sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O autor jamais, jamais deveria queixar-se de ser incompreendido



Curva de rio

O próspero negócio durou menos de uma semana.
O mais velho de oito irmãos quis tirar um deles “da lama” e resolveu financiar o empreendimento. Alugou a sala pegada ao bar do Tiãozinho, ponto bom, bem na esquina em que termina (ou começa; isso depende de onde se parte) a feira noturna das quintas-feiras, para a instalação de um comércio de frutas e legumes.
Ah, a feira já foi muito melhor. Dobrava a esquina e tomava toda a frente da venda de Tião, cuja área externa se enchia de mesas (e cadeiras, claro) e era point de meninas shortinhos meia-bunda, tudo muito iluminado pelas lâmpadas instaladas pelos feirantes. (Mataram um cara ali, a tiros, a cinco metros de mim.)
Atualmente as barracas sobem (ou descem) a avenida esgarçadamente, mal atingindo a esquina. No entanto, a feira ainda é interessante, e de vez em quando me permito pegar uma frutinha para comer em casa.
A presença dos oito irmãos (todos baixinhos) tornou-se um evento naquela ponta de feira, embora nem sempre se juntassem ao mesmo tempo. Em torno deles (Os Paquitos, como foram cognominados pelo senhorio, Tião) formou-se uma verdadeira catrevage, expressão que, sem dúvida, minha mãe empregaria nesse caso.
“Isso aí”, fazia Tião empurrando a mão com desprezo em direção à esquina, “isso aí virou uma curva de rio, uma tranqueira onde para tudo quanto é bicho morto: peixe, galinha, boi...” Ele se referia, naturalmente, aos frequentadores do verdurão, nome que se dá em Goiás a esse tipo de quitanda.
Um dos frequentadores – que por ali permaneceu mesmo depois da falência do negócio – viria a morrer, repentinamente, recostado no ponto de ônibus da pequena rua. Ih, mas não é esse o caminho que devo seguir. Queria só me referir à vez em que ele usou a privada do bar do Tião, literalmente... Não, não seria esse o caminho.
Do Zero-a-Zero o relutante leitor se lembra, especialmente pelo fato de reclamar de Tiãozinho por não colocar papel higiênico no banheiro.
Nos áureos tempos da feira, quando todas as mesas do bar ficavam ocupadas e a área fervilhava de lindas garotas, certa vez fiz o que raramente fazia naquele lugar: fui providenciar uma mijada. Entrei no minúsculo banheiro e, ao fechar a porta, divisei o cesto de papéis perto da dobradiça.
Não vi papel no cesto. Vi um pano cagado, um pano azul, de um azul desbotado: uma calcinha. Fiquei logo a imaginar a qual daquelas beldades lá de fora a intimíssima peça feminina pertencera. Coisa de tarado, acho.
Há um bar no centro de Goiânia em que o banheiro é mantido trancado. Se precisa responder a algum imperativo da natureza, o freguês tem que pedir a chave ao dono. O chaveiro é um enorme pedaço de pau. No ato solene da entrega daquela espécie de troféu, o botequeiro adverte: “É só pra mijar, cagar não.” Não sei o que ele disse ao passar a chave a uma namorada que levei para tomar umas cervejinhas no conceituado estabelecimento. Não tive coragem de perguntar a ela.
Gente implicante é o que não falta. Por exemplo: a faxineira de um dos jornais em que trabalhei. “Homem é tudo porco”, vivia a repetir.
Havia 16 banheiros no prédio. Ela trancou todos, menos um. E isso, leitor abismado, para toda a equipe de um jornal diário. As mulheres se sublevaram. Com muito custo, ela fez a concessão de abrir mais um. O dos homens ficava no térreo, na garagem.
A ranzinza faxineira reclamava e reclamava. “Toda hora tenho que ficar limpando a sujeira desse povo, não aguento mais.” Ela tomou de ódio visceral (e bota vísceras nisso) contra o vigia noturno, rapaz tímido que raramente falava, quando, ao presenciar uma dessas cenas, disse, bem baixinho: “Mas, dona Teresa, a senhora está aqui é pra isso mesmo.”
(Não me lembro do nome da mulher. Fica Teresa, para efeito dramático.)
Antes, apenas um banheiro liberado, o vaso se entupiu. Foi preciso chamar um bombeiro, que, depois de muito trabalho, removeu o obstáculo: um ovo. A culpa continuou dos homens.
A faxineira se exasperou de vez quando um rebelde pichou todas as paredes desse mesmo banheiro. A frase mais expressiva era: “Me cago para dona Teresa”. A tinta usada pelo misterioso manifestante foi a própria bosta.
Como eu dizia, o promissor negócio da curva de rio não durou uma semana.

Hamilton Carvalho