quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O pândego leitor pode saltar esta crônica. Aqui só há sofrimento


Ao sol do desespero

O sol de hoje quase me pôs à beira de ato semelhante ao da personagem de Camus em O Estrangeiro. Caía a pino, pesado, e fazia ferver o tutano desta carcaça, se é que tutano havia nela.
Igualzinho ao sol do desespero de tempos atrás.
Eu andava sem rumo pela cidade, horas e horas, sem sombra, sem água. O mundo se resumia àquela incandescência que me desbotava as íris, ao calor que me ardia nas virilhas suadas, à dor que tinha que doer mais.
Com os sapatos rotos e os pés em bolha, corroído pela sede, mas acrisolado, busquei o caminho de volta.
Ora, leitor sacana, vamos sair do pedantismo e tratar de coisa séria.
Na verdade, eu queria era falar de uma carona que peguei, creio que lá para as bandas do Garavelo. Não, não sei bem que região era aquela. Puro desnorteio.
Avenida larga, asfalto quentíssimo, ponto de ônibus sem abrigo, ônibus sem chegar. Ocorreu-me que aquela linha pudesse estar desativada. Então, pô, tomei a decisão de sair andando até encontrar via mais movimentada.
Mirei aquele estirão reverberante, aquelas imagens tremulamente longínquas. Empurrei-me para lá.
Após algum tempo de marcha dura debaixo do solão, o moral começou a se arrastar com os pés. Desejei carona, mas isso é coisa que ninguém mais se arrisca a dar a estranhos.
Tempos remotos, também dei minhas caroninhas. Claro, para meninas que caíam no meu terreiro, o que frequentemente acontecia, por exemplo, em Imperatriz, Maranhão.
Lembro-me de uma. Foi depois de reuniãozinha “social” e depois de muito jogo amoroso entre a fera aqui e morena cuja sensualidade cheirava a premência de sexo.
Driblei empata-chamego e introduzi a sereia na caminhonete que ficava sob minha suspeita responsabilidade. Meti o pé no acelerador quando atingimos a Belém-Brasília, empurrei a quarta marcha, e lá fomos nós.
(Você, leitor nada superficial, percebe o sugestivo emprego de determinados verbos: introduzir, meter, empurrar...)
A certa altura olhei para a garota e a vi tensa, “freando” com os pés. Reduzi a velocidade e estacionei de mansinho, como bom menino que jamais frequentara a Praça do Racha.
Imbecil, eu. Estraguei, por causa de besta entusiasmo excessivo, a preparação física de quase uma noite inteira. Aquela corrida desbragada e sem sentido, com um encanjebrinado ao volante, esfriou a tímida gazela.
Já que estava com a mão na massa, continuei na tentativa de rasgar-lhe o desejo.
Fria; tépida; quente. Quente mas não vulcânica.
Sim, leitor dono de pobre currículo sexual, para conseguir comer virgem em boleia, ela (a virgem) tem que estar em estado de erupção.
Mas eu já estava num ponto em que o egoísmo é inelutável, aquele ponto em que o sujeito passa a argumentar mais com palavras e menos com carinhos. Argumentos profundos, como um tal de “Deixa, deixa, deixa...” Nem o letrista Vinicius.
No entanto, deu certo. Deixou que lhe despisse a parte inferior do corpo, o que comecei a fazer de maneira meio que afoita e desajeitada. Sem nenhuma colaboração da menina, tirei-lhe a calça comprida.
Então, dei de cara (principalmente de mãos) com barreira intransponível. Sim, sim, intransponível.
A calçola, a legítima. Aquela cheia de presilhas, alças, botões, costuras, dobras e mais dobras, que chegava até a cintura. Pensei que não mais existisse tal horror.
Conhecera aquilo quando era pequeno, e assim mesmo porque era numa cidade do interior em que as mulheres faziam as próprias roupas de baixo.
A barreira só seria transposta à base de cooperação. A garota não se mostrava disposta a tal. Não queria, talvez, ter participação muito ativa em ato pecaminoso, aliás o supremo ato pecaminoso.
Meu deus, eu sofria mais que o prepúcio do “Maníaco do Parque” quando em ação. [Referência a um motoboy tarado que, à época em que foi escrita a crônica, atacava mocinhas em recantos aprazíveis da capital paulista; segundo entendidos, ele tinha bico-de-candeeiro, ou seja, fimose.]
Exausto e cheio de brio, por incrível que pareça, desisti. Pouco antes sentira grande vontade, confesso, de atirar-lhe a famosa proclamação: “Ou dá, ou desce.”
A desgraçada não me havia concedido sequer o consolo de uma mãozinha. Desceria, por certo.
Ora, quem manda sujeitinho querer molhar o biscoito ao preço de carona? Não é certo, não é justo, é abominável. A carona ter que ser dada com desprendimento, com desinteresse. O preço da molhadinha tem de ser o do amor. (Gostou, meloso leitor de folhetins?)
Já pensou se o carroceiro que me deu carona naquela tarde solzuda viesse para o meu lado com um dá-ou-desce?
Sim, porque peguei carona em uma carroça puxada a burro estropiado. Vermelho, de óculos no nariz escorregadio de suor, sacolejando, lá ia eu a tagarelar com um garoto que certamente não guardava nenhuma intenção estranha a meu respeito.
Lá ia eu, mais perto de mim, envolto na luz do poente sol do desespero. Tinha tomado o rumo do meu destino.

Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, nº 82, 31/1/1999)

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