domingo, 1 de abril de 2012

Depois de tarde agradável, Hamiltão deveria escrever algo mais condizente com felicidade...


Zero-a-Zero

Acabo de chegar. Peguei um cineminha com Elza, a primogênita. Antes do filme almoçamos, depois do filme nos sentamos para café e papo a uma mesa da praça de alimentação do shopping. Nossos assuntos não se acabam.
Em dado momento, eu disse que pretendia escrever uma crônica sobre um nosso velho conhecido. Mas agora, ao encarar o écran (como dizem meus preciosos leitores portugueses), já não sei. É que a escabrosidade do “tema” pode fazer com que a filha deste sórdido redator exclame, como de outras vezes, “Eco, pai, você é nojento.”
Bem. Que este chatíssimo nariz de cera sirva de advertência à sensível garota, e ela pare de ler por aqui.
Na verdade, eu deveria lavar minhas cuecas e deixar o texto para outra ocasião, caso contrário terei de re-vestir alguma do everéstico monte de roupas sujas. Sinto, porém, que devo cuidar da fome de ávidos leitores. Não lavo as cuecas, mas lavo as mãos.
Eis que, inopinadamente, entro no assunto. Ou, melhor, o assunto sai de mim.
Estava eu no bar de meu amigo Tião, como costumo fazer há séculos, sempre ao pé do balcão, quando vejo o pesado vulto de Zero-a-Zero passar por mim e se meter pelo estreitíssimo corredor que leva ao banheiro. Deixou um amigo sentado à mesa lá fora.
Tiãozinho, distraído a me contar um de seus espichados casos, não percebeu o apressado movimento do exótico freguês, com suas enormes botas de borracha, seu chapelão de couro falso, seus grandes e redondos óculos de fundo de garrafa de vidro.
De repente, o dono do conceituado boteco ergue o nariz e fareja a atmosfera abafada e quente. “Algum desgraçado cagou e não deu descarga.”
Devo esclarecer ao leitor engajado em nobres causas de sustentabilidade ambiental que Tião não gosta de desperdiçar água com qualquer bosta. Tanto é assim que na sexta-feira (hoje é domingo) – mal se escorrera o Dia Mundial da Água – um funcionário da Saneago esteve no estabelecimento. Saneago é a companhia de água e saneamento do Estado de Goiás.
A “autoridade” não estava, evidentemente, preocupada com saneamento, e sim com água. Foi categórico com d. Lourdes, a mulher de Tião: “O consumo está fora do padrão.” Ainda sob o clima evaporativo do Dia Mundial da Água, d. Lourdes acreditou que o homem falaria de provável desperdício. Mas não.
“O consumo está abaixo do normal”, esclareceu o preposto, avisando que mandaria uma equipe para averiguar as instalações hidráulicas da venda e da residência do casal. Meu amigo está preocupadíssimo, a temer mais uma multa. “Se eu estivesse aqui explicava que a gente faz uma economia danada de água.”
Não sei se ele diria isso à Vigilância Sanitária, que há algum tempo mandara uma fiscal para ameaçá-lo com multa. Ela deu prazo de trinta dias para o vendeiro colocar sabão e papel higiênico no banheiro. Não deu ouvidos à explicação de que era só colocar papel e sabão na casinha dos suspiros para os produtos desaparecerem. “Aqui atrás do balcão tem sabão e papel higiênico, basta a pessoa pedir”, disse cheio de razão o meu amigo, cansado dos furtos.
