A canção e o bêbado
Aí eu: “Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora da partida...” Aí eu nos botequins da vida.
Venho sentimental desde a crônica da semana passada, pois não? Só que agora, a uma mesa de bar – rompendo firme autodeterminação de não redigir fora da atmosfera condicionada da Gazeta –, não consigo me concentrar nas palavras da cantiguinha com que iniciei este lítero-babaca texto.
É que, como o goianíssimo leitor sabe, há sujeitinhos que estacionam o carro ao meio-fio, abrem a traseira (do carro) e botam o som na maior altura. Agora, neste exatíssimo momento, Reginaldo Rossi, a todo o volume, me atrapalha.
Não que eu não goste das peças produzidas por ele, pois nem só de Tchaikovski vive a humanidade. Mas é que...
“Ainda é cedo, amor / Mal começaste...” Aí eu, a uma mesa de bar, não consigo nem escavacar a ferida nem ficar de olho no deadline determinado pelo Salvio Juliano, que, além de editar a “Folha G”, ilustra belamente este cantinho de página.
“Seja irresponsável”, diria uma de minhas ex-mulheres. (Na verdade, elas não são minhas ex-mulheres, mas sim ex-minhas mulheres.) No entanto, apesar da má fama, carrego muita responsabilidade na cacunda.
Aí eu, então, estava aqui, na recaída: “Presta atenção, querida / Embora estás resolvida...” Mas o som que vem do carro vibra nas paredes e leva meus tímpanos ao teto do crânio.
Assim, deixei escapulir a canção que me volteava no cérebro e desisti de ficar na fossa, como se dizia nos tempos de flores e pedras. Para não chegar ao desconforto da vida, procurei entrar no espírito da coisa, e passei a reparar em torno de mim.
Dona de lindo pezinho de rabo passou rebolativa pela mesa do marmanjo aqui, rumo ao mictório. A calça dela, justíssima, ia fundo nas reentrâncias, desenhando tudo.
Quando a moça vinha de volta notei que a roupa estava do mesmo jeito, como se ela tivesse feito mijadinha vestida. Pensei, apenas pensei: “Vai ser boa assim lá em casa.”
Houve tempo em que era mais audacioso. Certa vez, disse isso para esfuziante dama – “Vai ser boa assim lá em casa” –, e ela foi. É verdade que naquela época eu me apoiava na estampa autenticada de garotão.
Atualmente o que mais cai no meu pedaço é garota sukita com o papel decorado. O que não me impede de, de vez em quando, fingir uma dorzinha de cotovelo: “Ainda é cedo, amor, mal começaste a conhecer a vida.”
Aí eu... O leitor que me perdoe: estou bêbado demais para continuar.
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 142, 16/4/2000)