mais fria que morna (quiçá com asas de
mosca ou pernas de barata ou fios de cabelo), sem parar de falar, a jogar
perdigotos juntamente com o sotaque. Não dá.
Ah, não é só. Para esculhambar de vez,
inventaram o PF de self-service de balança. Um funcionário da casa vai à frente
do freguês atirando bruscamente coisas no prato à medida que avançam diante da
bancada com as vasilhonas. O rango sai mais barato, pois não é colocado na
balança. Há um porém. Você tem de escolher: abobrinha ou macarrão? carne ou
frango? Sem churrasco, cuja trempe fica lá na ponta e é supervisionada por
rigoroso funcionário, possivelmente o genro do dono do restaurante.
Hamilton Carvalho
(23/11/2015)
Sensacional!
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