Ele foi rigoroso no cumprimento da determinação. Na noite do vigésimo nono dia, pouco antes do baixar das portas do bar, lá estavam um pedaço de sabão do tamanho de um tablete de caldo de galinha e um minguado rolo de papel.
Zero-a-Zero é um sujeito insuportável, com aquela voz arrastada e chorosa, carregada de ironia ou escárnio contra pessoas sérias. Deve ser influência dos “produtores culturais” que frequentam bar na Avenida 84, pertinho da Praça Cívica, em Goiânia. Uma vez, da janela do ônibus que me sacolejava, eu o vi ali, a circular entre mesas com enorme abridor de garrafa pendurado na cintura.
Na maior expectativa, fiquei à boca do corredor que conduz à minúscula privada para observar a reação de Tião quando descobrisse que o evacuante era Zero-a-Zero. A coisa foi melhor do que eu imaginava. O desgraçado nem se dera ao trabalho de aferrolhar a porta, que o meu amigo empurrou para levar um susto.
Ali, voltada para a porta, bem perto de meu amigo, assomava, feito assombração, a carona redonda com óculos redondos. A bunda gigantesca remexia-se sobre a pia, que é do tamanho de um prato de restaurante self-service, enquanto a mão direita, depois de recolher um fio d’água da torneira regulada contra o desperdício, se esfregava na vala do desgraçado.
Zero-a-Zero levou o maior esporro, mas não se abalou. Voz chorosa e arrastada, modulou: “Mas, Tiãozinho, você não coloca papel no banheiro.” Levou mais bronca, reagindo como se fosse elogio. Quando meu amigo voltou para trás do balcão e se postou próximo à estufa de salgados, Zero-a-Zero o seguiu, estendendo a gotejante mão direita, em aberta provocação: “Mas, Tiãozinho, me desculpe, aperte aqui.”
Tião gritou: “Sai pra lá com essa mão cheia de lama de bosta, seu safado.” Em todos estes anos que o conheço, jamais vira o marido de d. Lourdes tão enfurecido. Zero-a-Zero, no entanto – voz arrastada, chorosa –, continuou com o desplante: “Mas, Tiãozinho, você não coloca sabão no banheiro.”
Então, como que para apaziguar o vendeiro, pediu um tipo de salgadinho aqui chamado de disco de carne. Lábios fortemente cerrados, a ofegar de tanta raiva, Tião pegou um guardanapo e com ele recolheu da estufa o salgado, que Zero-a-Zero agarrou – com a mão direita – pela parte superior, descoberta, desprezando o guardanapo.
Espectador atento, acompanhei com os olhos o abominável freguês, que se dirigiu à mesa em que antes estivera, partiu generosamente ao meio o disco de carne e estendeu ao amigo a metade que segurava com a mão direita. Ambos, felizes, devoraram o petisco. Zero-a-Zero era, sem dúvida, o mais feliz dos dois, talvez o homem mais feliz do mundo.
Ah, leitor, sei muito bem que minha Elzinha não dará a mínima para a advertência que fiz e lerá até o fim este caudaloso texto, falto de economia e comedimento. Ela faz qualquer sacrifício para saber até onde o pai é capaz de ir. Só não ficará curiosa para saber por que o crápula ganhou o apelido de Zero-a-Zero. Ela já sabe.

