Ao sol do desespero
O sol de hoje quase me pôs à beira de ato semelhante ao da
personagem de Camus em O Estrangeiro. Caía a pino, pesado, e fazia
ferver o tutano desta carcaça, se é que tutano havia nela.
Igualzinho ao sol do desespero de
tempos atrás.
Eu andava sem rumo pela cidade, horas e
horas, sem sombra, sem água. O mundo se resumia àquela incandescência que me
desbotava as íris, ao calor que me ardia nas virilhas suadas, à dor que tinha
que doer mais.
Com os sapatos rotos e os pés em bolha,
corroído pela sede, mas acrisolado, busquei o caminho de volta.
Ora, leitor sacana, vamos sair do
pedantismo e tratar de coisa séria.
Na verdade, eu queria era falar de uma
carona que peguei, creio que lá para as bandas do Garavelo. Não, não sei bem
que região era aquela. Puro desnorteio.
Avenida larga, asfalto quentíssimo,
ponto de ônibus sem abrigo, ônibus sem chegar. Ocorreu-me que aquela linha
pudesse estar desativada. Então, pô, tomei a decisão de sair andando até
encontrar via mais movimentada.
Mirei aquele estirão reverberante,
aquelas imagens tremulamente longínquas. Empurrei-me para lá.
Após algum tempo de marcha dura debaixo
do solão, o moral começou a se arrastar com os pés. Desejei carona, mas isso é
coisa que ninguém mais se arrisca a dar a estranhos.
Tempos remotos, também dei minhas
caroninhas. Claro, para meninas que caíam no meu terreiro, o que frequentemente
acontecia, por exemplo, em Imperatriz, Maranhão.
Lembro-me de uma. Foi depois de
reuniãozinha “social” e depois de muito jogo amoroso entre a fera aqui e morena
cuja sensualidade cheirava a premência de sexo.
Driblei empata-chamego e introduzi a
sereia na caminhonete que ficava sob minha suspeita responsabilidade. Meti o pé
no acelerador quando atingimos a Belém-Brasília, empurrei a quarta marcha, e lá
fomos nós.
(Você, leitor nada superficial, percebe
o sugestivo emprego de determinados verbos: introduzir, meter, empurrar...)
A certa altura olhei para a garota e a
vi tensa, “freando” com os pés. Reduzi a velocidade e estacionei de mansinho,
como bom menino que jamais frequentara a Praça do Racha.
Imbecil, eu. Estraguei, por causa de
besta entusiasmo excessivo, a preparação física de quase uma noite inteira.
Aquela corrida desbragada e sem sentido, com um encanjebrinado ao volante,
esfriou a tímida gazela.
Já que estava com a mão na massa,
continuei na tentativa de rasgar-lhe o desejo.
Fria; tépida; quente. Quente mas não
vulcânica.
Sim, leitor dono de pobre currículo
sexual, para conseguir comer virgem em boleia, ela (a virgem) tem que estar em
estado de erupção.
Mas eu já estava num ponto em que o
egoísmo é inelutável, aquele ponto em que o sujeito passa a argumentar mais com
palavras e menos com carinhos. Argumentos profundos, como um tal de “Deixa,
deixa, deixa...” Nem o letrista Vinicius.
No entanto, deu certo. Deixou que lhe
despisse a parte inferior do corpo, o que comecei a fazer de maneira meio que
afoita e desajeitada. Sem nenhuma colaboração da menina, tirei-lhe a calça
comprida.
Então, dei de cara (principalmente de
mãos) com barreira intransponível. Sim, sim, intransponível.
A calçola, a legítima. Aquela cheia de
presilhas, alças, botões, costuras, dobras e mais dobras, que chegava até a
cintura. Pensei que não mais existisse tal horror.
Conhecera aquilo quando era pequeno, e
assim mesmo porque era numa cidade do interior em que as mulheres faziam as
próprias roupas de baixo.
A barreira só seria transposta à base
de cooperação. A garota não se mostrava disposta a tal. Não queria, talvez, ter
participação muito ativa em ato pecaminoso, aliás o supremo ato pecaminoso.
Meu deus, eu sofria mais que o prepúcio
do “Maníaco do Parque” quando em ação. [Referência a um motoboy tarado
que, à época em que foi escrita a crônica, atacava mocinhas em recantos
aprazíveis da capital paulista; segundo entendidos, ele tinha
bico-de-candeeiro, ou seja, fimose.]
Exausto e cheio de brio, por incrível
que pareça, desisti. Pouco antes sentira grande vontade, confesso, de
atirar-lhe a famosa proclamação: “Ou dá, ou desce.”
A desgraçada não me havia concedido
sequer o consolo de uma mãozinha. Desceria, por certo.
Ora, quem manda sujeitinho querer
molhar o biscoito ao preço de carona? Não é certo, não é justo, é abominável. A
carona ter que ser dada com desprendimento, com desinteresse. O preço da
molhadinha tem de ser o do amor. (Gostou, meloso leitor de folhetins?)
Já pensou se o carroceiro que me deu
carona naquela tarde solzuda viesse para o meu lado com um dá-ou-desce?
Sim, porque peguei carona em uma
carroça puxada a burro estropiado. Vermelho, de óculos no nariz escorregadio de
suor, sacolejando, lá ia eu a tagarelar com um garoto que certamente não
guardava nenhuma intenção estranha a meu respeito.
Lá ia eu, mais perto de mim, envolto na
luz do poente sol do desespero. Tinha tomado o rumo do meu destino.
Hamilton Carvalho
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