[Plein Soleil/Divulgação] |
Alain, o galã
A asma me traz sempre a lembrança da professora de
francês, mais exatamente quando passo a sentir o efeito do medicamento. O
espírito parece que paira acima do corpo macerado pela crise que o deixa, e
isso é normal. E me entrego à doce maconha do momento.
O
que não é normal, prezado leitor, é que hoje eu me lembre de Alain, figura
protuberante que contrasta de forma chocante com a da professorinha da Escola
Normal. O fato se explica, no entanto, a partir de conversa que tive com um
amigo num desses bate-papos via internet. Falávamos do nosso trabalho de tempos
atrás, tempos dificílimos de salários em atraso.
Na
conversa, grafei “Alaim” ao me referir a um colega. O outro, lá do seu teclado,
escreveu “Alain”.
Foi
então que pensei em francês, e quando penso em francês penso na professora, que
me ensinou (não sei se ela estava certa) que a pronúncia de Alain é alã.
Portanto, o meu amigo Carlos Sena estava montado na razão ao me corrigir. O
nosso Alain, embora a pronúncia do nome dele seja alã-in,
carrega homenagem ao galã do cinema francês Alain Delon.
O
leitor cai para o deboche, sei. Deboche, aliás, é galicismo, vem do francês débauche.
Para
ser rigoroso neste fragmento de memória, devo dizer que não era propriamente
sobre a situação difícil por que passávamos no jornal (e o jornal à época ia
bem) que me transcorria o papo com o amigo Sena. (O meu francês para por aqui;
eu não saberia dizer se “Sena” remete ao rio que atravessa Paris, la
Seine.)
“Ô”,
interpelei mal começamos a teclar, “tá comendo alguém por aí?” E parti logo
para o lamento, bloqueando o possível meio otimismo que se delinearia na tela
em consoantes e vogais só pequenas. “Desempregado, miséria desgramada, há muito
não sei o que é boceta.” Assim mesmo, depravadíssimo leitor: eu previsível como
de costume para os meus conhecedores.
Alain
era entregador de jornal. Jamais compreendi a necessidade que tinha a empresa,
que ia bem, com carros próprios estacionados no térreo da sede e no pátio da
gráfica (própria), de contratar um operador de carrinho de mão, um veículo de
tamanho que contrariava à larga o diminutivo, empurrado desde a madrugada, no
sereno, e rodando boa parte do dia debaixo do sol arregalado de Goiânia.
Era
figura cuja presença não se podia ignorar. Não apenas porque protuberante,
como ressaltei acima.
Sim,
entendo que o termo “protuberante” é inadequado (e insuficiente) para descrever
uma pessoa. No início, minha intenção era empregar “proeminente” – também
inadequado, vá lá –, mas, como me expresso, por hábito, com a mente voltada
para quem lê, optei pelo consignado na ouverture. Quis evitar que o
leitor, que pode até dominar com abuso o idioma de Marcel Proust, confundisse
proeminente com preeminente.
Aquele
vasto moço, 40 anos, por aí, fedia. Banho para ele era coisa de gente metida a
besta. Para ter uma noção, pense você no cheiro daquele seu amigo que não há
muito retornou da França, depois de profícuo período de estudo sociológico na
Sorbonne. Não se pode ignorar tal pessoa.
Nem
sempre Alain aparecia na redação. Geralmente fazia isso para acompanhar – sem
convite – o dono do jornal quando, à cata de verba publicitária, o big
boss (não
é expressão francesa, leitor) levava algum agente público para conhecer as
instalações e os destacados jornalistas do diário.
A
despeito de não ter sequer o benefício da rima, Alain, à sua maneira rude e
fedorenta, era também um galã, ainda que feio e suarento. Tinha o sol por
testemunha do trabalho árduo a que se dedicava.
Fedia.
Sena
teclou gargalhada. Eu falava da falta de grana para sair, tomar cerveja e pegar
fêmea mesmo pouco exigente como as que Alain costumava traçar. Lembrei da vez
em que o entregador seguiu o patrão até a redação, baixou o carão por trás
dele, até quase tocar-lhe o ombro, e intimou: “Me dá dez reais aí.”
Pretendia
um vale, um “adiantamento” do salário que já passava do quarto mês de atrasamento,
embora a produção do jornal continuasse ininterrupta.
O
dono virou-se subitamente, fingindo susto, a jogar para o alto a careca
arrogante: “Dez reais pra quê?”
“Tô
com necessidade de foder”, justificou-se Alain, em sua candura.
Com
todo o patronal direito, o interrogatório prosseguiu. “Mas você quer comer
mulher de dez reais?” Agora o espanto era real, ante a miudeza da quantia. O
funcionário sentiu-se na obrigação de explicar, tímido de repente: “Não; é que
eu queria reservar cinco pra cerveja.”
Eu
me vejo, sempre, ainda a compartilhar algo com a professorinha: a asma com que
arfava o seu francês. Ela me salvou da desmoralização da doença.
Por
sinal, Proust também era asmático.