Hamilton Carvalho

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um balcão separa a plateia do stand-up comedian. É assim que o autor, sem implicância, revela a verdadeira origem do estilo de humor


Líquido e certo

Ao pé do balcão do Bar e Mercearia Silva, parolava eu com o dono do estabelecimento. O leitor já conhece Tiãozinho, e deve deduzir, de má vontade, que daqui não sairá nada de relevante. “É líquido e certo que lá vem besteira”, dirá a si mesmo. Ora, é carnaval. Um pouco de paciência não custará nada ao leitor solitário que não tem quem o arraste para a folia.
Aproveitei o fim de um dos casos longos e repetitivos do dono do bar para provocá-lo. Lembrei-lhe de fato ocorrido ali em carnaval passado. Para minha surpresa, dessa vez Tiãozinho não se sentiu provocado. Pelo contrário: não me deixou continuar, assenhorando-se da história. Daí a pouco, dois ou três frequentadores do bar entraram na conversa.
Seres humanos costumam formar estranhas confrarias.
O bar do Tião, na parte em que ficam os diminutos balcões e prateleiras, é pequeno e abafado. Do lado de fora há ampla e arejada área com mesas (e cadeiras, claro) que era, naturalmente, o lugar preferido dos fregueses. Eu – como faço sempre que me acontece de cair em bar frequentado quase exclusivamente por machos – ficava junto do balcão, sem intenção de me demorar.
Houve uma inversão. Hoje não é mais assim.
Antes, as pessoas se sentavam do lado fora e faziam seus pedidos aos berros, até perceberem definitivamente que Tião é lerdo e costuma fingir que não ouve enquanto não terminar um caso. Fregueses impacientes passaram, eles mesmos, a vir buscar a cerveja e o tira-gosto. E começou a inversão.
Quando chegava da área para arrancar do comerciante mais uma cerveja ou uma tira de pele de porco, o cliente tinha de esperar o desfecho de um caso que ele era de início obrigado a ouvir. Não adiantava que eu fizesse gestos para que Tião desse uma pausa e atendesse o freguês, que passava a prestar atenção nas babaquices e a rir delas.
Hoje, lá fora, as mesas vivem literalmente às moscas, com exceção de uma ou outra, geralmente quando há mulher. Dentro, homens se amontoam diante dos dois pequenos balcões, plateia ativa e cativa do vendeiro. Já eu passei a ficar mais do lado de fora, empurrado pelo fedor de homem e pela fumaça de WS.
Acredito que, se não fosse pela mulher, que o ajuda no atendimento quando não está na cozinha da casa que fica atrás da mercearia, Tião teria que montar circo para sobreviver ou se dedicar exclusivamente ao pedaço de terra e às vacas que possui.
Por falar em circo, parece que a briga acabou. Até ontem havia dois circos “luxuosamente” armados em meu bairro. Um deles anunciava, por meio de fanhoso alto-falante instalado em Kombi de provecta idade: “Crianças e adultos só paga 5 reais.”
O concorrente, que instalara aparelho de som em algo semelhante a uma Parati, apelou. Ontem, que seria o último dia de ambos os circos na cidade (outra coincidência?), declarava o massacre ao garantir espetáculo “totalmente grátis”.
Confesso que vibrava quando via os carros se cruzarem. Os gritos esganiçados que saíam com entusiasmo sofrido dos alto-falantes davam a impressão de ser da mesma pessoa.
Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim.
Em carnaval passado notei quando um casal se sentou a uma mesa. O homem era um solteirão que morava ali perto. Não reconheci a garota. Os dois estavam com os cabelos úmidos, como se tivessem tomado banho juntos. Ele não esperou muito. Já conhecia o modus operandi do dono do lugar. Veio para dentro e aproximou o rosto do de Tião, como se fosse dizer um segredo. Mas todos que estavam no recinto ouvimos.
“Tiãozinho, veja que gata peguei ontem”, disse com um sorrisão, a jogar um polegar por cima do ombro. Depois pediu: “Antes da cerveja, dois Engov, pois neste carnaval vou arrasar.” Meu amigo serviu meio copo de água (ele é econômico) e descascou os comprimidos que havia tirado da gaveta. O homem os colocou na boca, despejou água por cima, engoliu, fechou as mãos e sacudiu os punhos como se comemorasse um gol.
Enquanto me falava do tempo em que trabalhou em fazenda de gado, o botequeiro ia brincando com um dos invólucros do medicamento que lhe ficara entre os dedos. De repente, parou a brincadeira e pronunciou meu nome em tom de alarme. Olhei para o papelzinho. “Lactopurga”.
Tiãozinho ficou apavorado. “E agora, o que é que eu faço?” Retruquei: “Nada; espera pra ver.” Virei-me de costas, apoiei os cotovelos no balcão e olhei para o casal sentado à mesa lá fora, ele com um sorrisão nos lábios. Deliciado (ou invejoso), ainda sentenciei: “É líquido e certo que ele não vai arrastar a moça para a folia.”

Hamilton Carvalho

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Tortuoso, Hamiltão já não sabe se é grego ou latino. Ou os dois


Agalmatofílico ou agalmatoerasta?

