Weligton do salão
Fui à barbearia.
Sim, leitor de boa vontade, é necessário que
você vá ao texto anterior, para relembrar ou, caso não o tenha lido, tomar
conhecimento. É claro que eu poderia “colar” aqui o trecho que interessa. Mas o
que me irrita mais do que repetir e repetir é ter condescendência para com a
preguiça do leitor. Ah, sim, talvez me irrite mais ainda a preguiça de autor
que faz remissão a links para que os leitores
se virem, em vez de encarar o trabalho dele historiando um pouco. Só que isso
não interessa, pô.
Aliás, nem sei mesmo o que interessa.
Vivo em meio a contrassensos. Mais um não vai
acabar com o que me resta de humanidade. “Eu poderia dizer que fui à barbearia
se a pessoa que me desbastou as cinéreas madeixas fosse do sexo masculino, o
barbeiro”, escrevi no texto que acima – inutilmente, vejo bem – sugeri ao
leitor.
Há pouco, dias atrás, semana que passa, fui a
uma barbearia que se chama Weligton do Salão. Imagine o fiel leitor se o nome
do salão de beleza da Eliane fosse Eliane da Barbearia. Isso não pegaria bem
para muita gente de bem. Nem se fosse Eliane do Salão.
Pauso-me, diria (não tenho certeza) Fernando
Pessoa. O olhar de lince do leitor me incomoda, embora eu não saiba que diabo é lince. A barbearia que, num repentão, surge na rota do meu ônibus (que
aliás pertence a uma concessionária do serviço público), um pouquinho antes do
ponto em que desço a caminho de casa, representou a resposta a uma emergência,
e não uma traição à minha barbeira. Se bem que Welington (com ene, como está no
certificado na parede, no alto do espelho) tem uma mão boa, profissionalmente
falando.
Sim, pauso-me. O nome do rapaz está grafado
na fachada da modesta sala do jeito que o reproduzo no título desta crônica, mas no certificado de conclusão do curso de cabeleireiro – ministrado por
meio de convênio entre governo federal e prefeitura – está com um ene entre o
ele e o gê, como discretamente expliquei entre parênteses. Aí é que entra o tal
olhar de lince do leitor. “E se na certidão de nascimento do moço ‘Welington’
for ‘Wellington’, com dois eles?”, insistiria um arrogante qualquer. Se me
coubesse escolher os leitores, não escolheria gente tão infeliz.
Acho-me no direito de renovar o meu pausar-me
para outro esclarecimento, já que o mundo das minudências me sufoca.
Disse, no já chatíssimo texto anterior, que
ia ao barbeiro “a cada dois ou três meses”. Não é uma mentira, é uma
imprecisão. Os órgãos de imprensa em que tenho trabalhado não costumam pagar os
funcionários em prazo tão curto. O corte de cabelo, em qualquer lugar, é “à
vista”, embora, no desespero e recorrendo a este meu charme infantil, por duas
vezes cavei um “fiado”.
Não, não foi traição. Desde que a longilínea
morena me aparou a guedelha pela primeira vez, mantive-me fiel à tesoura dela. O
devasso leitor concluiria que essa lealdade se estendia às longas pernas
morenas dela, o que não é verdade, mesmo que eu admita que tal verdade não me
obrigue a nenhum juramento.
Mencionei o cheiro a milho verde que emanava
do vulto que volteava a cadeira de barbeiro em que me sentava. Rejeito,
veementemente, a observação de minha colega de trabalho que tentou desqualificar
aquele aroma vegetal quando exalado por corpo humano. Dispenso o leitor de
recorrer ao (meu deus) texto anterior.
Não mencionei o ventre, aquele ventre macio
e, digamos, leve que me roçava os braços arrepiados que se apoiavam nos braços
da cadeira. Não mencionei, nem devo, aquela sensação (apenas sensação) de coisa
grossa que me crescia entre as coxas. A minha alma computou tudo isso como a
manifestação poética de um momento novo. E o ofegar que me chegava à nuca era
algo imaterial, ilusão táctil talvez, ou talvez o zéfiro do cair da tarde.
A última vez, estes meses atrás, em que
estive no salão dela, as coisas não decorreram exatamente assim. Ela exibiu um
pelo retorcido de 12 centímetros que me arrancara da orelha esquerda, o qual
estivera escondido no desgrenhado geral da cabeça. Disse algo sobre o lobisomem
da idade, e quase elabora um discurso dialético-existencial com aquilo na mão, voltada
para duas garotas que aguardavam atendimento, enquanto eu a observava pelo
espelho.
A esta altura o leitor se pergunta se foi
mesmo por causa de uma emergência que procurei a barbearia do Welington. Foi. E
fico por aqui, fazendo força para não voltar ao assunto.
Contrassensos, ah, contrassensos.
O nome do estabelecimento bem que poderia ser
Salão do Weligton, mas não me compete pensar pelos outros. Pauso no que penso, diria
Fernando Pessoa (ou outro poeta metido a bacana).