domingo, 13 de março de 2016

Em conversa casual com um amigo, a memória de Hamiltão se incendeia, e ele se lembra de outra conversa (aparentemente) casual

                                                                                                                   Carlos Sena                                                                                                                                                            
Michael Douglas

O leitor sabe, esse leitor desgraçadamente fiel e cheio de cobranças, que sou dado a certas crises depressivas, coisa que a bombinha da asma não resolve.
Aí, depois de encher o peito de ar (na medida do possível) e clamar pelos deuses do arroubo e da coragem, boto um pé, um pequeno pé, para além do portão de casa. E ando, e ambos os pés vão crescendo, crescendo, crescendo, até o boteco mais próximo.
Minha sorte é ter filhas sensíveis, que compreendem meu desmazelo, minha “preguiça”, e dizem: “Papito, se você quiser a gente vai aí ajudar na casa.” Ajudar na casa quer dizer: vamos limpar um pouco dessa imundície, e o resto fica por sua conta. Meu problema é o resto, leitor, é o resto.
Filhas... Como tê-las e não amá-las? Houve quem me perguntasse se eu não queria um filho homem. Ah, não. Só de pensar numa cópia mais mal-ajambrado do que sou fico com vontade de entrar em pânico.
Foi assim que certa vez fui parar à solitária mesa da calçada do Bar do Warllen, onde passei a empunhar garbosamente meio copo de rabo de galo e a expirar o fumo de um paraguaio qualquer de vinte centavos a unidade. E estava lá, chamando mais uma crise de asma, quando me aparece o Pato Donald.
Não, leitor coxinha, não. Não confundo meu curvilíneo bairro com uma Disneylândia. É que o cara... Bem.
Sou implicante, sou mesmo. Ele tinha uma namorada que não deveria ser dele. E deveria ser de quem, então? Do alto desta minha petulância, eu achava que ela tinha mais jeito para mim.
E aí implicava.
E éramos amigos. Ainda somos. Pelo menos, há cumprimentos efusivos quando às vezes nos encontramos no sempre superlotado ônibus da concessionária de serviço público.
A esta altura, tenho que botar minha mãe no meio desta conversa. Em tardes sem que fazer, ficávamos os dois diante da televisão preto e branco a ver filmes e desenhos animados.
Os filmes, geralmente (quando não era episódio da série MacGyver), tinham como personagens centrais crianças inteligentíssimas. Mãe dizia não suportar filme com crianças e cachorros. Mas suportava, para me fazer companhia.
É daí que me ocorreu associar meu amigo ao pato do desenho animado. Não propriamente ao pato, mas à voz do dublador.
Por falar em dublador... Não, não mudemos de assunto.
Meu amigo era feirante, acordava de madrugada para providenciar a vida. A gente, os três, se encontrava sempre comecinho de noite.
O casal, alegre, chegava com os cabelos ainda úmidos do banho pós-foda. Mas antes, lá sentadão, eu via quando eles assomavam na esquina, e ficava a observar a figura esbelta da moça, unicamente a figura da moça, até que puxavam cadeira.
É assim. Nem preciso dizer mais nada.
Uma noitinha ela chegou, cabelos secos, e informou que o companheiro tinha ido à Ceasa tratar de um frete, ou sei lá o quê. (Algumas vezes me sinto incomodado com o leitor que gosta de detalhes.)
Bebemos, conversamos. E conversamos e bebemos, até que ele apontou na esquina. Eu disse: “Lá vem o pato rouco.”
Ela gargalhou. O riso tão belo, tão cristalino, como se viesse ecoando de algum romance de Zé de Alencar, possivelmente Sonhos d’Ouro.
Onde é que estávamos mesmo? Ah, sim, no Bar do Warllen.
O amigo chegou de repente, surpreendentemente. Não precisava das madrugadas, senão para dormir. Agora mexia com confecção na Feira Hippie, que funciona aos domingos.
Falamos abobrinhas, algo que ele não tinha mais que vender. Perguntou como estava o Diário da Manhã, onde havia muito tempo eu não trabalhava mais. Mesmo assim eu disse: “Uma bosta.” E ele: “Então quer dizer que é a mesma merda.”
Quase naufragados no silêncio, ficamos a nos encarar.
“Tem visto a Fulana?”, quis saber. Respondi que fazia anos que não a via. E ele, meio enigmático (foi assim que interpretei suposta investida, infantil leitor): “Sabe que ela tem um filho?” Não, eu não sabia.
Enquanto ele se referia com carinho à antiga companheira, e com certa reserva ao menino, fiquei sem ter o que comentar. Por isso indaguei: “Como ele se chama?”
“Michael Douglas.”
Meio arriado para dentro de mim, intentei calcular a distância no tempo. Para isso, tinha que saber a idade do estrupício. O amigo informou. Achei que ele estava tão angustiado quanto eu.
O desgraçado bem que podia ser meu filho. Michael Douglas... Mas não, não.
Onde diabos deixei a bombinha da asma?

Hamilton Carvalho
(13/3/2016)