Ao dar de cara com a pergunta, o leitor há de sentir-se desestimulado. Afinal de contas, você quer respostas ou afirmações peremptórias para estar confortável no mundo. Então vá para o Google, caralho!
Ando impaciente, sei disso. É a porra da abstinência sexual, só pode. Quem aqui acompanha meus trôpegos passos desde os primeiros textos deve lembrar-se de que a tensão sexual me fez afirmar, certa vez, que até manequim de porta de loja me excitava. Referia-me, naturalmente, a manequins moldados em corpo feminino.
Agora é assim, e não é bem assim.
A caminho do trabalho, conforme a linha do ônibus que primeiro me aparece, passo por lojas que vendem manequins. Ficam expostos na calçada, ao sol, à chuva, à fuligem. Hoje são largamente usados nas barracas de roupa da Feira Hippie, e é comum ver algum deles amarrado sobre capota de Kombi feito lívido e obsceno cadáver, em tarde de domingo, finda a feira.
Naquela estreita e sinuosa avenida, os bonecos não são – é preciso reconhecer – propriamente atraentes. À vezes, dependendo do meu humor, lembram personagens de livro que fui forçado a ler: Incidente em Antares, de Érico Veríssimo.
Multidão de homens, mulheres e adolescentes de plástico azulado, amarelado, esverdeado, ou sob a tentativa de cor de pele, evidentemente pele de branco bronzeada. Pelos traços “caucasianos” (como dizem pessoas complacentes dos Estados Unidos da América), não há lugar ali para “afrodescendentes”.
Por outro lado, ou por outra razão, vejo atrativo em determinados manequins que representam o corpo feminino, em oposição à repulsa que me causam os que representam o corpo masculino, que, aliás, não devem despertar a inveja do pênis nas mulheres. (O dito talvez ficasse melhor assim: não devem despertar nas mulheres a inveja do pênis.)
Há bonecas que revelam claramente que foram modeladas em gostosíssimas garotas de bundinha arrebitada. Domingo destes, na Feira Hippie... Ruborizado confesso, ínclito leitor, que ao deparar com uma delas que, de costas para mim, envergava uma malhazinha das mais finas, tive vontade de lhe passar a mão na bunda. (Talvez ficasse melhor assim: passar a mão na bunda dela.)
Ah, eu não poderia esquecer: existem manequins que representam mulheres grávidas. O leitor já sabe de minha carinhosa tesão por mulher grávida, o que não é bem aquela gentileza de oferecer o banco no ônibus, coisa que as mulheres, todas, já nasceram merecendo.
Interessante. Houve tempo em que era comum, em lotação, homem oferecer o banco para uma dama se sentar, independentemente do estado ou da idade dela. Atualmente os ônibus urbanos têm bancos vermelhos reservados para velhos, grávidas e deficientes físicos. Mas a moçada não está nem aí. Robustos garotões e garotonas cravam o traseiro no assento vermelho e, como diria o cantor Luan Santana, “qui xi dânio mundo”.
Às vezes são os velhos que se recusam, como um desaforo, sentar em banco vermelho, e passam duros para se acomodar em lugar de gente “normal” ou se entregar à tortura potencializada de viajar em pé. Conheço alguns.
Para mim, é incompreensível que jovens finjam dormir ou admirar paisagem de concreto sujo para, assim, sair do desconforto da presença de uma mulher velha ou grávida. Ou de alguém que começa a passar mal durante o trajeto, como aconteceu comigo, quando vinha da casa de uma amiga, depois de carregar uma noite profíqua e esgotante.
Moça caprichosa, aquela. Voraz, impetuosa, exigente. Não me deu de-comer, nem antes nem depois de abusar de mim. Aí, no ônibus, já sob o solão da tarde, me bateu uma zonzeira, uma moleza. Efeito retardado, sei lá. Caí de cócoras entre as pernas que lotavam o corredor do ônibus.
E – pasme, leitor – fui socorrido por – pasme – uma mulher grávida, que me pegou pelos sovacos molhados de suor e me fez sentar no banco que estivera a ocupar. Pelo tamanho do belo bucho envolto em pano vermelho, deveria estar no oitavo mês gravidez.
Certo dia vi uma velha mal se segurando perto da cabeça gelzada de um garoto de pescoço taurino e musculosos braços a jorrar da camisa regata. Notei que ele, ao divisar a macróbia senhora que se aproximava, jogou o queixo na direção do peito. Só faltou fingir que roncava. E foi então que reparei num detalhe. Não era apenas uma velha; era uma velha grávida. O sono tinha de ser, mesmo, muito pesado.
Ora, a esta altura sinto o comichar do leitor: agalmatofílico ou agalmatoerasta?
Li em algum lugar que agalmatofilia é atração por manequins, e agalmatoerastia também, só que com “conteúdo” sexual. Difícil entender bem a diferença. Por analogia com a definição do dicionário Aurélio para pedófilo – aquele que gosta de crianças (pelo menos é assim que está na edição que tenho) – eu estaria mais para agalmatofílico, mesmo porque jamais teria a propensão de arranhar a sensibilíssima glande em algo de plástico, ainda que (suponho) macia boneca inflável.
Espero que o leitor não me coloque no dilema: pedófilo ou pedoerasta?

Hamilton Carvalho

domingo, 22 de janeiro de 2012

Um encontro em fria noite de sábado. O autor narra com singeleza. E, assim, chega a comover


Miriã

No que bati os olhos nela, pensei: “Essa daí deve dar mais do que galinha do rabo torto.”
Foi no bar do Uárlen, já que o meu amigo Tiãozinho fechara a mercearia para ir à roça catar pequis e ordenhar vacas. (Mas Tião não me engana: a incursão era mesmo para mostrar ao encarregado da chácara que o dono está de olho...)
De longe dava para ouvir o estrondejar da máquina de música. Entrei no recinto, firme no rumo do balcão, concentrado no pedido que faria à companheira de Uárlen.
Quase fui atropelado. Sim, leitor. Uma baixinha roliça volteava freneticamente em torno das duas mesas de bilhar ao som de uma música estilo ai-se-eu-te-pego. Veio para o meu lado cega feito bola de efeito. Com o reflexo dos meus tempos de goleiro de futebol de salão (hoje conhecido como futsal), dei elegante gingado na ponta dos pés, e evitei o desastre.
Quem nos observasse distraidamente naquele brevíssimo momento poderia tomar-nos por velhos parceiros de danças eróticas. Mas o parceiro dela era um sujeito pequeno e magro que não conseguia acompanhar o ritmo alucinante da moça, ambos já meio encanjebrinados.
Pedi a bebida e voltei com ela para me sentar a uma solitária mesa na calçada, encostada na parede entre as duas portas. Coloquei-me com a cadeira de frente para a rua, o braço direito apoiado na mesa. Quando me entortava para a esquerda e olhava para trás via um grupo de pessoas em inocente carteado, mais ninguém. E estava fora de vista da dupla de dançarinos.
Meu amigo Tião repete com frequência que vivo “dando chute na sorte”. Que o leitor julgue a pertinência disso. Para começar ponha os olhos em mim naquela noite de sábado, a beber no passeio, sem me dar conta de que fazia frio, em flagrante e pública solidão. Por uma vez apenas, infinito leitor, pense complacentemente nesta vida cambaia, nas sortes e nos azares dela. Aliás, foda-se. Vá cuidar do que lhe pertence.
A baixota gordinha saiu num torvelinho da atmosfera cálida do interior do bar e se dirigiu a mim: “Moço, veja que absurdo.” Na rabeira dela veio o baixote magrelo. Mas o absurdo não era ele. “Na minha terra a gente ouve música de graça, e aqui eles cobram cinquenta centavos pra tocar uma”, resfolegou a agilíssima dançarina. “Um absurdo.” O tom de voz era alto.
Deu uns dois giros pelo passeio (quase escrevi “Ciscou à minha volta”, mas me lembrei da galinha do rabo torto da abertura deste texto e achei que seria abusar das comparações) e se achegou a agitar os punhos cerrados. “A gente tá consumindo a bebida desses elementos e ainda temos de pagar pela música.” Aí pediu para se sentar à mesa.
Sentou-se. Resumiu a própria vida sem pausar na falação. Chegara havia pouco do Maranhão, aprendia a fazer sapatos femininos (“Sou sapateira, não sapatão”), gostava de se divertir e namorar. E se chamava Miriã. O baixote, de pé, com o chapeuzinho pendurado de banda na cabeça ossuda, bafejou perto de minha boca: “Essa dá nó duplo em gota d’água.”
A intervenção do companheiro de dança não a perturbou. “Não liga não pro teu futuro cunhado”, pediu a dama festiva a olhar carinhosamente para o homúnculo. “Falo mesmo mais que o homem da cobra.” Foi então que...
“Por falar em cobra”, emendou. Pegou a minha mão que repousava na quina da mesa e me pressionou o dedo médio, forçando-o na direção do braço. Queria, desse modo, tirar a medida do meu pau. O método seria infalível, segundo ela. O dedo, no entanto, não foi muito além da parte carnuda da mão.
Ao notar o ar de desalento da elétrica maranhense, destravei a língua e passei a me justificar anatomicamente. Garanti que meus dedos eram pequenos, desproporcionais em relação a outras partes do corpo. Fui enfático, reiterativo.
Um negro de uns dois metros de altura me fez estancar o jorro de justificativas. Curvou-se diante da dama e lhe ofereceu o espetinho de carne “molhado” em farinha de mandioca que trazia do churrasqueiro que ficava a cerca de vinte metros do bar. Ela não aceitou a gentilíssima oferta, e o grandalhão passou pela porta à minha direita e se sentou fora do meu campo de visão.
“Não fique com ciúme, ele não tá olhando pra mim”, disse Miriã numa voz surpreendentemente baixa. “Parece que ele tá cochilando.” Impaciente, retomei o assunto de minhas medidas penianas. Confesso que não sei por que me empenhava tanto naquilo. Foi quando o negro se materializou novamente. Insistiu para que ela aceitasse o churrasquinho, pois ele não o comeria por não se sentir bem.
Ela enfiou perigosamente o espeto na boca e arrancou dois nacos de carne “molhada” em farinha de mandioca. A mastigar com furor, inclinou-se para mim, retornando ao assunto. “Sendo assim, ele vai ser teu futuro cunhado”, afirmou jogando o queixo na direção do baixinho. Foi aí que me toquei. Eram irmãos.
Agarrou a minha mão e me puxou para ela enquanto se atirava a mim para um apoteótico beijo com direito a língua. Era como se metessem em minha boca, inteiro, um bife à milanesa.
A reclamação quanto à cobrança da música era só pretexto para se aproximar, assegurou. “Eu disse ao mano que tu ia ser o futuro cunhado dele logo que tu passou por nós pra sentar aqui fora.” Para me safar, prometi que a encontraria no dia seguinte, domingo. Não compareci, e não digo que tenha chutado a sorte.
Falei sobre esse encontro ao meu amigo do Bar e Mercearia Silva. Omiti, naturalmente, a dúvida levantada por Miriã quanto às minhas dimensões penianas. Na verdade, eu não deveria ter contado nada. Com um sorriso cínico a mostrar o reluzente dente de ouro, Tião proclamou: “Eu não disse?”

Hamilton Carvalho

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Antes enjeitado pelo autor, o texto agora entra aqui feito o filho pródigo...


Ensaio sobre a solidão

Coleguinha chegou para dizer que este espaço está sendo usado para tratar de assuntos fúteis, levianos.
Tal declaração não procede. Tanto é verdade que, mantendo a linha de seriedade adotada aqui desde a primeira crônica, abordarei tema de crucial relevância: a solidão.
Existe quem tenha vocação para a coisa. Portanto, solidão praticamente não significa nada.
Mas vejamos. Sujeito de sucesso, mulher boa e filhos inteligentíssimos perde de repente o emprego. Os numerosos amigos são os primeiros a desaparecer. Em seguida cai fora a mulher com os filhos.
Depois de algum tempo em completo abandono, o infeliz está deitado no imundo catre, refletindo. O vento uiva no quintal, e ele se lembra de que o cachorro morreu, o gato desapareceu e até os cobradores sumiram.
Por pouco o solitário também não se desintegra, ruminando todas as dores do mundo.
Esse não é bem o caso de um amigo que possuía algum dinheiro amoitado em caderneta de poupança. Ele me diz que, quando percebeu que já não valia nada para ninguém, que se tornara um zero do tamanho da Praça Cívica, partiu para o desregramento.
“Em duas semanas”, lembra o calhorda, “comi uma zona inteira e descontei vinte anos de fidelidade conjugal.” Assegura que somente numa noite traçou todas as chulapas de um bordel.
Triste mesmo é o caso do solitário que escreve para seção de cartas de revistinha de sacanagem ou classificados de jornal para se oferecer. Informa contar com situação financeira estável, que tem onde “receber”, que é discreto, saudável, sem vício.
É comum o sujeito acrescentar que é ativo e/ou passivo, que aceita casais, que é bem-dotado.
Aliás, esse negócio de boa dotação é tão relativo que me faz lembrar de episódio protagonizado por outro amigo.
Diz ele que, quando armou a barraca, ou melhor, o circo, a dama ficou maravilhada, e mais ainda quando ele tirou a lona para transportar o picadeiro.
A baixinha tentava apenas lisonjear. Tanto é verdade que ele, quando caiu em cima e foi lá, não achou nada. Por isso, no momento em que ela deu um gritinho e disse que doía, o suposto pé de mesa perguntou, com sinceridade: “O que é que tá doendo, mulher?”
Há pessoas que vivem em tão pungente solidão que recorrem a anúncios de prostitutas (ou prostitutos) em respeitáveis jornais. E ali se encontra de tudo para todos os gostos sexuais.
Existem anúncios oferecendo “dominadores do prazer”, mulheres em dupla para mulheres sós e/ou casais e aquelas que se dizem casadas “de verdade”, bonitas, ousadas, carinhosas e “completas”.
Como se não bastasse tanta plenitude, a maioria delas coloca “apetrechos” à disposição dos interessados. Uma “loirinha insaciável sem limites” garante que está sempre pronta para dar e receber.
E aí, leitor solitário? Vai topar? Que tal dar uma conferida na Barbará Travesty, “feminina e discreta”?
Barbará assegura que mostrará do que é capaz “se você é uma pessoa exigente e gosta de algo muito especial”. E, para soltar seus freios, o traveca vai na base da indução: se “curioso”...
Assim, depois você poderá alegar, para si e para quem ficar sabendo, que foi movido apenas pela curiosidade. Ninguém tem o direito de zombar do espírito aventureiro que leva alguém a buscar “loucas aventuras”. No caso de Barbará, talvez nem precise de apetrecho.
Sei, leitor céptico, que você está lá a pensar: “Pô, isso não é coisa de solitário, é sem-vergonhice mesmo.”
Mas não acha que sujeitinhos que gostam de uma boa sacanagenzinha podem viver mais que nós, homens atormentados e tolhidos pelo doce passado?
Não seria melhor procurar Ana Kelly, que oferece um “bumbum avantajado”, ou Andreia, que promete realizar todas as fantasias, do que meter uma bala na cabeça?
É claro que aquelas fotos que vêm com anúncios poderiam fazê-lo hesitar. Você vê cada pé de rabo, mas o vê há tanto tempo, na mesma foto, que farta peça anatômica pareceria hoje, ao vivo, uma jaca atrofiada.
Leitor puritano, perdoe ao solitário promíscuo. Afinal, ninguém pode atirar a primeira pedra sem ter que, em seguida, atirar toda uma pedreira.
Este não é tema de menor importância. Só espero que o coleguinha não volte para insinuar que almejo alguma espécie de jabaculê.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 58, 10/5/1998)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Hamiltão vai ao médico. Mas não relaxa. Será sempre um doente


Na sala de Hipócrates

Depois de minha consulta ao ginecologista, eu...
Assim não dá. Já vejo o leitor fazendo o olhar deslizar até o pé da página para conferir a autoria do texto: é de mulher? Não: é do mesmo ínclito e viril cronista de sempre. Sim, de sempre, apesar do sumiço.
Sei que milhões de pessoas, com o coração amolecido pela mídia, ficaram preocupadas com o meu desaparecimento. Não, mais uma vez não: não estava em companhia do cantor Belchior em nova turnê. Nem fui abduzido por algum benigno (e possivelmente pervertido) extraterrestre.
Entre tantos nãos e sins, admito: estava em crise. Mas aí o leitor se adianta curioso para saber se a crise era de identidade  – ou, mais especificamente, de sexualidade, dado o começo inadvertido desta crônica.
Então só me resta recomeçar.
Antes, porém, devo lembrar que muita gente lança mão da perfídia ao afirmar que sou um homem “excessivo”, no sentido de que seria dado a excessos: mulheres, vinhos, fumos... Tudo no plural. E não é bem assim.
Quando fincaram pé para que eu fosse submetido a um check-up, minhas filhas levaram em conta uma vida inteira de excesso (agora sim) de trabalho inglório, sem nunca ter ido ao médico a não ser para pegar atestado de “exame demissional”.
A primogênita compulsou uma relação de especialistas em clínica geral, marcou consulta e me arrastou ao médico. Ao voltar para casa, no carro, portando uma receita contra hipertensão, contei à garota como tinha sido o exame. Ela disse: “Estranho, muito estranho.”
De imediato, decidiu que me levaria a outro especialista. Meio vacilante, discordei, pois achara o profissional “atencioso e sensível”, prescrevendo uma série de exames laboratoriais, embora ele só tenha medido a pressão arterial a meu pedido.
À revelia do mais insubmisso dos pais, Elzinha marcou consulta com outro especialista. A caminho do hospital resolvi dar mais uma olhada naquela receita contra hipertensão que levava juntamente com o resultado dos exames de laboratório. Foi então que notei, abaixo do nome do médico, a especialidade dele: ginecologia.
Nessa última vez, a filha fez questão de me acompanhar à sala do cardiologista. Estendeu para ele os papéis dos exames, com aquela atitude de mãe que leva o filhinho ao pediatra, e passou informações sobre mim, inclusive (ou principalmente) as que eu queria ocultar.
Fui encaminhado para outros exames, ali mesmo no hospital, realizados numa sala chamada Hipócrates. Apesar do meu pavor, até que... Bem, ainda tenho que voltar para mais um exame, e devo privar o leitor de certos detalhes. Assim como um país, também tenho a minha lei do sigilo.
Ah, sim, leitor. Quanto à crise, eu quis apenas ser glamouroso.

Hamilton Carvalho

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O leitor há de convir: bom-mocismo não combina com Hamiltão...


No foco

Ao inicializar a crônica hesito muito. Inicializar? Meu deus, o que os informáticos fazem com esta cabeça nordestina, que entra com tanta dificuldade em capacete de mototáxi?  Bem, vou começalizar de novo.
Hesito muito pelo simples fato de chegar ao leitor com a cara meio envergonhada de retardatário, já que estou uma ou duas semanas sem aqui comparecer. Mas também porque, nesta “nova” fase, sou acometido de estranhos pudores, ao contrário de Aldous Huxley, que vinte anos depois da publicação de Brave New World tentou transformá-lo em “profecia” anticomunista.
Ninguém parece dar-se conta de que são Pequenos Irmãos os que vigiam o mundo absconso de banheiros e sacadas por meio de câmeras e minicâmeras, diferentemente do que querem imaginar embevecidos admiradores de outra fracassada profecia. Até mesmo uma Grande Irmã – ou Média, pois é apenas prefeita – da Bélgica foi flagrada de bunda para o amante que, de queixo levantado, revirava os olhos enquanto a traçava no alto de bela muralha.
Bem, talvez seja por vingança que uma prefeitura instalou câmeras de “segurança” em banheiro que, apesar do qualificativo, não se destina a banhos. Foi no Brasil. A gente aqui precisa às vezes estar na vanguarda de alguma coisa. Aliás, a vanguarda era da Guarda Municipal de Americana, em São Paulo. Membros (!) da valorosa corporação se rebelaram, e um deles deve receber indenização por ter tido sua “privadacidade” violada.
Como é que não pensei nisso após filmado com a “aguda empunhadura à proa” em grã-fino restaurante de Goiânia? É claro que uma indenização de R$ 5 mil, igual à determinada pela Justiça no caso do guarda de Americana, não daria para cobrir as despesas que fiz com a namorada naquele restaurante, somadas as poucas vezes em que lá estive.
Sucede que, no discreto canto que o maître (que me chamava de doutor) reservara para nós, exercitei meus rudimentos preliminares, o que fez o desmiolado cá de baixo “pensar” que o macio e lubrificadíssimo mergulho seria ali mesmo. Então, já tarde, sozinho no WC (bacana, hein?), ao dar uma relaxada para liberar o caminho da urina e literalmente enxugar a varinha (a modéstia é traço característico deste autor), virei-me para puxar a toalha de papel que ficava no estojo ao lado da pia.
Mas dei de cara e corpo inteiro com o espelho, e me vi naquela atitude que me lembrou o verso do soneto que Chico Buarque introduzira na letra de “Fado tropical”. Acima do espelho havia uma câmera nada discreta.
Apesar da má fama que carrego na cacunda, sinto-me constrangido em banheiros públicos, consciente ou não da existência de câmeras. Há sujeitinhos indecentes que não se furtam de jogar uma olhadela ao mijante do lado, mesmo quando os vasos de micção são individuais e permitem que se oculte (parcialmente embora) o membro cavernoso, murchíssimo de vergonha.
Imagine, então, leitor pudico, se o receptor de urina for daqueles do tipo de cocho diante dos quais os machos disputam espaço, soltam peidos e gemidos e sacodem obscenamente a caceta.
Eu me recordo de uma noite em Buenos Aires. Enquanto aguardava o momento de embarcar no trem em Chacarita – o que só aconteceria ao amanhecer –, fui a um bar, ali mesmo na estação, e passei a encher a cara de vinho tinto, discutindo futebol (era o que se podia discutir em público nos tempos do general Videla) com dois ou três portenhos que bebiam genebra ao pé do balcão.
O diurético leitor já imagina a premência. Era preciso mesmo ir ao mijadouro. No amplo quadrado em que havia três cochos ao longo de paredes, escolhi um lugar mais, digamos assim, folgado. Logo que, desalojado o zé-da-garoa, eu começava a sentir o alívio, ouvi à minha esquerda: ploft ploft ploft. Ao – inadvertidamente – olhar para o lado, vejo um baixinho, de barba azulada e sorriso sem-vergonha na cara voltada para mim, a estapear e a balançar uma gorda rola em estado de – aparentemente, friso – semiereção.
Ao chegar à saída, olhei para trás e vi o baixinho se deslocar para outro cocho e repetir a mesma operação ao lado de outro infeliz. Não havia câmera.
Hoje, até em lanchonetes, há desgraçados que instalam filmadora no banheiro das mocinhas à altura do vaso sanitário, como mostram vídeos em sites ou enviados por e-mail a elementos suspeitos como eu. Não se trata de mera “espiadinha”.
Agora o leitor entende a minha hesitação, o meu constrangimento. Neste – sem pretensão de ironia – covarde mundo novo.

Hamilton Carvalho